Economia

Santo André vai
atrás da salvação

DANIEL LIMA - 05/11/1999

A decadência econômica de Santo André, obra de imprevidência e auto-suficiência que já dura mais de um quarto de século, pode ser estancada a partir do ano que vem. Numa manobra radical que nem mesmo os mais combativos oposicionistas poderiam imaginar num governo supostamente de esquerda, como é o Partido dos Trabalhadores, o prefeito Celso Daniel decidiu enviar à Câmara Municipal calhamaço de propostas que simplesmente revoluciona o conceito econômico de uso e ocupação do solo urbano. Embora sob o título de LDI (Lei de Desenvolvimento Industrial), o projeto é suficientemente amplo para caracterizar denominação mais apropriada, como Lei de Desenvolvimento Econômico.


 


Resumidamente, o que se propõe é a derrubada do muro de restrições locacionais à ocupação não só da indústria propriamente dita, mas da rede direta e indireta de fornecedores e clientes de setores que agregam valor à produção sem que causem danos às normas técnicas e ambientais. A legislação-base que emperrou Santo André a partir de 1976 mimetizou os exageros legislativos dos anos de chumbo da ditadura militar. Foi um período em que o centralismo do Estado espalhou pelos governos estaduais e municipais filhotes dos burocratas brasilienses que, em confortáveis gabinetes refrigerados, atribuíam-se poderes divinos para direcionar o desenvolvimento econômico.


 


Eram também tempos em que produção e poluição tornaram-se sinônimos por força da liberalidade de um capitalismo de Estado que não se incomodava com as consequências dos meios utilizados para o crescimento econômico. Tempos do chamado Brasil Grande, em que os fins da engorda do PIB (Produto Interno Bruto) justificavam os meios da violação da qualidade de vida.


 


Hoje, quando indústria tem relação direta com equilíbrio ecológico e quase toda a poluição atmosférica é causada pelos veículos, segregações locacionais rígidas a novas plantas produtivas tornaram-se tão obsoletas quanto desnecessárias. 


 


O projeto de lei foi entregue no final de outubro pessoalmente pelo prefeito ao presidente do Legislativo Municipal, Israel Santana. A expectativa é de que se trata de uma batata quente que precisa ser descascada rapidamente para que a aplicação da nova legislação coincida com o início do novo século. A Administração precisa de dois-terços de votos dos 21 vereadores. É difícil acreditar que o projeto, mesmo com eventuais alterações, deixe de ser aprovado.


 


Executivos públicos de várias pastas da Prefeitura, principalmente Irineu Bagnariolli Júnior, secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, e Nelson Tadeu Pereira, secretário de Desenvolvimento Econômico e Emprego, atuaram intensamente nos últimos 12 meses. Eles mantiveram inúmeros encontros com muitos empreendedores para reunir o máximo de informações que pudessem ser traduzidas numa proposta ajustada às prioridades de quem participa do processo de produção e enfrenta cipoal de dificuldades legais.


 


Perdas acumuladas


 


O estrangulamento econômico de Santo André só não é notório para os incautos. O festejado desembarque nesta década de grandes redes varejistas e de franquias de comércio e serviços, em movimento simultâneo com o deslocamento de milhares de desempregados pela indústria para atuar como pequenos empreendedores ou trabalhadores nessas atividades, deu a falsa impressão de que o Município vivia boom econômico. Nada mais falso. Santo André é a cidade que mais sofre com o esvaziamento econômico da região, cuja origem é a evasão industrial estimulada pela guerra fiscal combinada com a miniaturização das fábricas sob nova realidade de gestão administrativa, tecnológica e de processos.


 


O crescimento nominal de unidades industriais em Santo André no período de 1988 a 1997, segundo estudos do professor Joaquim Andrietta, do Imes (Instituto Municipal de Ensino Superior) de São Caetano, com base na Rais (Relação Anual de Informações Sociais) do Ministério do Trabalho, é uma armadilha numérica. Em 1988 Santo André contava com 877 indústrias, contra 1.048 registradas 10 anos depois; ou seja, crescimento de 19,7%. O que parece desenvolvimento não passa de fragmentação econômica.


