Como não podem influenciar a taxa de juros e aquecer a economia, eles usam a criatividade para conseguir trabalho. São profissionais que fogem dos padrões de mercado e muitas vezes surpreendem pelo caráter inusitado ou pouco comum da atividade que encontraram para garantir renda. Professor de tosa para animais, costureira terapeuta, vendedor de livros raros ou de cartões telefônicos usados para colecionadores, além de instrutor para quem tem trauma de dirigir veículos figuram numa força-tarefa exótica que se multiplica em tempos de altos índices de desemprego. Antes de tudo, buscam encontrar novas e rentáveis ocupações num País e principalmente numa região onde a falta de emprego cada vez mais é a regra.
Muitas atividades profissionais fora dos padrões se encaixam na escuridão das estatísticas, no que o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) considera como desemprego oculto pelo trabalho precário, isto é, quando se realiza pelo menos uma tarefa informal nos últimos 30 dias. O desemprego oculto é contabilizado como desemprego na pesquisa e expressa a tentativa de muitos de encontrar trabalho em meio à permanente mutação do mercado e da própria sociedade.
Foram 20,7% de desempregados em abril só na Grande São Paulo de acordo com o Dieese, por isso em muitos casos o trabalho informal acaba se transformando na ocupação principal ou única do trabalhador. O número de trabalhadores empregados sem registro em carteira aumentou 17% em 2003, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esse exército alcançou 3,05 milhões de pessoas sem registro em dezembro de 2003. Também considerados na maior parte trabalhadores informais, o grupo dos ocupados por conta própria (especialmente ambulantes e camelôs, mas também profissionais liberais sem empregado remunerado) cresceu 9,5% de dezembro de 2002 (3,5 milhões) para dezembro do ano passado (3,9 milhões).
São essas novas marcas que abrem espaço para as profissões incomuns exercidas por quem está disposto a inovar em troca de trabalho. Em muitos casos, a atividade excepcional surge paralela a outra ocupação e vai aos poucos apossando-se de espaço cada vez maior na agenda de quem busca encorpar o orçamento familiar.
Aplicações de reiki
É o caso da costureira Damiana Barbosa de Freitas, que passou a reforçar as finanças fazendo aplicações de reiki, técnica de relaxamento com alegadas propriedades curativas, introduzida no Brasil no início dos anos 90. Viúva e sem aposentadoria, Damiana encontrou alternativa de trabalho quando conheceu o reiki ao fazer um curso de dança cigana. A costureira passou a frequentar aulas de terapia reikiana e obteve certificado para trabalhar com a nova técnica. Foi uma descoberta providencial depois de experiências desfavoráveis à frente de um pequeno mercado em Suzano, fechado após 12 anos de atividades, vários planos econômicos e sucessivos assaltos. A renda gerada pelo reiki ainda não supera a das costuras, mas é fundamental. “Pelo menos, o pão de cada dia eu tenho” — conta Damiana, que atende em casa, no Parque Novo Oratório, em Santo André.
Histórias como a de Damiana Freitas só recentemente começaram a sensibilizar o poder público. “O problema do desemprego surgiu tardiamente na agenda política. Nos anos 1980, a prioridade era o combate à inflação, inclusive no movimento sindical. As políticas públicas de geração de trabalho e renda são recentes no Brasil, enquanto na Europa começaram após a Segunda Guerra Mundial. Fora o sistema S (Senai, Senac e Sebrae), essa preocupação surgiu somente nos anos 1990” — lembra Jorge Gouvêa, diretor de Geração de Trabalho e Renda da Prefeitura de Santo André, que desde janeiro de 2001 coordena projeto de formação e qualificação de microempreendedores e trabalhadores informais, o Empreendedor Popular.
Eliminando o medo
Quem também briga para garantir trabalho e renda e fugir dos índices assustadores do desemprego é Rodrigo Esteves Trevisan, que aos 28 anos sonha em cursar educação física ou psicologia, mas não consegue pagar os estudos apenas com o que ganha como vendedor de produtos farmacêuticos. Para ficar mais próximo da faculdade, Rodrigo combina o trabalho de vendedor, exercido pelas manhãs, com o de instrutor para quem tem aversão a dirigir no trânsito. Há um ano tirando o medo do volante da cabeça de muita gente, o jovem não pode dispensar a nova atividade. “Com um trabalho só não dá para me manter” — afirma Rodrigo, que realiza entre 60 e 70 aulas por mês, ao custo médio de R$ 10 cada.
Tudo começou há nove anos, com uma namorada que não sabia dirigir. “Ela disse que eu tinha paciência, era calmo” — conta Rodrigo Trevisan, que logo em seguida fez curso de instrutor de trânsito em São Paulo e trabalhou durante um ano em auto-escola. Outros trabalhos e alguns meses depois, Rodrigo ainda tentou voltar a ser instrutor. “Está difícil. Onde antes trabalhavam três instrutores, apenas um está empregado” — conta o jovem.
