Desconfie para valer das estatísticas e dos estatísticos. Esse deveria ser o princípio básico de qualquer trabalho jornalístico. Observar atentamente a origem da pesquisa e suas entranhas interpretativas deveria ser regra básica para todos aqueles que fazem a interlocução entre os executores dos trabalhos e os leitores que consomem informações. Há estatísticas para todos os gostos. Dependendo da situação, dá-se sempre um jeitinho brasileiro de embromar o distinto público. Parafraseando Roberto Campos, geralmente os estatísticos vivem sob a síndrome do efeito-biquíni -- mostram tudo mas escondem o principal.
Esqueçam as sondagens eleitorais. Essas todos sabem que vivem de prestidigitação. Em muitos casos são ferramentas deliberadamente produzidas para encaminhar resultados e sobre as quais, por mais evidentes que sejam as fissuras éticas e morais, quase nada se pode fazer porque a manipulação gera o efeito profético de auto-realização pela força da divulgação em forma de verdade. Parece complicado entender essa equação?
É assim mesmo. As pesquisas eleitorais são de tradução tão complicada e o jogo de bastidores é tão violentamente avassalador que qualquer tentativa de explicação morrerá na praia da complexidade que seus formuladores fazem questão de engendrar. O fato é que o voto virtual estatisticamente divulgado com antecedência, por mais fraudulento que eventualmente seja, tende a transformar-se em voto real, limpo, irretocável, pela influência sugestionadora da mídia e a tendência de parte do eleitorado juntar-se aos supostos vencedores. Um politico antigo definiria a vocação humana de bandear-se para o lado hipoteticamente mais forte com uma frase de gosto duvidoso, mas de profundidade cortante: "Ninguém gosta de carregar alça de caixão de defunto" -- disse ele.
Metodologia conveniente
As estatísticas que medem o ritmo da produção, do comércio, do mercado de trabalho, enfim, de aspectos específicos da economia, são geralmente mais maquiavelicamente instrumentalizadas. Seus efeitos práticos são mais prolongados porque sobre suas metodologias poucos se aprofundam e por isso mesmo a credibilidade se mantém intacta.
Se o órgão estatístico está relacionado ao governo federal, estadual ou municipal, cuidado extremo, porque tem tanto maroteira para resplandecer informações que interessam sobremaneira à contestação da realidade prática quanto desvios para descartar aqueles fantasmas que insistem em aparecer nos detalhes mais recônditos e que, se observados com maior atenção, deixam de ser acessórios para se tornar pontos relevantes.
Os sindicatos de trabalhadores e institutos coligados que são mantidos financeiramente pelos descontos obrigatórios das folhas de pagamentos também exigem cautela redobrada quando da interpretação de resultados estatísticos. Impregnados pelo viés ideológico de que ao capital as pedras e ao trabalho as flores, essas instituições sempre fazem manobras aparentemente democráticas. No fundo, entretanto, são ações políticas para oferecer à platéia dados e comentários que procuram basicamente justificar a linha histórica de confronto ao que chamam de exploração dos patrões.
Tanto num caso como no outro -- isto é, nas estatísticas de organizações governamentais como de entidades trabalhistas -- o que de fato prevalece, sem que a maioria se dê conta disso, é a sistemática perseguição à prova numérica como endosso às ejaculações teóricas. Isto é: as pesquisas são direcionadas a tal ponto no sentido de que os resultados convirjam para dar sustentação científica aos discursos que nada mais interessa além da orientação enfática de que todo o resto vá para o inferno.
Dados defasados
Também as entidades de classe empresarial não escapam dos cuidados que se deve ter em analisar as estatísticas. É comum acompanhar pela mídia resultados de sondagens conjunturais que não batem com o dia-a-dia de quem respira a economia regional, estadual e nacional.
Sabem por que isso acontece? Porque os departamentos de pesquisa das entidades empresariais utilizam-se de metodologia estruturalmente falida. Seus dados não correspondem de fato à realidade porque a base do trabalho ficou envelhecida e desatualizada diante das mudanças econômicas. São, enfim, números furados. Por que números furados?
