Economia

Que mentira
que lorota boa...

DANIEL LIMA - 05/03/1998

A grande anedota da temporada é a afirmação de que a evasão industrial do Grande ABC é um mito e que o consequente esvaziamento regional não existe. O autor não frequenta a região com regularidade. Desconhece estudos desta publicação, pioneira no diagnóstico das perdas regionais, e certamente nem imagina quantos galpões industriais, escombros de plantas que se foram, estão desocupados. Diretor adjunto de Produção de Dados da respeitada Fundação Seade (Sistema Estadual de Análises de Dados, uma divisão do governo estadual), Luiz Henrique Soares cometeu a gafe numa cerimônia pública, durante o seminário Comissões Municipais de Empregos/Novos Desafios, realiza do mês passado em São Bernardo.


 


Sorte dele que o encontro recomendava discrição. Fosse um programa de auditório Sílvio Santos, certamente ouviria o bordão Que mentira que lorota boa, que mentira que lorota boa entoado pelo animador e a plateia.  A declaração de que desindustrialização é um mito no Grande ABC causou indisfarçável espanto ao prefeito Maurício Soares e ao secretário estadual de Emprego e Relações do Trabalho, Walter Barelli.


 


O argumento esgrimido sem destreza por Luiz Henrique Proença Soares refere-se à participação relativa da produção industrial do Grande ABC no Estado de São Paulo, que em 1995 alcançou 15,8%, contra 15% em 1985. Ele concluiu pela estabilidade industrial ao tomar as duas pontas de um estudo divulgado dias antes pela Secretaria da Fazenda do Estado.


 


A situação, como se vai ver, é totalmente diversa. Primeiro porque a base de comparação por si só condena a argumentação. Em 1985 o Brasil vivia tempos de recessão, de inflação elevada, que inclusive deu origem ao Plano Cruzado. A produção automotiva nacional, pela qual a região respondia por cerca de 50%, atingia 966,7 mil veículos. Em 1995, diante do sucesso do Plano Real, o Brasil vivia momentos de euforia. A indústria automobilística, da qual a região depende grandemente, batia recordes de produção e vendas. Chegava  a  1,629 milhão de veículos. Nada menos que 68% de acréscimo de unidades negociadas. E mais impostos arrecadados.


 


Resumo: mesmo considerando premissa do diretor do Seade verdadeira, as perdas estariam clarificadas porque a economia regional, sempre atrelada a subidas e descidas de acordo com períodos de fertilidade ou de esterilidade da indústria automotiva, não evoluirá relativamente a outras regiões, apesar da grande discrepância na produção do setor. O que acontecerá então quando a maré mudar, como parece ter mudado com a recarga de impostos e de juros desde novembro passado? Novas perdas, como em períodos menos elásticos e menos opostos como esse comparativo de 1985 a 1995.


 


Faltou referência


 


Ao se referir à estabilidade da produção industrial do Grande ABC comparativamente ao Estado de São Paulo, o pesquisador também desconsiderou o País como referência. No período em que se prende o estudo, o Estado de São Paulo perdeu 9,2% de participação do PIB nacional, conforme anunciou também dias antes o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas). Em valores atuais, já que o PIB nacional ultrapassa R$ 800 bilhões, São Paulo contabilizará este ano, se considerada a queda até 95, perdas de mais de R$ 72 bilhões.


 


Como se percebe, o técnico do Seade não levou em conta o fato de o Estado de São Paulo fazer parte do Brasil, e de o Grande ABC integrar o Estado de São Paulo. Dezenas e dezenas de pequenas, médias e grandes empresas da região migraram integralmente ou em parte para Minas e Paraná. Foram em busca do maná da paz sindical, de melhor qualidade de vida, de incentivos fiscais, creditícios e de infra-estrutura. E de parte disso no Interior de São Paulo.


 


Há mais provas de que mito mesmo é entender que industrialização é mito no Grande ABC. Ainda segundo estudos da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, a Região Metropolitana de São Paulo perdeu participação relativa no Valor Adicionado (espécie de PIB) de 64,3% para 51,79%, perde 24%. Para onde foram os recursos financeiros e os investimentos senão para o próprio Interior e também para outros Estados?


 


Entre 1985 e 1995, a região de Campinas, pólo de tecnologia e de diversidade industrial que o Grande ABC não consegue ser, passou de 15,16% para 21,47% em termos de participação relativa no estado. Isso dá exatamente 41,6% de avanço. A região de Sorocaba deu salto parecido, passando de 4% de produção industrial para 5,29% do total do Estado – ou seja, mais de 32,2%.  