Foi quando decidiu ir à luta e começou a afixar pequenos cartazes em farmácias, sacolões e escritórios perto de casa oferecendo ensino de técnicas ao volante. Na propaganda improvisada, Rodrigo destaca as aulas para quem tem trauma de dirigir com o slogan: paciência é primordial. Clientes começaram a aparecer, todos com carteira de habilitação. Alguns se envolveram em acidentes automobilísticos, mas boa parte tem grande receio de enfrentar o trânsito ou tem parentes sem a paciência que Rodrigo difunde como princípio básico.
O instrutor calcula que cerca de 95% dos clientes sejam mulheres. Os medos mais comuns são atropelar pedestres ou ciclistas, enfrentar o tráfego intenso e manobrar o veículo em uma rampa. Para combater o medo, Rodrigo antes de tudo deixa o aluno à vontade e nunca faz advertências mais ríspidas. “Se der bronca, aí é que fica pior” — ensina o rapaz, que descobriu na mansidão uma forma de ganhar dinheiro.
Rei dos cartões
Criatividade também foi a tábua de salvação quando Sebastião Lacerda de Oliveira ficou desempregado e com a mulher grávida do terceiro filho. Partiu para o tudo ou nada e se estabeleceu como ambulante na Rua Coronel Oliveira Lima, no Centro de Santo André. Para vender, tinha apenas sua coleção de cartões telefônicos usados. “Colecionava cartões e pensei que poderia comercializar os repetidos, como as crianças fazem com as figurinhas” — conta Sebastião, que após uma blitz da Prefeitura regularizou a atividade e montou banquinha na esquina das ruas Carlos de Campos com Bernardino de Campos, onde conseguia vender nos primeiros dias cinco cartões em média, cujos preços variavam de R$ 0,05 a R$ 0,50. Perseverança foi a receita para o desempregado se transformar no rei dos cartões telefônicos de Santo André.
A sorte também deu uma mãozinha. Logo depois, um orelhão instalado ao lado da banca de Sebastião de Oliveira foi o impulso que faltava para a ampliação dos negócios. O agora empreendedor percebeu que, além de cartões para colecionadores, poderia passar a vender cartões com crédito, para usuários de telefone público. Um distribuidor deu a Sebastião alguns cartões em consignação. Como tinha custo zero, adotou como estratégia obter lucro de apenas R$ 0,10 para ganhar na escala. “Até a Polícia desconfiou que eu vendia cartões roubados por causa do baixo preço” — lembra com humor o comerciante.
A empírica política agressiva de vendas passou a ter efeito. Sebastião de Oliveira comercializa em média mil cartões por dia, 200 vezes mais do que no começo da empreitada. O trabalho é tanto que precisa da ajuda da mulher. O movimento intenso fez com que o estabelecimento em frente onde trabalhava, o Shopping de Ofertas, o convidasse a montar banca na entrada para atrair clientes.
Com o aumento dos negócios, o comerciante passou a comprar diretamente da Telefônica, sempre ganhando na escala. Foi a capacidade de perceber oportunidades que fez o microempresário começar literalmente do zero. Na época do desemprego, Sebastião precisou recorrer a R$ 10 do dinheiro que a mulher recebia mensalmente do Programa Renda Mínima para comprar os primeiros lotes de cartões. A experiência do giro rápido o levou a outra proeza: fazer empréstimo no banco e ganhar dinheiro graças ao giro. “Se pegar R$ 500, compro 140 cartões que vendo no mesmo dia. Em quatro dias nesse ritmo, já tenho suficiente para pagar o empréstimo e ainda me sobram outros 19 dias para ganhar dinheiro. Você pode pensar em economia de diversas maneiras. Há casos em que não compensa emprestar dinheiro a juro, mas há outros em que há vantagens, principalmente quando não se tem capital de giro” — explica o comerciante, que gosta de mostrar sua sábia matemática digitando uma calculadora.
Sebastião de Oliveira passou a atuar na distribuição e hoje fornece cartões para cerca de 150 jornaleiros e outros vendedores de rua. Já colocou um sobrinho para entregar de moto a mercadoria. Os cartões para colecionadores ainda são vendidos em sua banca, mas representam pequena parcela do movimento. Sebastião não revela quanto ganha por mês, mas garante que consegue viver dignamente, mesmo morando na ex-favela Sacadura Cabral. “Não estou rico, mas pago minhas contas e declaro Imposto de Renda” — fala com ponta de orgulho.