 


A terceirização industrial tornou-se estratégia de sobrevivência de empresas tecnologicamente defasadas e acossadas inicialmente pela globalização econômica e, em seguida, pelo fim da inflação. De 65.398 empregos formais na indústria em 1988, sobraram 31.596 em 1997. Quando forem contabilizados os postos de trabalho perdidos nos últimos 20 meses, que inflam os indicadores mensais de emprego e desemprego da  Fundação Seade e do Dieese, o desastre será ainda maior no setor industrial. 


 


Os indicadores de queda econômica de Santo André não param por aí. Também estão registrados no consumo de energia elétrica industrial em período parecido com o dos dados da Rais. Numa comparação ponta a ponta entre o recessivo 1990 e o morno 1998, a indústria de Santo André consumiu 12% menos de energia elétrica. Se for acrescida a evolução do PIB (Produto Interno Bruto) no período, de 18%, tem-se dimensão mais apurada das perdas.


 


Derrocada do ICMS


 


Os dados mais eloquentes do esvaziamento econômico de Santo André e que tanto inquietam a administração de Celso Daniel estão no comportamento do Município no ranking de redistribuição do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). O tributo é espécie de PIB industrial do Estado porque tem 69% de sua composição derivada do Valor Adicionado, que, em resumo, é a transformação de madeira bruta em móveis, do granulado petroquímico em pára-choque plástico de veículo. Entre 1982 e 1999, a queda de participação de Santo André foi abissal: de 3.1540% para 1.6146%. Se a comparação for mais elástica no tempo e remontar à Lei 5042/76 que amordaçou a economia de Santo André, o tombo é ainda maior: em 1976, o Município chegou a deter 4.7146% da redistribuição do ICMS do Estado.


 


É por essas e por outras que o projeto de lei do prefeito Celso Daniel não pode cair na vala comum de barganhas políticas ou mesmo ser protelado ao sabor ou ao dissabor do calendário eleitoral. A consciência de que o Município está à deriva econômica não pode fugir do foco dos legisladores.  A Lei de Desenvolvimento Industrial é um instrumento sem matizes ideológicos. Trata a economia de Santo André com pragmatismo e, provavelmente, incentivará os demais municípios da região a seguir suas linhas gerais.


 


Os desarranjos do centralismo público arrogante que transformava a sociedade em simples joguete de formulações teoricamente perfeitas não se limitaram ao território de Santo André. O Grande ABC como um todo enxotou o setor produtivo quando a fartura dos investimentos de montadoras e de autopeças supostamente indicavam que, se o Brasil tinha uma referência geoeconômica indestrutível, a região era esse endereço.


 


A Lei de Desenvolvimento Industrial de Santo André estabelece normas urbanísticas especiais que, segundo a mensagem do prefeito aos legisladores, visam a atração, permanência e ampliação das atividades industriais, de prestação de serviço industrial e correlatas. O conceito de indústria é definido como atividade de extração ou transformação de matérias-primas em produtos transportáveis acabados ou semi-acabados, assim como a montagem ou acabamento de produtos. Os prestadores de serviços industriais enquadram-se em atividades caracterizadas predominantemente pelo fornecimento de mão-de-obra, conhecimentos gerais ou especializados de natureza industrial.


 


Já as atividades correlatas à atividade industrial e de prestação de serviços industriais, incluídas no projeto de lei, envolvem gama tão imensa quanto subjetiva -- vai de administração, apoio e fomento à atividade industrial, distribuição e comercialização dos produtos por atacado, ensino e pesquisa em geral até liberação aduaneira e transporte especializado de produtos manufaturados.


 


Produção valorizada


 


A tradução desse manancial de atividades pode ser feita sem susto: Santo André está abrindo as fronteiras internas para tudo que somar investimentos e, consequentemente, tributos. A exótica possibilidade de uma indústria instalar-se no Bairro Jardim, uma das áreas nobres do Município, não estaria descartada na proposta do prefeito Celso Daniel. Resta saber se algum empreendedor de pouco juízo preferirá o elevado custo do metro quadrado construído ou alugado no Bairro Jardim à mais em conta periferia de Santo André.


 


Entretanto, o que parece exótico e agressivo à qualidade de vida de um bairro nobre pode ser exatamente o contrário. Como? Uma montadora de computadores pessoais, que exige pouco espaço físico, não causa qualquer tipo de degradação ambiental ou ao sistema viário e investe permanentemente em tecnologia, poderá instalar-se sem problemas num dos muitos imóveis à disposição para aluguel ou venda no mesmo Bairro Jardim, mas cujo uso atual é estritamente residencial.


