O Diário do Grande ABC trocou de dono há uma década mas não se livrou da bipolaridade editorial que o fragiliza como ferramenta de consulta analítica. Ai de quem se fiar nas reportagens de cunho econômico do jornal. A dualidade de interagir com a euforia do céu e a depressão do inferno atrelada ao pantanoso terreno que separa a valorização forçada do mercado regional e a necessidade de ser fiel à realidade coloca os editores e repórteres do jornal à beira da loucura. Outras publicações locais não são diferentes na essência, mas espertamente são menos estabanadas. Pressões comerciais ajudam a explicar a enfermidade mas há também frouxidão dos responsáveis pelas redações.
A manchetíssima de sexta-feira da semana passada e a manchetíssima de anteontem, terça-feira, são os mais recentes exemplares de que o Diário do Grande ABC flerta persistentemente com um quadro de esquizofrenia. Como ombudsman não autorizado dos veículos de comunicação da região não tenho como fugir do tema porque os leitores menos atentos precisam compreender o que se passa na região além das manchetíssimas, reportagens e entrelinhas dos jornais.
Em 12 de dezembro último, sexta-feira, o Diário do Grande ABC abriu a seguinte manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página): “ABC tem 4º maior PIB do País”. Quatro edições depois, terça-feira, 16 de dezembro, a manchete foi diametralmente oposta: “Indústria da região perde 10.619 vagas em 9 meses de 2014”. Hão de dizer os leitores menos exigentes que as duas manchetíssimas refletiam situações distintas, portando a abordagem do jornal foi correta. Bobagem. Uma coisa tem tudo a ver com a outra mas pareceu não ter porque esconderam a que tinha e expuseram a que também tinha.
Abrindo brechas demais
Para começo de conversa, o Diário do Grande ABC procurou fazer das tripas do texto coração de manipulações da realidade do PIB regional na temporada de 2012. A manchetíssima e o texto de primeira página, assim como a matéria de página interna da edição de sexta-feira passada, foram fermentados quase que integralmente com insumos de positivismo fundamentalista. Procurou-se esconder entre vírgulas e com extraordinária inventividade gráfica a queda retumbante do PIB da região naquela temporada, de quase 6% em relação à temporada anterior.
Ou seja: uma manchetíssima honesta seria mais ou menos nesta base: “Grande ABC perde 6% do PIB em ano que Brasil cresce apenas 1%”. Fora isso, fora esse enquadramento ético, qualquer alternativa levada a cabo, como se levou, se provou lesiva à integridade informativa.
Sem meias palavras, o que se praticou naquela edição do Diário do Grande ABC foi estelionato informativo. Deliberadíssimo. O editorial daquela edição (ou seja, a opinião formal do jornal) não deixa dúvidas de que os cabeças da redação conheciam os números. “Quarto PIB. Por enquanto” foi o título escolhido àquele espaço segregado à opinião. Havia embutido um duplo sentido, claro, por conta da contaminação da euforia canhestra da manchetíssima. Mas o tom era de preocupação. Trocando em miúdos: fizeram da vitrine do jornal um ensaio bem acabado de festa de arromba, enquanto nos quartos do fundo do espaço do editorial mantiveram uma sessão de psicanálise.
Como é possível, portanto, que numa mesma edição o Diário do Grande ABC trate com euforia o comportamento do PIB da Província do Grande ABC, alçando-o ao quarto lugar no ranking nacional (uma balela, como mostramos inclusive na edição de anteontem sobre a perda de espaço para a Grande Osasco) e, na página seguinte, de Editorial, manifesta-se em tom meio alegre e meio inquietante, chamando a atenção dos leitores para a possibilidade de Curitiba vir a desbancar nosso território?
Ai é que entra em campo a bipolaridade herdada de tantos outros comandos de redação e de uma impregnada intervenção do setor comercial que, por não entender bulhufas de jornalismo, sempre se mete a dar palpites onde não deve.
Passado que se repete
Como o Diário do Grande ABC não aprende com o passado (e a maioria dos jornais exercitam o mesmo vício), não demoraria nada, nada, para o surto de esquizofrenia se manifestar. É aí que entrou em campo a manchetíssima de terça-feira, a tal dos empregos decepados no setor industrial nesta temporada. Notícia que outros veículos da região também publicaram com empenho distinto.
O ABCD Maior, ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e às esquerdas em geral, dispensou espaço bastante discreto porque, mais que informar aos leitores, pratica política de proteger os interesses do Partido dos Trabalhadores. Sobre o PIB regional, então, o ABCD Maior não imprimiu uma única linha. Esse é o modelo alternativo à chamada “imprensa conservadora” que as esquerdas pretendem implantar nos meios de comunicação no País.
Mas, voltando à manchetíssima de empregos eliminados, publicada pelo Diário do Grande ABC, de bom mesmo foi que o jornal resolveu assumir (tomara que não seja temporariamente) a lógica econômica mais saudável de que são os postos de trabalho do setor industrial que respondem pelas perspectivas boas ou ruins da economia regional. Dar destaque aos empregos que se foram, e se foram em proporções alucinantes nesta temporada, foi um encaixe perfeito.
Em outras situações semelhantes o Diário do Grande ABC preferiu a política de avestruzes. À manchetíssima de terça-feira do Diário não cabe reparo algum. Exceto o fato de que sobreveio à febre do triunfalismo da sexta-feira anterior.
Conveniência editorial
Com a experiência de quem está nessa jornada de escrever reflexivamente há toneladas de anos, indicaria aos responsáveis pela primeira página do Diário do Grande ABC que nossa convivência digital terá menos fissuras na medida em que jogarem na lata do lixo qualquer tipo de preocupação com o editorialmente conveniente.
Uma meia verdade levada a cabo hoje para supostamente agradar a determinado nicho de leitores e de forças internas vai custar muito caro amanhã. Sempre e sempre aparecerá uma manchetíssima obrigatória a contradizer o malfeito anterior. Ao longo dos tempos sempre foi assim. Tanto que a coleção de bobagens do Diário do Grande ABC que meus arquivos registram é um balde de água fria nas festividades provincianas de 16 mil edições publicadas desde os tempos de News Sellers.
Fazer jornalismo é sim um risco permanente na construção da história, mas é muito mais provável que os registros negativos sejam minimizados quando se tem uma configuração editorial que leve em conta a insubordinação ao politicamente correto, embora socialmente estarrecedor.
Como foi o caso da sonegada manchetíssima do PIB que desabou. A noticia equivaleria aos grandes jornais desprezarem situação análoga em se tratando do Brasil, substituindo a hecatombe por algo mais ou menos assim: “Brasil tem o maior PIB da América do Sul”.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)