Sebastião de Oliveira representa um grupo de ex-assalariados e hoje empreendedores formais ou informais, que, além de garantirem a sobrevivência, sinalizam até mesmo para tendências de mercado, de acordo com especialistas. “São pessoas que não tiveram acesso à formação universitária, mas vêem na prática a necessidade de buscar outros caminhos. O Sebastião me surpreendeu pelo interesse em buscar novos conceitos de negócios” — avalia João Marcos Rufato, monitor da ONG Politeo, que atua em parceria com o poder público na formação de microempresários.
Livros raros
O exótico pode também se transformar num promissor nicho de mercado. Muitas vezes, o que começa como hobby passa a exigir dedicação crescente e os profissionais deixam antigas ocupações para assumir o negócios dos sonhos. É o caso do arquiteto Paulo Marcelo Rezzutti, de Santo André, nascido em família apaixonada pelas artes e amante da literatura, e que coloca a profissão praticamente em segundo plano para se dedicar de corpo e alma ao que antes não passava de entretenimento. De tanto procurar obras sobre genealogia (estudo sobre ascendência e relações familiares), começou a vender livros antigos e raros na Internet. Em apenas sete meses transformou-se no proprietário e único funcionário de um dos poucos sebos online do País, o Bazar das Palavras.
Paulo Rezzutti atuou em empresas de eventos e prestou assessoria para o Morumbi Fashion, hoje conhecido como São Paulo Fashion Week. Enquanto trabalhava, aumentava a coleção de quase dois mil livros da biblioteca particular. A fascinação pela genealogia o levou a procurar e vender obras sobre o tema em sites de leilões virtuais. “Percebi que também poderia ganhar dinheiro com essa atividade graças à necessidade do mercado” — admite Paulo. A partir daí foi dada a largada para o Bazar das Palavras (www.bazardaspalavras.com.br), que em menos de um ano tornou-se referência quando o assunto é encontrar livros raros, com tiragens limitadas, obras desaparecidas ou editadas no Brasil até 1900.
São pedidos de diversas regiões do Brasil, além de brasileiros que moram em países como Portugal, França, Alemanha e até no Japão. “O crescimento foi assustador em tão pouco tempo” — descreve o livreiro, que começou vendendo apenas 15 livros, volume que passou a ser comercializado semanalmente pelo site, visitado de 20 a 25 vezes por dia. Na maioria são historiadores, estudantes de mestrado ou doutorado e amantes de livros antigos. O Bazar das Palavras oferece obras como Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, por apenas R$ 5, ou até a primeira edição do Journal of a Voyage to Brazil, da inglesa Maria Graham, por R$ 2,5 mil.
No site são encontrados perto de dois mil títulos, mas o acervo chega a 40 mil obras, que ocupam antigo escritório localizado na região central da Capital. “Caso o visitante não encontre o título procurado, ele pode enviar o e-mail. No prazo de 24 horas saberá se existe ou não” — garante Paulo Rezzutti, que quinzenalmente manda e-mails com as novas aquisições para 250 nomes cadastrados.
Tosadora de animais
Quem optou pelo excepcional definitivamente foi Roseli Figueiredo, que se define como esteticista de animais. Há 10 anos Roseli deixou de trabalhar como técnica de atendimento da Eletropaulo para dar banho e tosar animais. Hoje dá aulas em pet-shop, tem um canil profissional e até faz campanha para regulamentar a profissão de tosador. “Ainda hoje pensam que tosador é coisa de meio termo, hobby ou esporte. O mercado cresce cada vez mais, mas a maioria dos profissionais que trabalham em pet-shop não é habilitada e boa parte dos acidentes com animais está ligada a essa falta de especialização” — afirma Roseli, que dá aulas na Puppy Brasil, uma pet-shop de Santo André.
A tosadora garante que, mesmo sem estatísticas, o mercado de estética para cães e gatos é uma bola de neve. “Ruas antes com um só pet-shop hoje têm três ou quatro” — observa Roseli, que entre os alunos têm vários profissionais liberais interessados, segundo ela, em conhecer o negócio para montar pet-shop. “Advogados são os que mais têm procurado os cursos, mas não faltam engenheiros, dentistas e médicos, além de veterinários, que são os mais comuns” — comenta.
Sebastião, Damiana, Rodrigo, Paulo Rezzutti e Roseli conseguiram encontrar novos conceitos de negócios mas também identificaram outras necessidades de uma sociedade em constante mudança. “A costureira massagista, o vendedor instrutor e o empreendedor de cartões são necessários se formos pensar o desenvolvimento com outra lógica, ligada à melhoria da qualidade de vida e não apenas ao PIB (Produto Interno Bruto). Existe exotismo apenas porque as coisas são novas” — analisa Jorge Gouvêa, diretor de Geração de Trabalho e Renda da Prefeitura de Santo André.
Total de 1894 matérias | Página 1
21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?