Vejam o caso da pesquisa relativa ao ritmo das vendas do comércio neste final de ano. Os jornais estamparam que houve crescimento. Os números variam de acordo com a fonte de informação e ao período de confronto dos dados. Isso pouco importa de fato porque a raiz do equívoco está na abrangência da pesquisa. Geralmente as consultas ficam centralizadas nas grandes redes de supermercados e de lojas de departamentos, que centralizam cada vez mais os negócios de varejo, em detrimento dos pequenos estabelecimentos não pesquisados. O crescimento detectado nos grandes é resultado direto do canibalismo de que são vítimas os pequenos. Mas não é o que os jornais dizem e comentam até em inocentes editoriais.
A maioria da mídia não está preparada para debruçar-se sobre as informações estatísticas com esmero, atenção e competência. São presas fáceis da manipulação deliberadamente política ou esmeradamente marquetológica. Sempre em datas especiais, e as festas de fim de ano são um desses momentos, as entidades de classe empresarial, sobremodo do comércio, fazem das estatísticas arma motivacional de vendas. Levam às manchetes de jornais informações que não têm outro propósito senão sacudir o ânimo do consumidor, despertando-o aos gastos que o 13o salário e o crediário garantem. Em seguida, festas vividas, o que normalmente se tem nos jornais são notícias mais próximas da realidade, agora sob a influência da verdade e não do marketing. Até que a próxima festa se aproxime e novamente se dê o jogo de um evidente faz-de-contas, porque lá na frente os dados circunstanciais tratam de fazer uma acerto com os dados estruturais.
Antídoto à manipulação
Nenhuma pesquisa que tenha sido programada para enganar -- e boa parte tem esse objetivo enquanto outra parte é mesmo fruto da incompetência de seus formuladores -- consegue seu intento diante de observadores astutos e razoavelmente preparados. Basta munir-se de dados macroeconômicos ou mesmo regionais, nos casos em que os estudos se restringem a um determinado território físico, para desmoronar o castelo de areia de arrogantes estatísticos.
Seria de se estranhar que num País em que sempre se dá um jeito para tudo, mesmo quando se criam fatos políticos para tentar provar o contrário, se as estatísticas não fossem o que de fato são -- um negócio que contempla, na maioria dos casos, resultados que mais convém a seus mantenedores.
Tendência ideológica
Quem não conhece o Diap (Departamento Intersindical de Apoio Parlamentar), braço de pesquisas de congressistas em Brasília cuja tarefa principal é classificar e desclassificar os parlamentares de acordo com a tendência ideológica socialista das instituições de que recebe recursos financeiros? Contando geralmente com a omissão da mídia, que não lhe traça o devido perfil quando da divulgação de avaliações e por isso lhe dá caráter de verdade absoluta, o Diap excomungou deputados e senadores que não seguiram suas prescrições quando da formulação da Constituição Federal em 1988.
As notas distribuídas aos parlamentares contrários ao gigantismo do Estado, avessos ao corporativismo e defensores da extroversão econômica foram implacavelmente baixas. Contrariamente ao que receberam deputados e senadores que privilegiavam o Estado-Todo-Poderoso simbolizado pela União Soviética que um ano depois desmoronaria, cultuavam o corporativismo e queriam a todo custo manter um autarquismo econômico que se esgotara num histórico da privilégios e concessões.
Vistos apenas sob o ângulo estatístico derivado de interpretação caolha, parlamentares mais prendados intelectualmente foram execrados, enquanto dinossauros ostentavam invólucro supostamente humanitário. Embora a globalização tenha virado de ponta-cabeça os conceitos de responsabilidade social, como poderia ser definido o conjunto de conceitos que balizam a ação pública e também a atividade privada, o Diap continua com sua enferrujada metodologia estatística a serviço do atraso sem que a mídia lhe oponha restrições quando de suas elucubrações estatísticas. E assim se dá com outras fontes de informações. O que interessa no fast-food da mídia industrializada é que a comida estatística não se esfrie. Quanto à qualidade, que se dane!
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