O Grande ABC demorou, mas finalmente lançou contra-ofensiva à guerra fiscal que lhe roubou empresas e novos investimentos nos últimos 15, 20 anos. Batizados de Política Regional de Incentivos Seletivos, os estudos realizados por secretários de Desenvolvimento Econômico e de Finanças dos sete Municípios foram lançados em forma de projeto de lei em meados de setembro no Teatro Cacilda Becker, em São Bernardo, durante encontro extraordinário do Consórcio Intermunicipal, que reúne os prefeitos da região. O trabalho é um chute nos fundilhos da guerra fiscal e para melhor entendimento pode ganhar um nome fantasia mais popular. Trata-se, de fato, da Loto Fiscal: um sistema de pontuação que faz lembrar cartela de jogo cuja premiação está amarrada ao total de pontos alcançados.
Apesar de evidentes deslizes, como o não atendimento ao setor de saúde, caótico na região e no País, o projeto de lei que deverá passar por mudanças até que seja enviado e aprovado integralmente por todos os Legislativos da região agrega valores inestimáveis.
Primeiro, mostra a vontade política das administrações públicas em buscar saídas para a região. Parece pouco? Nada disso. Até janeiro deste ano, quando os novos prefeitos tomaram posse, o Grande ABC cantado em verso e prosa como símbolo do capitalismo privado brasileiro, moldado a partir de meados dos anos 50 pela indústria automotiva, não tinha sequer um organismo público direcionado ao planejamento econômico municipal, quanto mais regional. As Secretarias que passaram a constar dos organogramas das Prefeituras com nomes variáveis mas de sentido especificamente de Desenvolvimento Econômico transformaram-se em grandes vedetes públicas. Só o prefeito socialista de Diadema, Gilson Menezes, ainda não conseguiu criar o órgão, mas isso é questão de tempo, porque o projeto já foi enviado à Câmara Municipal.
Segundo, a tentação de praticar política desenvolvimentista demagógica, com o suporte de guerra fiscal desenfreada e generalizada que atingiu a quase totalidade dos administradores públicos municipais e estaduais do País, não contaminou os Executivos locais. É verdade que os cofres públicos estão vazios e não permitem generosidades, mas nada indica que medidas suicidas não poderiam ser tomadas se não houvesse conscientização dos prefeitos sobre a importância da integridade do conjunto dos sete Municípios. A guerra fiscal, no sentido mais abjeto da expressão, foi evitada internamente. Com isso, o conceito de metropolização de projetos e ações ganha espaço e se consolida. Pesa para tanto não só o Consórcio Intermunicipal, sutilmente ou não pressionado pelo Fórum da Cidadania, mas também a Câmara Regional, cuja participação de vários secretários estaduais e do próprio governador Mário Covas alargou os horizontes regionais.
A proposta de Loto Fiscal dos prefeitos do Grande ABC não é assim uma Brastemp, mas tem conceitos que poderiam muito bem ser utilizados pelo omisso governo federal diante do massacre da guerra fiscal, numa eventual e sonhada política econômica nacional com desdobramentos regionais. O Grande ABC não está entregando a alma para sensibilizar o empresariado e também não abriu todas as comportas para investimentos.
O projeto de lei organizado pelos mais graduados funcionários públicos dos sete Municípios e assinado pelos respectivos prefeitos é explicitamente seletivo e bem menos impactante às finanças das empresas do que se poderia sugerir. Foram contempladas as áreas industrial, flagrantemente debilitada por evasões, turismo e entretenimento, incipientes na região mas potencialmente nobres.
Para entender o que é a Loto Fiscal é preciso destrinchar o projeto de lei. Está previsto o ressarcimento, com condicionantes, do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) incidente sobre a mão-de-obra e sobre serviços de hospedagem; o Imposto Predial, Territorial e Urbano (IPTU) incidente sobre o imóvel objeto de investimento novo, isto é, construção ou expansão; o Imposto sobre Transmissão de Bens Inter-Vivos (ITBI) incidente sobre a aquisição de imóvel no qual será realizado um novo empreendimento, inclusive expansão; além de taxas de licença, localização, funcionamento e de publicidade.
Também está prevista a isenção de taxas e emolumentos para regularização de projeto de construção, implantação ou expansão de novo empreendimento junto aos órgãos da administração direta e suas autarquias.
Outro item do projeto de lei relaciona-se ao ressarcimento a título de subvenção comum ou especial da receita transferida de ICMS -- Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços -- correspondente ao incremento do valor adicionado relativo à atividade industrial instalada, declarado e computado no índice de participação do Município no produto de arrecadação de imposto, segundo critério estabelecido na legislação vigente.
Embora o projeto de lei determine que os benefícios estabelecidos poderão ser estendidos às empresas industriais já instaladas no Município, no caso de expansão de atividades, isto não significa que deixem de eventualmente perder competividade em relação aos novos empreendimentos que lhes façam concorrência.
