A não ser que o memorialista Ademir Medici resgate um pouco do muito que Rafael Guelta escreveu ao longo de uma brilhante carreira, o Diário do Grande ABC estará cometendo mais um crime de lesa-jornalismo regional ao reduzir a uma notinha sem expressão a morte desse que foi um dos profissionais mais talentosos que passaram pela Província do Grande ABC. Palavra insuspeita de quem jamais foi amigo de Rafael Guelta. Não que não lamente por isso. Sempre falta tempo à aproximação entre jornalistas de editorias distintas. Teria sido ótimo ter tido Rafael Guelta mais perto durante aqueles anos em que brilhou na revista LivreMercado, comandada por mim. Rafael Guelta era a síntese do repórter sensível, do redator meticuloso e do editor atento. Um caso pouco comum de complementariedade funcional. Na maioria das vezes os grandes profissionais não preenchem esse triatlo de qualificações.
Escrever sobre Rafael Guelta é muito mais importante do que ressaltar o descaso do Diário do Grande ABC aos profissionais que o tornaram no passado um veículo tão respeitável que a força inercial o sustenta no presente.
Rafael Guelta foi-se no começo deste ano depois de tecer ponto por ponto, vírgula por vírgula, um desempenho que a maioria dos jornalistas deveria projetar. O diabetes que tanto o infortunou foi mais forte que a vocação à vida alegre que o tornava companheiro de trabalho agradável, instigante, persuasivo. Os anos que passamos juntos na revista LivreMercado foram de extraordinário valor. Poderiam ser melhores ainda não fosse a corrida contra o relógio das pautas a executar.
Doente e desempregado
E tudo começou quando vi aquele corpo franzino e debilitado no canto de um restaurante de Santo André no final dos anos 1990. Não o identifiquei prontamente. Tivemos contatos tangenciais no Diário do Grande ABC, eu como repórter e editor de Esportes, e depois de Economia e de chefe de Redação, ele como integrante de várias editorias. Foi uma companheira de trabalho que me chamou a atenção àquele homem envelhecido, enquanto me dirigia ao balcão de pratos e talheres para me servir. “Veja, é o Rafael Guelta”.
Sabia que Rafael Guelta fora demitido do Diário num momento difícil de sua vida. Sabia que o diabetes o estraçalhava e o estigmatizava. As más línguas diziam que a enfermidade era outra, supostamente contagiosa e preconceituosa. Só não imaginava que Rafael Guelta apresentava-se tão semelhante a um cadáver ambulante.
Não voltei à Redação sem antes me dirigir a ele. Pedi que fosse tomar um cafezinho na Rua Uruguaiana, onde estávamos sediados. Não lhe prometi nada. No trajeto de volta não resisti a imaginar um jeito de tê-lo na equipe. Mesmo com freelance fixo. Na semana seguinte Rafael Guelta estava em minha sala. Conversamos o suficiente para que passasse a constar da lista de colaboradores daquela que foi a melhor publicação regional já produzida no País. Ele estava frágil mas lúcido como poucos. Haveria de encontrar motivação para reerguer-se. Disse-lhe que o queria para grandes matérias.
Rafael Guelta era exuberante como repórter, mordaz como redator e criativo ao extremo como editor. O conceito que implantei na revista LivreMercado, de que produção, redação e edição eram funções compulsórias a todos os repórteres, parece ter sido premonitório para que Rafael Guelta explodisse na grandiosidade de um talento que, no Diário do Grande ABC, estava sufocado pela produção de notinhas que qualquer foca seria capaz de entregar à chefia.
Rafael Guelta produziu grandes textos na LivreMercado. É até difícil escolher o melhor entre todos. Fico com o que consta do link logo abaixo, porque representou uma das grandes e constantes inquietações daquela publicação – perscrutar o futuro econômico e social da Província do Grande ABC. “Peão, uma ova”, me afirma Malu Marcoccia, então chefe de Redação de LivreMercado, foi uma escolha pessoal de Rafael Guelta. O título foi levado à Reportagem de Capa.
Nova realidade econômica
Rafael Guelta sintetizou com aquele mote, pela primeira vez na mídia nacional, as transformações que germinavam no chão de fábrica das montadoras da região. Mostrara também o quanto desprezava o jornalismo de paletó e gravata, excessivamente formal, acadêmico, repetitivo, que já infestava as redações em geral. Rafael Guelta captou com facilidade o que chamaria de espirito audacioso e reformador de LivreMercado.
A última vez que conversei com Rafael Guelta foi tempos após aquela Reportagem de Capa. Alguns meses depois, para ser mais preciso. Ele entrou em minha sala e conversamos durante 10 minutos. Choramos discretamente. Ambos de felicidade. Rafael acabara de me dizer que fora chamado para compor a equipe de assessores de comunicação da Volkswagen do Brasil, convidado por Júnia Nogueira de Sá, até pouco tempo antes ombudsman da Folha de S. Paulo. A tristeza de perder um craque não se sobrepôs à alegria de ver Rafael Guelta respirar novos ares, receber salários muito mais elevados e dar continuidade a uma carreira de comunicação que não condizia com a situação em que o encontrei naquele restaurante. Agora Rafael Guelta parecia outro homem. Estava saudável, alegre e esperançoso de novos tempos. O abraço e a emoção que compartilhamos são inesquecíveis. Principalmente agora.
Sei que Rafael Guelta seguiu sua vida de sucesso. Ultimamente era assessor especial do presidente da Fiesp, Paulo Skaff, destacado como analista que preparava boletins que o dirigente, ainda outro dia candidato ao governo do Estado, consumia às primeiras horas da manhã para se manter atualizado sobre o que se passava de mais importante. Rafael Guelta era, portanto, a cabeça de comunicação do presidente da Fiesp.
A notinha que o Diário do Grande ABC publicou no segundo dia do novo ano anunciando que Rafael Guelta morrera em Campinas, quase que me passou despercebida. Certamente não correria esse risco se Rafael Guelta, como tantos outros profissionais que ajudaram a erigir o capital de credibilidade do Diário do Grande ABC, obtivesse do comando de redação tratamento análogo ao oferecido ainda outro dia ao anônimo parente do presidente da empresa. Quando o critério editorial leva em conta laços consanguíneos dos diretores de um jornal em vez do histórico profissional, só resta a esperança de que o memorialista da casa intervenha e amenize um quadro sistêmico de descaso com a classe dos profissionais da qual faz parte.
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