Economia

Bolha imobiliária opõe especialista e
dirigente autoritário. Quem perde?

DANIEL LIMA - 17/03/2014

Uma das leituras que mais me chamaram a atenção no final de semana que passou (e olhem que leio muito, mas muito mesmo) foi o debate virtual da página três da Folha de S. Paulo, que opôs protagonistas do mercado imobiliário: William Eid Junior, professor titular e coordenador do Centro de Estudos em Finanças da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e o engenheiro Paulo Safady Simão, presidente da Câmara Brasileira da Indústria de Construção. Entraram em campo na página de opinião da Folha de S. Paulo o que chamaria de responsabilidade social versus autoritarismo corporativo.


 


Não à toa o que temos na Província do Grande ABC Milton Bigucci como simbologia da segunda categoria, a de autoritarismo corporativo e de baixíssima responsabilidade social, ocupante há duas décadas da presidência do Clube dos Construtores e Incorporadores.


 


Restrições legais da Folha de S. Paulo me impedem de transcrição integral dos dois textos, mas os conceitos antagônicos estão enraizados de tal forma que não há como desprezá-los. Leiam algumas conclusões do estudioso William Eid Junior, pinçadas do artigo em que defende a existência de bolha imobiliária. Para ser mais preciso, ele lembra que expôs a tese inicialmente havia dois anos e, para variar, não ganhou ressonância porque a mídia, de maneira geral, protege o setor imobiliário fartamente distribuidor de prendas publicitárias. Só mesmo quando a vaca está indo para o brejo o noticiário converge à realidade. Os principais trechos do artigo de William Eid:


 


 A renda não acompanhou a valorização dos imóveis, os aluguéis não remuneram adequadamente o investimento em imóveis e o custo de produção não justifica os preços elevados.


 


 Quem fornece dados sobre o mercado é parte interessada – os vendedores de imóveis. É claro, a mensagem sempre será otimista.


 


 As bolhas não precisam necessariamente estourar, pois os preços podem se ajustar lentamente, desde que não haja gatilhos.


 


 O prêmio Nobel de Economia Roberto Shiller esteve no país e afirmou que havia uma bolha imobiliária. Foi ele quem previu as bolhas de 2001 e 2007 nos Estados Unidos. O professor de Yale apontou a alta valorização dos imóveis, somada à inexistência de uma explosão de crescimento, como indicador da existência da bolha no país.


 


 A tendência de composição do mercado, no qual os apartamentos pequenos, de um dormitório, respondem cada vez mais por maior parcela de vendas de imóveis no país, indica que o modelo se esgotou. Não há renda para comprar imóveis grandes e, portanto, os preços começam a se estagnar.


 


 Os índices imobiliários disponíveis não são bons indicadores. Alguns usam preços anunciados, que, como sabemos, são muito diferentes dos práticos. Outros usam valores de garantias dadas em financiamentos. Outros ainda usam imóveis dos fundos de pensão. De toda forma, o índice do Banco Central de imóveis, que usa valores de garantias, apresentou uma valorização de 8,3% em 2013. Descontada a inflação, sobra pouco mais de 2% de valorização para o proprietário do imóvel. Se descontarmos os custos de manutenção e a comissão de vendas, vemos que o resultado líquido para quem comprou imóvel no início de 2013 e o vendeu no final do ano foi negativo.


 


 Com a estagnação dos preços nominais, e essa tendência é nítida, a inflação faz o trabalho de desmonte da bolha. Se o preço nominal em um ano permanece o mesmo, dando a ilusão de um volume de riqueza estável, a inflação levou embora 6% do seu patrimônio. Em três anos, isso vai significar quase 20% de perdas. Em cinco anos, quase 35%.


 


 As incorporadoras e construtoras já sentem os efeitos do final do processo. O volume de imóveis comerciais vazios, incluindo shoppings, é enorme.


 


O debatedor autoritário


 


Agora, prestem atenção nos parágrafos mais substantivos do texto do representante das empresas de construção e incorporação, Paulo Safady Simão.


 


 Além do preço, existe uma série de condições necessárias para a formação de uma bolha imobiliária. Nenhuma delas se faz presente no país.


 


 O país vive hoje uma situação bem diferente daquela que gerou a crise americana. Nosso sistema financeiro é um dos mais seguros do mundo. Aqui, a instituição que dá origem ao crédito “morre com o crédito”, ou seja, sempre será a responsável final pelas operações. Esse aspecto praticamente elimina a possibilidade dos chamados derivativos de alto risco.