O prefeito de Santo André, Celso Daniel, esforçou-se para minimizar os efeitos desse desequilíbrio, mas não há mágica que contrarie a lógica acaciana. E a lógica diz que uma nova empresa metalúrgica que venha para a região e que se beneficie da Loto Fiscal acabará obtendo vantagens estratégicas comparativamente às empresas já instaladas, porque seus custos públicos, se assim podem ser chamados os impostos abrangidos pelo projeto de lei, serão menores. Não o fossem, estaria se atribuindo ao delírio coletivo a própria introdução dessa alternativa de investimentos no Grande ABC.
A indústria metalúrgica antiga, como prevê o projeto, só terá redução do custo de impostos quando expandir-se e mesmo assim só na parcela adicional relativa a essa mesma expansão.
A lógica da Loto Fiscal está expressa em dois quadros anexos ao projeto de lei. O Quadro I refere-se à Grade Analítica de Mérito de Projeto. Os novos investimentos que atingirem até R$ 1 milhão de valor adicionado, gerarem de 50 até 150 postos de trabalho e contarem com o selo ISO 14.000, relativo à proteção do meio ambiente, totalizariam 40 pontos, expresso no Quadro II, tipificado como Grade Analítica de Classe e Pontuação. Com isso, obteria classificação na Classe A (de 40 a 55 pontos) e consequentes 15% de incentivos sobre investimentos, além de ressarcimento de 40% da cota-parte do ICMS do Município.
Para obter a Classe Especial (60 pontos) e contar com 20% de incentivos sobre investimentos e 50% de ressarcimento do ICMS, o novo empreendimento terá de gerar valor adicionado acima de R$ 5 milhões, contabilizar mais de 150 empregos e também contar com o ISO 14.000. Já o novo investimento que obtiver entre 20 e 35 pontos terá incentivo sobre investimentos de 10% e ressarcimento de 30% da cota-parte do ICMS do Município, que é de 20% do total arrecadado pelo Estado.
Embora pareça complexo, o sistema é facilmente compreensível ao se utilizar os quadros preparados pelos técnicos municipais. O que há de mais relevante mesmo é que a Loto Fiscal foi gestada pelo Grande ABC. Trata-se de proposta de legislação que estabelece um mínimo de segurança quanto à longevidade dos investimentos. Tanto que os benefícios concedidos com base nessa legislação serão cassados, com notificação ao Ministério Público, caso se comprove a inserção de elementos inexatos ou fraudulentos. Algo que se está revelando comum na guerra fiscal predatória.
É provável que a restrição imposta à isenção ou ressarcimento de impostos subordinada à obediência da norma máxima do meio ambiente, o Certificado ISO 14.000, seja derrubada antes mesmo de levada aos Legislativos. A exigência foi considerada exagerada logo após o anúncio do projeto por Fernando Longo, secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo de São Bernardo e coordenador do grupo de trabalho da Política Regional de Incentivos Seletivos. Afinal, apenas a OPP Polietilenos, sediada no Pólo Petroquímico de Capuava, divisa entre Santo André e Mauá, exibe essa certificação em todo Estado de São Paulo.
O parâmetro deverá ser a menos complexa legislação da Cetesb, de forma a democratizar a possibilidade de obtenção do total de 60 pontos da grade analítica da Loto Fiscal e, dessa forma, conseguir maior índice de isenções e ressarcimentos.
O artigo sétimo do projeto de lei também prevê desconto no valor do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) às microempresas prestadoras de serviços. O Quadro III explica que até R$ 18 mil reais de faturamento anual o desconto é de 100%; entre R$ 18.001,00 e R$ 21.000,00 o desconto é de 80%; de R$ 21.001,00 a R$ 24.000,00 atinge 60% e de R$ 24.001,00 a R$ 27.000,00 alcança 40%.
Agora resta a expectativa de que as respectivas Câmaras Municipais tenham sensibilidade para dar ritmo acelerado à aprovação esperada pelos prefeitos e secretários. Uma reunião preliminar, com a participação de um terço dos 135 vereadores da região, foi basicamente improdutiva. Nenhuma proposta de enxerto no projeto de lei foi apresentada.
Vanderlei Siraque, presidente da Câmara Municipal de Santo André e presidente do Fórum dos Vereadores da região, conseguiu agendar uma reunião dos presidentes das Câmaras Municipais dos sete Municípios com o Consórcio Intermunicipal dos Prefeitos. Ele considerou a operação mais diplomática do que técnica. O que os vereadores querem é ser valorizados no processo de aprovação da Loto Fiscal, e não simplesmente ficar a reboque dos Executivos. Mas é possível que apresentem algumas emendas.
De aplicação retroativa a 1º de setembro, a Loto Fiscal estimularia, de imediato, segundo propagam os administradores e executivos públicos, perto de R$ 1 bilhão de investimentos no Grande ABC. Uma dinheirama que pode até ser um sopro para quem andou perdendo vendavais de recursos nas duas últimas décadas, mas que já sinaliza o início do processo de recuperação.
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