 


Como se observa, a flexibilidade da legislação está em sintonia com os novos tempos, em que atividades de produção e de prestação de serviços se confundem e se complementam. Tanto que a proposta prevê o estímulo à criação de condomínios industriais. Um dos muitos exemplos de modelo de condomínio industrial está na possibilidade de uma empresa produtora de autopeças que conta com ociosidade de espaços  reunir em sua planta fornecedores diretos e indiretos. A legislação formulada em 1976 não permite a alternativa.


 


O consórcio modular da fábrica de ônibus e caminhões da Volkswagen em Resende, Rio de Janeiro, símbolo mais badalado da relação de proximidade entre fornecedores estratégicos e a estrutura de montagem de produto de uma grande empresa, não teria passado pelo crivo da legislação de Santo André. Com a Lei de Desenvolvimento Industrial, esse e outros modelos serão potencialmente aplicados.


 


É muito provável que um dos desdobramentos mais ágeis da Lei de Desenvolvimento Industrial de Santo André seja a retirada em massa das pequenas e médias indústrias que ainda ocupam a Avenida Industrial. A maioria dos empreendimentos produtivos que resta no endereço está comprimida em espaços que se tornaram exíguos, está descapitalizada e espera transferir-se para áreas periféricas que se abririam com a aprovação da nova legislação, o que tornaria a mudança duplamente vantajosa.


 


Primeiro porque os imóveis que esses negócios ocupam numa área que passou por grandes transformações a partir da chegada do ABC Plaza Shopping foram substancialmente valorizados. Segundo porque o volume de ofertas de novas áreas disponibilizadas pela legislação proposta pelo prefeito Celso Daniel rebaixaria os valores necessários à realocação.


 


Dose exagerada


 


Aliás, esse é um aspecto que dinamita um dos preceitos dos legisladores que há 23 anos esquadrinharam o uso e a ocupação do solo em Santo André. Além de exagerar nas salvaguardas ambientais, superando as restrições estaduais, a legislação municipal pretendia impedir a especulação imobiliária. Como o mercado é soberano na definição de valores de bens tangíveis, já que ainda não se conseguiu revogar a informalidade da lei da oferta e da procura, o que ocorreu em Santo André foi exatamente o oposto: as áreas reservadas à indústria tornaram-se tão escassas e concentradas que se valorizaram em níveis proibitivos.


 


Resultado prático? Fuga de investimentos de quem pretendia vir para Santo André e deserção de muitas organizações instaladas, seduzidas pela guerra fiscal e pela doação de extensas áreas de municípios do Interior paulista e de outros Estados, sobretudo Minas Gerais e Paraná.


 


Vender áreas em Santo André e receber de graça no Interior tornaram-se grandes negócios porque acrescentavam outras vantagens, como a fuga de um ambiente sindical então bastante hostil e do custo da mão-de-obra mais elevado. Desdobramento disso tudo: os estoques de áreas industriais de Santo André acabaram desvalorizados e centenas de galpões estão vazios. Um quadro, aliás, comum no Grande ABC. Exceto em São Caetano, absolutamente sem terra disponível.


 


A Lei de Desenvolvimento Industrial proposta para Santo André tem também objetivos explícitos de regularização urbanística e fundiária da indústria já instalada, bem como do aparato de fornecedores e clientes. Há irregularidades constituídas ao longo dos anos, em decorrência direta dos obstáculos práticos da legislação, que deverão ter pedidos protocolados dentro de seis meses contados a partir da data da publicação da LDI.


 


O projeto de lei do prefeito Celso Daniel também permite a superação de alguns índices urbanísticos, mas estabelece contrapartidas revertidas à população do entorno do empreendimento ou de Santo André como um todo. É a ampliação da parceria que a Prefeitura realizou com o ABC Plaza Shopping, cujo aumento do potencial construtivo só foi possível com a cessão de parte do terreno frontal à Avenida Industrial. Traduzindo: a utilização de índices e parâmetros urbanísticos diferenciados será admitida, conforme o projeto de lei, a título de outorga onerosa.


 


Codesur decidirá


 


Quem vai decidir sobre o assunto, isto é, a utilização de índices diferenciados e a apuração da contrapartida, é o Codesur (Conselho de Desenvolvimento Urbano), órgão paritário entre a Prefeitura e a comunidade. A LDI prevê como contrapartida obra ou serviço a ser executado no entorno da atividade beneficiada. Abrange sistema viário, paisagismo, implantação de mobiliário urbano ou equipamento público para promover a integração do imóvel à malha urbana, a valorização dos espaços públicos e a revitalização urbana.


