Pode um povo como o brasileiro, culturalmente devoto do Estado-todo-poderoso, transformar-se em símbolo do empreendedorismo? Não só pode como é. Um em cada oito adultos brasileiros está começando novo negócio, enquanto nos Estados Unidos a proporção é de um para 10 e no Japão, de um para 100. O resultado da pesquisa internacional que apontou o Brasil como a primeira nação em iniciativa empreendedora entre 21 países não deixa de surpreender devido ao histórico de dependência do Estado. Mas agora os tempos são outros.
Ufa!, e que tempos. Enxugamento industrial, desemprego, fim da ciranda inflacionária, gangrena das finanças de governos federal, estaduais e municipais, tudo isso tem seu preço. Para Marcos Schlemm, coordenador no Brasil do Projeto GEM (Global Entrepreneurship Monitor), instituição criada pela London Business Scholl e pelo Babson College de Boston, os motivos que levam o brasileiro a ter mais iniciativa estão nos baixos salários, na busca de renda complementar e no fato de o Estado não ser mais um grande empregador.
Não há estatísticas sobre o grau de empreendedorismo no Grande ABC que possam estabelecer qualquer base de comparação com outras regiões. O que se tem na prática -- e isso é observado por consumidores de produtos e serviços -- é que o Grande ABC cada vez menos industrial está-se tornando cada vez mais empresarial. Levas de trabalhadores que perderam empregos na indústria de transformação, sobretudo da cadeia automotiva que responde por quase 70% do PIB regional, viraram pequenos empreendedores. A maioria é formada de comerciantes.
Informalidade salvadora
O problema é que essa massa de empreendedores é desconhecida estatisticamente. Como a informalidade desses negócios é o salvo-conduto à sobrevivência num País onde a burocracia da regulamentação compete em dificuldades com o cipoal de impostos, qualquer divulgação pretensamente voltada para a quantificação e qualificação dos empreendedores de micro e pequeno porte não passa exatamente disso -- de pretensão.
Numa análise publicada em agosto de 1998, LivreMercado chegou a dimensionar a quantidade de negócios no Grande ABC com base no contingente de consumidores de energia elétrica revelado pela Secretaria de Energia do Estado. Em 1990 havia 38.252 estabelecimentos de serviços e comércio na região, contra 55.305 no final de 1997 -- ou seja, houve crescimento de 45%. Mais de 17 mil novos negócios em comércio e serviços se consolidaram na região no período, dos quais 5.816 a partir do Plano Real. Entre 1990 e 1997, 177 novos negócios se tornaram realidade na região a cada 30 dias. Só constaram da lista as empresas em atividade, isto é, o saldo do período. Nos dois últimos anos, desde a privatização dos serviços de energia elétrica, não há estudos atualizados sobre o universo de consumidores.
É muito provável que, apesar do avanço nos últimos anos, o Grande ABC esteja perdendo a disputa de empreendedorismo para outras regiões brasileiras. A conclusão seria um aparente contra-senso, porque o desenvolvimento econômico da região se deu justamente pela força da livre iniciativa, enquanto outras regiões metropolitanas experimentaram em maior escala a supremacia da economia vinculada ao Estado. Na verdade, o que se tem é um paradoxo.
Empreendedorismo tardio
O empreendedorismo tardio de pequenos negócios no Grande ABC, que tem prevalecido nos últimos 10 anos, é consequência da quebra do contingente empregado no setor industrial. Enquanto oferecia empregos abundantes no setor de produção, não havia por que esperar salto de empreendedorismo no Grande ABC. Afinal, como se sabe, empreender é arriscar. Entre arriscar e ter um bom emprego, é claro que a segunda opção prevaleceu ao longo do crescimento econômico da região. Já em municípios e regiões historicamente pouco industrializados, a tendência empreendedora decorre da falta de alternativa empregadora.
A pesquisa realizada pela Global Entrepreneurship Monitor ouviu dois mil adultos e consultou 55 especialistas de todo o País para chegar à conclusão de que o empreendedorismo é forte nas mulheres e jovens. É significativa a participação de pessoas entre 18 e 24 anos, enquanto na maioria dos países a iniciativa começa aos 25 anos. O pico da atividade empreendedora em todo o mundo foi detectado na faixa entre 25 e 34 anos.
No Brasil, há uma mulher empreendedora para pouco mais de dois homens, o que coloca o País entre os mais predominantemente equilibrados. Uma situação bem diferente da encontrada na França, onde há 12 homens empreendedores para cada mulher. O que a pesquisa da GEM não informa é que o avanço das mulheres reforça o orçamento de famílias cujos chefes perderam empregos ou tiveram vencimentos sensivelmente reduzidos ao se transferir para atividades do comércio e de serviços.
