Economia

Perdemos investimentos. Isso
é bom ou ruim para a região?

DANIEL LIMA - 15/10/2003

A indagação pode parecer cretina aos desavisados, insana aos detratores de sempre e inexplicável aos leigos, mas tem toda a pertinência para quem não enxerga os números apenas superficialmente. O Grande ABC contou nos primeiros seis meses deste ano com anúncio de investimentos de R$ 342,62 milhões, contra R$ 557,36 milhões do ano passado. As cifras deste ano significam apenas 4,6% de tudo que foi divulgado para o Estado de São Paulo -- ou seja, metade da participação do PIB local no bolo estadual. E 38,5% menos do que foi divulgado para a região no mesmo período do ano passado.


 


Por esses indicadores, constata-se que a indagação não é só eventualmente cretina, insana e inexplicável. Onde estaria a cabeça deste jornalista a formular tamanha estupidez? Como colocar em dúvida o que está transparentemente claro: o Grande ABC se estrumbicou nos primeiros seis meses desta temporada porque reduziu sua participação no bolo de investimentos dos setores privado e público, segundo estatísticas da Fundação Seade com base em pesquisa em mais de uma centena de veículos de comunicação.


 


O rastreamento da Fundação Seade, braço pesquisador do governo do Estado, é implacável. Tanto quanto confiável na medição da temperatura econômica do Estado mais fortemente abalado nos últimos 20 anos pela guerra fiscal.


 


Então ficamos assim: sou um jornalista estúpido, imprevidente e abusado por ter formulado o título deste artigo, ao enfiar um ponto de interrogação ao final de um enunciado inconsequente, que atira na arena de questionamento algo tão translucidamente cristalino: quem perde investimentos evidentemente colhe uma má notícia.


 


Devagar com o andor porque nem tudo que brilha é ouro nem tudo que é opaco é madeira. O fato é que, quando se tratar de investimentos detectados em pesquisas como a da Fundação Seade, o melhor mesmo é acautelar-se.


 


Desconfie sempre


 


Primeiro, deve-se tomar o pulso do Município ou da região observada e procurar identificar o ritmo e a característica dos batimentos das inversões financeiras. Desconfie sempre. Recursos de investimentos em infra-estrutura de concessões públicas são temporários. Telecomunicações, saneamento básico, transporte coletivo, tudo isso leva a conclusões apressadas. Recursos de investimentos privados prevalecentemente em grandes e médias empresas industriais, ou em meganegócios comerciais, de redes nacionais e internacionais, também precisam ser ponderados. São tão excepcionais quanto destrutivos aos pequenos negócios.


 


O Grande ABC dos últimos sete anos viveu período de êxtase numérico de investimentos privados. Foram, por isso mesmo, saudados com irracionalidade gataborralheiresca. As montadoras e as autopeças com escala nacional e internacional saíram das trevas de fábricas de carroças e passaram a participar do jogo global de competitividade. As grandes redes varejistas tomaram nossos melhores quarteirões. Prestadores de serviços igualmente poderosos invadiram as áreas de maior centralidade de consumo. Exceção à revista LivreMercado, todos ficaram embasbacados com os aportes financeiros.


 


E olha que esquecemos de mencionar os shoppings, enfim descobridores do volume populacional e da herança de uma industrialização pujante que sedimentaram uma massa salarial e uma mobilidade social especiais na geografia nacional.


 


O problema é que todos aqui chegaram quando a curva de riqueza começou a embicar na esteira do esfacelamento industrial.


 


Números impressionantes


 


O que representaram aqueles milhões em montadoras e em autopeças incluídas no rol de suprimento das montadoras, além dos grandes negócios de comércio e serviços? Tudo isso levou o Grande ABC a comemorar números impressionantes no ranking da Fundação Seade e também da Simonsen & Associados, consultoria privada que igualmente se dedica a vasculhar jornais e revistas em busca de informações do gênero.