 


A contrapartida se dará nas mesmas condições, só que em qualquer outro local do Município indicado pela Prefeitura, além de outras alternativas, inclusive no financiamento, por prazo determinado, de programas de educação, formação ou requalificação profissional por iniciativa própria do beneficiário ou em parceria com ONGs (Organizações Não-Governamentais) ou com Poder Público. Também se estabelece a alternativa de depósito em dinheiro no FDU (Fundo de Desenvolvimento Urbano), cuja criação, junto à Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, consta da LDI.


 


Outras ações


 


As facilidades para uso e ocupação do solo são o naco mais valioso de um pacote de outras propostas do prefeito Celso Daniel que inclui mudanças de zoneamento na área central de Santo André e reavaliação da base de cálculo do ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens e Imóveis). O secretário Irineu Bagnariolli reconhece que o projeto de revitalização do Calçadão da Oliveira Lima não pode se esgotar nas obras de infra-estrutura física e paisagística, entre as quais a cobertura em arco, além de ações voltadas para a segurança.


 


Para Bagnariolli, é preciso estimular o fluxo na área central, principalmente no período noturno. Ele critica a legislação que impede o funcionamento de estabelecimentos de ensino na área, mas permite a proliferação de casas de massagens e bingos. Estudantes serão bem-vindos na transformação funcional que contemplará o Centro no projeto de lei que está sendo preparado. Até porque uma das alternativas para a região central de Santo André é a implementação de um corredor cultural, segundo anunciou recentemente Klinger Luiz de Souza, secretário de Serviços Municipais.


 


Já a redução do custo de transferência de galpões industriais está proposta em projeto de lei enviado ao Legislativo. A Prefeitura mantém a sete chaves inventário sobre o estoque de galpões desativados no Município. A decisão de propor adequação dos valores dos imóveis à realidade do mercado e não mais à excessiva cotação venal é tentativa de estimular negociações e novas ocupações por atividades produtivas sincronizadas com a Lei de Desenvolvimento Industrial. 


 


Irineu Bagnariolli explica que a realidade de mercado em baixa já não suportava a valorização venal em alta. Com autorização do Legislativo, a Prefeitura poderá receber a alíquota do ITBI com base em valores menores do que os expressos numa legislação tributária fora do ritmo da morosidade do setor imobiliário industrial. 


 


Loto fiscal


 


A Lei de Desenvolvimento Industrial é uma nova tentativa, agora mais ampla e profunda, para recuperar o viço econômico de Santo André. A Loto Fiscal, lançada há dois anos pelos prefeitos do Grande ABC por meio do Consórcio Intermunicipal, não deu os resultados imaginados. Em resumo, trata-se da concessão de incentivos fiscais a novos investimentos industriais e a empreendimentos de turismo e entretenimento. Está programada a restituição seletiva de tributos municipais, incluindo-se ISS (Imposto Sobre Serviços), taxas de licença, localização, funcionamento e de publicidade, entre outros, além de parcela do ICMS,  conforme enquadramento dos investimentos em grade analítica.


 


Por grade analítica entendam-se os critérios de pontuação para o ressarcimento de impostos. São considerados três vetores dos novos impostos: arrecadação do Valor Adicionado, geração de emprego e meio ambiente. A área de proteção aos mananciais e o segmento de microempresas e empresas de pequeno porte têm grade especial, na qual a recuperação de parte dos impostos é menos incentivada. Precisam de mais recursos financeiros e maior geração de empregos para obter pontuação idêntica à grade dos investimentos em turismo e entretenimento, atividades para as quais a proposta do Consórcio Intermunicipal foi mais enfaticamente direcionada.


 


A obtenção de 60 pontos na Loto Fiscal resulta em 20% de ressarcimento do investimento. Empresas de turismo e entretenimento alcançam essa pontuação se investirem acima de R$ 100 mil, gerarem mais de 10 empregos e passarem pelo crivo ambiental. Já para os investidores em área de proteção aos mananciais e para micro e pequenas empresas a conquista de 60 pontos se dá diante de investimentos acima de R$ 500 mil, mais de 31 empregos e aprovação ambiental.


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