Imprensa

Diário prefere manchetíssima de
montadoras a terrorismo na França

DANIEL LIMA - 08/01/2015

Não sei qual a decisão que você tomaria sobre o provável drama que viveu o comando de redação do Diário do Grande ABC para decidir o que ocuparia a manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) da edição de hoje, mas, para surpresa de gente equivocadamente levada a crer que estou aqui como ombudsman não autorizado para perseguir aquela publicação, respondo sem pestanejar: os editores acertaram em cheio. E só não acertaram mais porque a reportagem da edição de hoje sobre a crise automotiva que atinge a Província do Grande ABC, mais declaradamente a Volkswagen, poderia ser muito melhor, até porque foi de lascar para quem precisa e deve entender o tamanho da encrenca em que nos metemos no setor.


 


Entre a crise automotiva na Província e o atentado que fez 12 vítimas fatais em Paris não tenho dúvidas em acompanhar a escolha da manchetíssima do Diário do Grande ABC. Até porque, o jornal não subestimou o acontecimento que monopolizou as atenções da mídia mundial, ao lhe dar espaço destacado na primeira página. Só haveria uma justificativa do ponto de vista de regionalidade que deve mover sempre e sempre os jornais da região a priorizar uma manchetíssima sobre o terrorismo na França: se não houvesse nada, absolutamente nada de importante a inquietar os sete municípios locais. As montadoras estão aí para retirar essa alternativa de qualquer análise.


 


Durante os nove meses em que atuei como diretor de Redação do Diário do Grande ABC (entre julho de 2004 e abril de 2005), não abri mão do Planejamento Editorial Estratégico que concebi àquela publicação. Somente quando da morte do Papa João Paulo II em abril de 2005 demos trégua à sequência de manchetíssima regional. Por mais que houvesse um assunto de destaque regional naquela data, nada substituiria a importância da morte do então chefe da Igreja Católica. Fora isso, todo santo dia havia uma manchetíssima que tratava de aspectos variados da Província -- menos a banalização da criminalidade, como eventuais casos de homicídios.


 


Preparando o terreno


 


Naquele período de nove meses não se produziu uma manchetíssima regional apenas para justificar a proposta de conversão do jornal às raízes da própria marca. Havia um estado de espírito latente e vibrante na preparação diária de pauta que encaminhasse ao chamamento do leitorado regional. Uma equipe pequena, é verdade, mas quase toda voltada a evangelho do regionalismo, deu provas e provas de engajamento editorial.


 


Parece óbvio que o Diário do Grande ABC, o veículo mais tradicional desse território, deve mesmo imprimir manchetíssimas e outras chamadas de primeira página com temários da região. Entretanto, os leitores se enganam se acreditarem que essa premissa foi constante na história da publicação. Muito pelo contrário.


 


Na verdade, implantei esse conceito martelado em cada parágrafo do Planejamento Estratégico Editorial. Houve tempos em que o Diário do Grande ABC definia a manchetíssima de primeira página com base na manchetíssima do Jornal Nacional avidamente acompanhado pela cúpula da Redação. Também havia preocupação enorme em caminhar à sombra temática do Estadão e da Folha de São Paulo.


 


O dilema do Diário do Grande ABC de flertar com temáticas nacionais e internacionais para alçá-las à manchetíssima de primeira página ou olhar com atenção para os problemas e soluções locais sempre permeou as relações internas na Redação. Jamais houve fase tão prolongada, como na última década, de priorizar para valer a manchetíssima regional. Levou-se tão a ferro e fogo o conceito que, mesmo em situações de notáveis fragilidades, com apuração apressada de informações ou mesmo de escolhas gelatinosas, sem estrutura vertebral de conteúdo razoavelmente consistente, o jornal mantem-se aferrado à premissa. A edição de hoje se insere nesse exemplo.


 


Responsabilidade social


 


Ainda não se consolidou no Diário do Grande ABC a lógica de que manchetíssima é um caminhão enorme a transportar uma carga imensa de responsabilidade social, não um caminhão enorme que transporta algumas peças de mobiliário doméstico sem o menor critério de arrumação. Manchetíssima, em suma, deve reunir agregado de informações e interpretações que conduzam os leitores à saciedade de modo a tornar-se espelho à produção de história em forma de noticia. O gosto de quero mais é a sentença de morte da frustração informativa.


 


Confesso que não tenho conhecimento sobre o dia a dia do Diário do Grande ABC, especialmente se há uma cláusula pétrea informal que direcione diariamente a publicação a um horizonte de manchetíssima pré-definida e, portanto, devidamente equacionada à consolidação de reportagem. De fora do jogo jogado o que vejo como observador que carrega a experiência de quem continua no gramado da bola informativa é que, se existe alguma política à regionalização persistente das manchetíssimas, há furos que precisam ser tapados.


 


Tanto é verdade que a manchetíssima desta quinta-feira que superou com razão a manchetíssima que poderia ter sido excepcionalmente do terrorismo na França deixa muito a desejar Vou escrever a respeito num outro artigo sobre a crise automotiva. Resumidamente, poderia dizer que o jornal insiste em terceirizar informações a fontes muitas vezes suspeitas, situação que leva imprecisões aos leitores.


 


Falta explicar aos leitores que leem jornais com olhos comuns, convencionais, sem o sentido crítico de um pentelho que se arvora ombudsman não autorizado, falta dizer por que a manchetíssima sobre a crise na Volkswagen de São Bernardo tem mais peso e apelo regional do que a manchetíssima que poderia ter sido reservada aos malucos de Paris. A resposta é simples e vale não só para esse caso específico, mas à quase totalidade do conjunto da obra de manchetíssimas que o Diário do Grande ABC publicou ao longo da história, quando deu preferência a temários estranhos à região.


 


Trata-se do seguinte: o jornal não conta com estrutura técnica, operacional e de recursos humanos para sequer fazer cócegas nos principais veículos impressos do País quando tem de sair de seu campo de jogo para jogar no campo adversário com a cobertura de acontecimentos extraordinários. Ou seja: escrever sobre o massacre na França, sobre o Petrolão, sobre as crises do governo Dilma Rousseff, entre tantos outros assuntos, é tarefa para quem está mais próximo desses fronts ou conta com retaguarda e jornalistas especializados em transformar o distante em próximo.



Saída é regionalidade


 


Como o Diário do Grande ABC não tem se mantido sequer mais próximo do que lhe é mais próximo, por conta de dieta orçamentária que atinge diretamente o quadro de jornalistas, seria uma aberração meter-se em seara alheia na tentativa de rivalizar-se com os grandes veículos. A saída do Diário do Grande ABC é mesmo investir cada vez mais no noticiário regional, preferencialmente com uma linha editorial menos simplória, reservando espaços complementares ao resto do mundo. Daí, nada mais lúcido que tornar a manchetíssima regional objeto de difícil deslocamento gráfico.


 


Querer jogar em todas as posições é uma tremenda besteira que o Diário do Grande ABC cometeu renitentemente no passado porque o Complexo de Gata Borralheira sequestrava chefias de redação. Como Editor de Esportes e depois Editor de Economia em minha primeira passagem de 15 anos pelo Diário do Grande ABC, entre 1970 e 1985, a Província do Grande ABC era, em condições normais de tempo e temperatura, minha nação.


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