Mortalidade elevada
A pesquisa também detectou a dramática realidade empresarial que aponta a morte prematura de 48% dos negócios antes de completarem 42 meses de atividades. O coordenador Marcos Schlemm afirma que os mecanismos de apoio ao empreendedorismo nacional ainda são falhos e castigam sobretudo os pequenos. O acesso ao capital é difícil por excesso de burocracia e também por causa de exageradas exigências de garantias. De maneira geral, o empreendedor brasileiro de pequeno porte é um bravo que não desiste diante de seguidos fracassos.
E fracassos não faltam na contabilidade empresarial. A Associação Comercial de São Paulo anunciou em janeiro dados que não surpreendem quem sabe o quanto o Plano Real e a abertura dos portos mudaram as relações econômicas no País. Levantamento do economista Marcel Solimeo, diretor do Instituto de Economia Gastão Vidigal da ACSP, mostra que do total de falências decretadas na Capital paulista no ano passado, 42% foram de empresas que iniciaram atividades a partir de 1994. Do total de 1.189 empresas que faliram, 497 foram viúvas do Plano Real.
Os números de 2000 na Capital são reforçados por estudos da própria ACSP de 1998 e 1999, que confirmam a tendência de fragilidade estrutural e econômica de grande contingente de empreendedores. O economista do Instituto Gastão Vidigal foi mais longe. Considerando os dados de 1991 a 2000, o levantamento de falências aponta que 61% das empresas fundadas na última década tiveram falência decretada em 2000. O destino das empresas mais antigas é diferente, ainda segundo os estudos. O abate entre as que iniciaram atividades antes de 1970 atinge 7%, contra 9% daquelas formalizadas entre 1971 e 1980.
Falta experiência
Marcel Solimeo lembra que, além de crises internas e externas, casos do Plano Collor, convulsões financeiras no México, Ásia e Rússia, muitas empresas enfrentaram problemas porque foram abertas por empreendedores inexperientes. Mas há outras razões: a carga tributária saltou de 24% para 32% nos últimos seis anos e o canibalismo nos negócios aumentou significativamente à medida que desempregados do setor industrial foram compulsoriamente deslocados para empreender nas áreas de comércio e serviços, aumentando a concorrência.
Embora faltem números mais completos, a estatística divulgada pela Jucesp (Junta Comercial do Estado de São Paulo), escritório regional do Grande ABC, em Santo André, é emblemática da disputa cada vez mais voraz pelo naco de consumidores de produtos e serviços. A Jucesp detectou a constituição formal de 1.565 novas empresas na região no ano passado, mas o executivo do escritório, José Miguel Fagundes, acredita que o total chegue a três mil porque muitos empreendimentos ainda são regularizados na Jucesp paulistana. O estudo envolve tanto empresas do setor terciário como industrial.
A estatística da Junta Comercial não abrange o número de estabelecimentos que fecharam as portas e tampouco quantifica os empreendimentos informais. Desconsiderar essas nuances é perigoso e leva alguns a construir teorias superficiais sobre desenvolvimento regional unicamente com base no casamento dos números da Jucesp do Grande ABC com a chutometria do contingente da região que teria optado pela formalização na Capital.
De qualquer forma e com base na experiência prática, o Grande ABC e a Grande São Paulo apresentaram na última década salto numericamente positivo de novos pequenos negócios em relação às baixas, porque empreender virou a única saída dos desempregados. O problema todo é que a Grande São Paulo acumula uma década de perdas do Índice de Potencial de Consumo analisado pela Target Consultoria, empresa com sede em São Paulo. Foram 2,34 pontos percentuais de queda em relação ao bolo nacional, o que significa um Estado de Goiás inteiro de retração de consumo em 10 anos. Um retrato fiel do esvaziamento econômico da Região Metropolitana de São Paulo.
A avalanche de novos pequenos empreendimentos combinada com a transferência de parte da riqueza em direção ao Interior paulista e a outros Estados -- além da cada vez maior supremacia dos grandes conglomerados comerciais e industriais -- consolida o alastramento do quadro de exclusão empresarial.
Não é por acaso que um terço da economia da Grande São Paulo, conforme pesquisa recentemente divulgada pela Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, é formada pelo que LivreMercado denomina de capitalismo de terceira classe. São empreendedores individuais (mais da metade integrada por autônomos) e familiares de organizações com até cinco empregados que vivem na franja econômica.
Por isso, saudar o aumento do contingente de empreendedores como prova de desenvolvimento econômico social é no mínimo ingenuidade. No máximo, o fenômeno que se observa num País de tradição de Estado centralizador é a ponta do iceberg de uma metamorfose socioeconômica que não deve ser desprezada, entre outros, pela classe política, refratária às demandas dos pequenos negócios.
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