Imprensa

Crise da merenda de Marinho leva
Diário à manchetíssima explicativa

DANIEL LIMA - 12/02/2015

Havia muito tempo o Diário do Grande ABC não contemplava os leitores com uma manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) tão apropriadamente explicativa. Palavra de ombudsman não autorizado, que sou. A crise da merenda escolar na Administração Luiz Marinho é um retrato do petista e de seu modo arbitrário de se comunicar com a sociedade. Marinho, como se ainda ocupasse cargo sindical, transmite a sensação de que só teria declarações a dar a quem lhe for próximo e concordar integralmente com suas decisões. É o modo marinheiro de fazer política que possivelmente a crise que estraçalha a imagem do PT, conforme prova o Datafolha, haverá de modificar.


 


Desta feita não existe um fosso editorial entre uma manchetíssima do Diário do Grande ABC e a reportagem de página inteira. A padronização burra de aquartelar as informações num determinado espaço físico foi soterrada. Tanto que o material ocupou página inteira, além do Editorial. “Corte na merenda em São Bernardo faz vereadores convocarem secretária” é a manchetíssima dessa véspera de Carnaval.


 


A reportagem é ampla. Diz que a secretária de Educação de São Bernardo, Cleuza Repulho, foi convocada ontem pela Câmara para prestar esclarecimentos após determinar corte de merenda na rede municipal, afetando cerca de 80 mil crianças da pré-escola e do Ensino Fundamental, cuja idade varia entre cinco e 10 anos.


 


Remete a reportagem do Diário do Grande ABC ao histórico da secretária municipal, lembrando que ela é ré em ação civil pública proposta pelo Ministério Público, que apontou superfaturamento na compra de tênis e mochilas a alunos da rede pública em 2010 e 1011. Cleuza Repulho, explica o jornal, deverá comparecer ao Legislativo no dia 25, já que o requerimento prevê prazo superior a pelo menos 10 dias, após convocação. Também conta a matéria que o requerimento partiu do próprio bloco de sustentação da Administração Luiz Marinho, supostamente se viu acuado após reportagem do Diário do Grande ABC, semana passada, quando se revelou o plano de restrição no repasse para custear alimentos.


 


Dúvida e certeza


 


A reportagem que sustenta a manchetíssima do Diário do Grande ABC, repito, é bastante consistente em termos de informações. Ouve vários personagens de alguma forma envolvidos no assunto. Entretanto, me sobraram uma dúvida cruel e uma certeza cristalina.


 


A dúvida é se não existe manobra ardilosamente preparada por baixo dos panos para levar a secretária de Educação ao Legislativo. Contando com a maioria formada pela base aliada, conceder-lhe mais um atestado de eficiência e lucidez com possível manipulação de elementos que configurariam a medida restritiva na merenda escolar como extraordinário modelo de eficiência alimentar.


 


Podem os leitores imaginar que esteja este jornalista paranoico, mas quem conhece a gestão Marinho apostaria que ele não se deixaria levar tão facilmente ao cadafalso de uma prestação de contas de pupila à qual devota carinho excepcionalmente intrigante, porque protecionista ou mutuamente protecionista.


 


Escrevi que existia uma dúvida e uma certeza cristalina sobre a convocação de Cleuza Repulho ao enfrentamento supostamente hostil dos vereadores. A dúvida já foi exposta e triturada; agora resta a certeza. E a certeza é o seguinte: por mais astuto que Luiz Marinho seja, sempre fugindo da raia de embates diretos que possam lhe minar a paciência e a aura de soberano, estaria evidenciado nesse episódio que o preferido de Lula da Silva no território regional começa a encontrar dificuldades para manter o entorno de poder intocável.


 


Pode parecer uma contradição a explicação conjugada do caso, que de um lado sugere uma teatralização do encaminhamento formal para o comparecimento da secretária de Educação ao Legislativo, que teria o maquiavelismo de Luiz Marinho por trás, e, de outro lado, eventuais dificuldades para o prefeito manter-se distante de potenciais crises. Pode parecer contradição, como disse, mas não é.


 


Explico: Marinho pode ter sentido algo como a possibilidade mesmo que remota de a sua batata administrativa estar assando e, por conta disso, ter decidido engendrar a iniciativa do encontro da secretária com os vereadores de forma a consumar um golpe na oposição. Ou seja: ao mesmo tempo em que fortaleceria a secretária favorita dos petistas da região, porque Cleuza Repulho também já passou por Santo André, onde deixou rastros de complicações, Marinho destruiria o que supostamente existiria de iniciativas contestadoras entre os opositores e quem sabe até entre aliados que buscam valorizar o passe para obter vantagens na máquina administrativa.


 


Resumo do resumo: Marinho teria levado a efeito o que parece ser um presente de grego para a secretária Cleuza Repulho apenas como manobra tática para fazer o reconhecimento geral do terreno legislativo de forma a confirmar em quem pode realmente confiar.


 


Reviravolta estranha


 


Reconheço que esse raciocínio é complexo, pode ser considerado até exótico, quando não maluco, mas é assim mesmo, com idas e vindas, clarezas e obscuridades, objetividades e subjetividades, que se faz o jogo político. Ou os leitores não concordam com a estranha reviravolta no Legislativo de São Bernardo? Afinal, num momento de fervura na área educacional e pressionado por manifestantes munidos de panelas e outros apetrechos de cozinha, a troco de que o chefe do poder público municipal decide afrouxar o controle dos cordéis que lhe dão sustentação política? Mais que isso: possibilita que sua assessora preferida venha a ser posta em situação de constrangimento a ponto de eventualmente ser degolada, incômodo que também atingiria o prestígio do comandante do Paço Municipal.


 


Essas conjecturas não estão na matéria do Diário do Grande ABC porque não ficariam bem no corpo de reportagem publicada. É por essas e outras que aprecio muito o modelo editorial do Estadão (aliás, que muito antes de aplicado no jornalão pretendia tê-lo no Diário do Grande ABC, em 2004, quando assumi a direção de Redação), o qual reserva texto complementar de análise às reportagens publicadas. Uma iniciativa esplêndida. Sou amplamente favorável à expansão abrangente dos limites tradicionais à interpretação dos fatos, circunscritos ao Editorial.


 


Talvez o melhor da matéria alçada à manchetíssima do Diário do Grande ABC de hoje seja a possibilidade de que existem variáveis aparentemente insondáveis a permear o relato jornalístico. Luiz Marinho não me parece candidato a idiota da temporada (basta o título indestrutível de grande loroteiro do Aeroportozão) ao permitir candidamente a presença da secretária de Educação entre os lobos do Legislativo. Exceto se sua Administração estiver completamente à deriva político-partidária. O que duvido totalmente. Mesmo considerando que fontes de recursos sensibilizadores do gigantismo administrativo sofrem com a escassez de suprimentos muito maior do que a nova dieta imposta aos estudantes de São Bernardo.


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