 


O problema -- e daí nada mais evidente do que a justificativa da interrogação do título -- é que todo esse aparente eldorado de investimentos veio para o Grande ABC sem o menor planejamento. O setor automotivo -- montadoras e autopeças -- correu freneticamente uma prova de 100 metros rasos de atualização tecnológica, de reciclagem profissional, de revisão de processos, quando o bom senso, fosse o governo FHC menos desastrado, indicava a premência de mudança, sim, mas por via mais segura, controlada e humanizada de uma prova de fundo, que recomenda preparo à depuração da resistência.


 


Investimentos maciços no setor industrial tiveram a consequência compulsória de mortalidade imensa da raia miúda de autopeças familiares incapazes de competir num mercado em algum tempo privilegiador às montadoras protegidas pelas alfândegas. Os pequenos negócios industriais da órbita automotiva foram atirados às piranhas da internacionalização. Sofreram o diabo diante de fortíssimas multinacionais ávidas por novos filões de produção para elevar a competitividade. A matança, como se sabe, foi generalizada.


 


Mas a mídia incompetente não se apercebeu disso. Preferiu endeusar o dinheiro investido e captado acriticamente pela Fundação Seade e pela Simonsen. Nosso parque industrial automotivo transformou-se e ainda está-se transformando em jóia da coroa internacional, mas na mesma dimensão encolheu seus protagonistas na mais insidiosa operação de enxugamento industrial que se tem notícia no mundo. Mais de 100 mil empregos industriais com carteira assinada na década de 90 explicitam essa covardia governamental.


 


Já no setor terciário, a opereta foi semelhante. Chegaram os grandes players sem qualquer política compensatória e liquidaram com a vitalidade de um varejo pouco preparado para a competição mais encardida, porque, como as pequenas indústrias familiares, mal conseguiram entender os efeitos revolucionários da estabilidade monetária depois de 30 anos de espiral inflacionária, quanto mais o desembarque de medalhões estruturalmente poderosos.


 


A cada novo negócio que aportava na região, então o terceiro pólo de potencial de consumo do País, lá estavam os triunfalistas de plantão a destilar a velha verborragia tão sábia quanto a precisão ortográfica do Seu Creisson.


 


Os superficiais transmitiram durante todo esse tempo as cenas de um jogo de aparências. Algo como um Galvão Bueno, dono de extraordinário poder de comunicação, que transforma em grandes espetáculos as peladas televisivas de um futebol internamente decadente. É claro que a rede ufanista pesca apenas os esportivamente incultos. O Grande ABC de investimentos milionários era saudado como senhor absoluto da bola, do gramado, das redes, do apito e das arquibancadas de um jogo manjadíssimo.


 


Que se lixassem os indicadores de exclusão social cada vez mais pronunciada. Que se danasse o avolumar de criminalidade. Que fosse às favas o obituário do pequeno negócio industrial. O que interessava mesmo era entrar na Rua Augusta da Felicidade a 280 quilômetros de triunfalismo por centímetro quadrado de matéria. Os sensatos, poucos na verdade, que advertiam sobre o outro lado dessa moeda de descuidos, eram taxados de pessimistas, de derrotistas.  Não faltaram aqueles que sugeriam até que um deles, este jornalista, fosse levado às barras do tribunal por se opor a um pesquisador mistificador manipulado pelos poderosos de plantão.


 


Por isso, repito: a interrogação do título deste artigo não é burrice nem provocação. Talvez menos, no caso, seja mais. Afinal, a condução do processo de modernização do parque industrial da região não pode mais suportar velocidade máxima. Resta saber se a velocidade menor que se observa não seria resultado de lombadas que se interpuseram no caminho regional, como rescaldo das derrapagens por excesso de velocidade, e que, por isso mesmo, estariam comprometendo a disputa pelo ranking de competitividade no País.


 


Saímos da escuridão tecnológica, avançamos como supersônicos e agora, provavelmente, a situação seja de quase paralisia porque duas vertentes estariam se manifestando: o capital investido anteriormente não conseguiu a rentabilidade desejada num País que patina e quem não acompanhou aquele ritmo simplesmente está fora do jogo, esperando a morte chegar. 


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