 


Como o Grande ABC conseguiu manter-se estável nesse período se os demais Municípios da Grande São Paulo despencaram nos índices? A resposta estritamente econômica é simples. Primeiro, a indústria automobilística praticamente duplicou a produção no período, o que gera impostos os mais variados, os quais são a massa de insumo da quantificação da produção industrial.


 


Protegida por alíquotas de importação elevadas, as montadoras de veículos apertaram o cinto das pequenas e médias autopeças, as quais foram atiradas as feras da competição internacional, arena para a qual não estavam preparadas por uma série de razões. Resumo: muitas empresas desapareceram. Tanto que -- o número é do próprio técnico do Seade -- dos 602 mil empregos formais na região em 1989, restaram 505.664 em 1995. Além do desemprego tecnológico, principalmente o estrutural, no caso do Grande ABC, mostrou as mangas.


 


Cerco fiscal


 


Não bastasse a abordagem econômica para demolir a desastrada interpretação de Luiz Henrique Proença Soares, há outras, agora do ponto de vista tributário. Dois especialistas da Assercon, empresa de Santo André com credibilidade além-fronteiras, colocam uma pá de cal na abordagem do técnico do Searle. Ary Silveira Bueno e Allan Moraes lembram que o Grande ABC é o principal alvo da tecnologia de fiscalização do governo do Estado. Exatamente porque é densamente ocupado por indústrias, maiores contribuintes de impostos, a região está sistematicamente na mira da Secretaria Fazenda.        


 


"A atuação dos fiscais na região é avassaladora” – afirma Ary Silveira, cujo escritório de consultoria teve quintuplicado o contingente de profissionais nos últimos três anos, em decorrência da febre fiscalizadora do Estado. 


 


A sincronia entre maior fiscalização e aumento de arrecadação é automática. Como o Grande ABC é mais visado, a inflexão do volume de impostos acaba por se refletir nos índices do Valor Adicionado, ou do PIB, regional. Por isso, falar em não desindustrialização sem levar em conta também esse diferencial de arrecadação fiscal tem o mesmo sentido que saltar de pará-quedas durante um vendaval.


 


A receita tributária do Estado de São Paulo durante o governo Mário Covas tem tido comportamento de fazer inveja a empresas de administração impecável. Em 1994, quando ainda não tinha assumido o Palácio dos Bandeirantes, o bolo tributário atingiu R$ 23 milhões. No ano seguinte, já no cargo, saltou para R$ 27,5 bilhões. Em 1996 alcançou R$ 28,5 bilhões e no ano passado beirou a R$ 33 bilhões. Um apetite pantagruélico de 43%, em parte relacionado ao crescimento da economia, em parte it fome tributária, em parte a manutenção dos valores reais recolhidos, antes corroídos pela inflação. Em suma, dinheiro que saiu dos bolsos e dos cofres dos contribuintes.


 


Perdigueiro


 


Além da fiscalização de cão perdigueiro, como lembra Allan Moraes, a Secretaria da Fazenda estruturou-se taticamente para inflar a arrecadação. Elegeu vários setores industriais para estabelecer o que se chama de substituição tributária, que consiste em recolher exclusivamente na fonte de produção -- e não mais também nos canais de comercialização -- o ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), maior filão de receitas do Estado. Um exemplo: as montadoras de veículos recolhiam apenas parte do ICMS dos veículos enviados às concessionárias, mas a partir de 1993, a fim de evitar sonegação, a Fazenda do estado centralizou o recolhimento nas próprias montadoras. E assim fez com pneus, tintas, químico, entre outros. Todos com intenso peso no PIB do Grande ABC. Como o ICMS é, na definição de Ary Silveira, um imposto que tem relação direta com o chamado Valor Adicionado, base do PIB nacional, e o ICMS do Grande ABC é preponderantemente industrial, apesar de nos últimos  anos os setores de comércio e serviços terem aumentado a presença econômica, dá para projetar o quanto de artificial existe na estabilidade intra-estadual do PIB regional.


 


A disciplina com que a Secretaria da Fazenda se tem lançado à caça de furos na arrecadação é, ironicamente, mais um componente a complicar o equilíbrio de competitividade da indústria paulista no mercado nacional e mesmo internacional, além da chamada guerra fiscal, porque não encontra paralelo nos demais Estados.


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