Há excedente estimado de oito mil trabalhadores nas montadoras de veículos sediadas na Província do Grande ABC. Nem pensem em questionar esse universo de ameaçados pela degola de competitividade ouvindo responsáveis pelos recursos humanos da Volkswagen, da Ford, da Scania, da General Motors e da Mercedes-Benz. A contabilidade é resultado de observações, anotações, fontes secretíssimas e muito mais. O Brasil inteiro paga a conta da ineficiência produtiva das megafábricas da região, intimíssimas de um sindicalismo que enxerga apenas a metade saudável da laranja da competitividade nacional e internacional.
Ao que parece, a greve na Volkswagen que ameaça demitir os primeiros 800 trabalhadores de mais de mais de dois mil de um quadro obeso, poderá virar rastilho de pólvora. Quem estiver apostando na força do sindicalismo petista e no lobby do Clube das Montadoras, no caso a Anfavea, deve tirar o cavalinho da chuva. É pouco provável uma reviravolta favorável à manutenção do paternalismo automotivo. O risco da medida seria uma crise no principal núcleo do governo Dilma Rousseff, comandado pelo ministro liberal Joaquim Levy.
Não é de hoje que relutamos em enfrentar a realidade macroeconômica de que somos uma região que come poeira no setor automotivo. Fazemos de tudo para utilizar uma máscara de proteção contra as intempéries trabalhistas e econômicas impostas por outras regiões do País que receberam nas duas últimas décadas uma montanha de investimentos no setor.
Participamos de uma competição encardida com unidades de várias marcas e nacionalidades espalhadas pelo País e pretendemos nos comportar como nos velhos tempos de monopólio automotivo. Plantas mais enxutas chegaram atualizadíssimas em tecnologia e em preparação técnica dos profissionais contratados. Nossas conquistas e equívocos históricos tornam as montadoras locais rentáveis apenas sob proteção governamental num ambiente de produção extremamente volumoso para compensar os índices de desperdícios frente às demais.
A hora de transformações
A hora da verdade chegou faz tempo mas foi manipulada e levada adiante. O lobby de lideranças trabalhistas e empresariais no governo federal assegura sempre um jeitinho de introduzir mecanismos estranhos ao mercado. Redução de alíquotas de impostos que turbinam produção e vendas mas causam rombos nos orçamentos federal, estadual e municipal favorece grupos organizados como o dos metalúrgicos da Província do Grande ABC.
Não é nada politicamente correto apontar o dardo da justificativa de turbulências automotivas na direção do alvo metalúrgico da Província do Grande ABC, mas a sociedade não pode passar por deformações informativas. A realidade dos fatos é que há muito tempo perdemos o bonde da competitividade automotiva. A ladainha de que temos a melhor mão de obra do setor virou piada de salão. Os vícios em forma de cultura do trabalho permeada de injunções sindicais não podem ser eliminados da balança de avaliações. Sem contar que a disseminação de cursos técnicos diretamente nas plantas encurtou tremendamente a distância que separava os bons de bola da região e os pernas de pau de outras fronteiras nacionais.
Os executivos das montadoras sediadas na Província do Grande ABC não são bobos nem nada. Eles têm planilhas prontíssimas que registram até que ponto determinada curva de custos é suportável à competitividade nacional. A retirada de desonerações fiscais decidida pelos novos ministros enfiados goela abaixo da presidente Dilma Rousseff, bem como outras medidas que restringem o desencaixe de recursos federais, acionaram luz vermelha no painel de controle. Sem contrapartidas sob medida para atenuar o custo trabalhista muito acima da média nacional, a Província do Grande ABC não tem futuro como campo de operação automotiva.
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso nada camarada com os sindicalistas locais, vivenciamos os piores momentos da economia regional. Perdemos um terço do PIB como consequência do fosso de tratamento dispensado às montadoras protegidas pelas alfândegas ante o real valorizado e as autopeças entregues às baratas de uma concorrência desigual. Agora, ao que tudo indica a conta também vai ser endereçada às montadoras mais antigas.
Primeira classe
Os trabalhadores de primeira classe das automotivas vão sentir na pele o que os primos pobres das pequenas e médias empresas do setor sofreram ao longo dos anos 1990 e voltaram a acusar dores no ano passado, com a queda da produção no setor.
O que se pergunta é até quando o descompasso de competitividade do setor automotivo permanecerá intocável na Província do Grande ABC frente à desvantagem concorrencial.
O choque que o movimento grevista na Volkswagen de São Bernardo ameaça propagar por toda a região seria apenas um acontecimento sazonal imediatamente contornado pelo poderio sindical com apoio das lideranças automotivas em busca de proteção fiscal ou se trata de processo intocável de consequências ainda mais profundas?
Também não é politicamente correto lembrar que as dores que podem levar as montadoras de veículos da região a repensarem investimentos por conta das dificuldades adicionais de superar os obstáculos são dores pelas quais deveremos passar em busca de novos tempos. Explico: enquanto o setor automotivo regional seguir disparadamente à frente das demais geografias em termos de custos trabalhistas, os investimentos no setor se darão apenas em situações especiais, de vantagens mútuas asseguradas pelo lobbismo federal. Quando a fonte secar -- e poderia estar secando a partir da decisão da Volkswagen -- teremos obrigatoriamente uma reversão de custos relativos da mão de obra nas grandes empresas.
Há outro aspecto que coloca em xeque a suposta vantagem de que os trabalhadores de primeira classe das montadoras de veículos são uma vantagem comparativa extraordinária para a Província do Grande ABC porque formam exércitos potenciais de classe média de verdade. Na medida em que a realidade especial desses profissionais afasta novos investimentos não só do setor mas de outras atividades na região, por conta do que se convencionou chamar de contaminação da pauta sindical, mais se acentua a dificuldade de a Província do Grande ABC reagir estruturalmente.
Fábricas viram shoppings
Nunca é demais citar uma declaração de um mandachuva da Brastemp ao justificar a debandada da empresa então sediada em São Bernardo, transferindo-a para Santa Catarina. Ele reclamou acidamente da concorrência automotiva no campo trabalhista, porque o sindicato impunha pautas de reivindicações semelhantes, embora as atividades centrais da empresa não tivessem a menor semelhança com a atuação das montadoras de veículos. Eletrodomésticos e veículos jamais poderiam ser colocados na mesma plataforma de análise e reivindicações sindicais, mas como o foram durante muitos anos não poderia mesmo haver futuro numa fábrica de produtos sem o mesmo glamour e retaguarda diplomática das montadoras.
A substituição da Brastemp por um shopping center ainda em busca de clientela simboliza o esvaziamento industrial de uma região coalhada de estabelecimentos comerciais e de serviços aonde pulsavam corações e músculos industriais.
Os trabalhadores de primeira classe do setor automotivo da Província do Grande ABC provavelmente não contarão nos próximos tempos com o respaldo sindico-empresarial que transformou a indústria automotiva em espécie de ministério especial da administração petista federal. A nova equipe econômica está cansada de afirmar que já se foram os tempos de protecionismo setorial.
Ainda não chegamos ao estágio da derrocada que atinge a Petrobras, cujas ações são excomungadas pelos investidores potenciais, mas se a Província do Grande ABC fosse levada à Bolsa de Valores como espécie de empresa à espera de acionistas, provavelmente daria com os burros nágua.
No campeonato nacional de competitividade ocupamos cada vez mais as últimas posições entre as regiões potencialmente mais fortes. O Custo ABC, do qual o sindicalismo praticado nas montadoras é crucial, não é elemento a ser desprezado. Goste-se ou não.
Total de 1894 matérias | Página 1
21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?