 


 No Brasil, o financiamento imobiliário equivale a cerca de 8% do PIB. Nos Estados Unidos, o financiamento imobiliário equivalia, na época da crise, a aproximadamente 80% do PIB norte-americano.


 


 O comportamento dos preços dos imóveis no país é resultado da relação entre oferta e demanda. Com mais facilidade no acesso ao crédito e com a melhoria dos níveis de renda das famílias brasileiras, a procura pela compra de imóveis cresceu.


 


 Então, por que algumas pessoas insistem em defender essa tese da bolha, que além de não representar a verdade gera insegurança? Há várias explicações. A mais provável é a falta de conhecimento sobre o setor que, de fato, é complexo. Outra diz respeito a indivíduos que veem nesse discurso uma oportunidade de se aproveitar de problemas pontuais para desenhar um quadro de crise sistêmica e, com isso, se projetarem como gurus. Há ainda um terceiro grupo, dos que fracassaram no mercado e tentam alterar na marra as condições de regulação.


 


 A liberdade de expressão é fundamental, mas pessoas que emitem opinião sobre o mercado imobiliário precisam agir com mais responsabilidade. Difundir informações inconsistentes significa colocar a economia e a própria sociedade sob ameaça.


 


Autoritarismo é generosidade


 


Alguém ainda tem dúvidas de que fui generoso ao afirmar que o representante do mercado imobiliário é autoritário? Paulo Safady Simão imporia regime ditatorial caso lhe caísse no colo qualquer poder sobre a Imprensa. A revista Exame, que demorou um bocado para transformar em Reportagem de Capa a desidratação do mercado imobiliário (e mesmo assim o fez instalando o setor de imóveis residenciais num compartimento de imunidade à crise, quando a realidade dos fatos é outra) certamente teria a edição da última quinzena confiscada. Paulo Simão talvez tenha como referência o primeiro ministro turco Tayyip Edorgan.


 


Os leitores de CapitalSocial precisam entender a mecânica dos artigos publicados na Folha de S. Paulo, na página de Tendências & Debates. Gente com agenda importante, circunstancialmente ou não, é convidada a escrever. São sempre dois convidados, um a favor e outro contrário a determinada temática. No caso da edição de sábado, o título-âncora não deixava dúvida: “Há uma bolha imobiliária no Brasil?” Um articulista não sabe o que lhe espera do outro lado.


 


Por isso o representante do mercado imobiliário enveredou por um caminho defensivo de descredenciamento da tese de bolha imobiliária que o especialista da Fundação Getúlio Vargas não abordou. A defesa da não existência de bolha imobiliária era previsível. A maioria dos fazedores de onda de subjetividades do setor empresarial esgrime os mesmos argumentos sempre. Parece que socializaram uma cartilha de como reagir às informações em contrário. Bolha imobiliária, como demonstrou o especialista da FGV, não tem tessitura estrutural única, do tipo norte-americano. Há diversidade como nas táticas do futebol.


 


No caso envolvendo o estudioso William Eid e o representante do mercado imobiliário, a diferença não poderia ser mais expressiva, portanto.  Paulo Simão, o representante empresarial, utilizou-se de argumentos mais que surrados para tentar negar o inegável que um olhar panorâmico ou específico no mercado imobiliário explicita. 


 


A pregação do dirigente classista em favor de banimento completo de textos que orientem os leitores sobre as nuances do setor encaixa-se perfeitamente no modus operandi das entidades de classe que representam construtoras e incorporadores, bem como o agregado de interesses em forma de sites especulativos sobre o movimento dos preços nas áreas mais disputadas do País. Trata-se de uma avalanche deformadora da realidade que pretende impor à força a doutrina de um otimismo vagabundo, porque enganoso à sociedade como um todo.


 


Não se pode esperar sinceridade, franqueza, clareza de raciocínio e um mínimo de isenção de um representante do mercado imobiliário mal acostumado com as benesses que a mídia oferece cotidianamente. Por isso que qualquer contraditório a especificidades do mercado e também ao modus operandi escandalosamente fraudadores dos cofres públicos é rigorosamente objeto de penalizações, quer com ameaças, quer com ações judiciais movidas a muito dinheiro. Milton Bigucci é o exemplo regional clássico dessa deformação, mas tem um exército de companheiros de bandalheiras que impactam o arcabouço de legalidades do País.


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