Tenho apreço muito especial pelo jornalista Juca Kfouri, um dos poucos brilhantes cronistas esportivos do País. Coleciono suas colunas na Folha de S. Paulo. Como as colunas de Tostão, mestre dos mestres. Por isso, meio constrangido vou me opor ao Juca Kfouri que li ontem no UOL. Como o Juca Kfouri em questão não é o Juca Kfouri esportivo, diria que minha admiração pelo jornalista esportivo segue intocável, com eventuais discordâncias sobre um ou outro ponto, porque ninguém é de ferro.
O Juca Kfouri que saiu em defesa do governo Dilma Rousseff e do PT no artigo publicado pelo UOL me levou a preparar um contraponto a cada sentença expressa com o fervor típico de quem se lança à articulação de ideias e análises com ampla devoção ao ofício. Como este jornalista. Juca Kfouri foi enfático e corajoso. Alguns dirão que cometeu haraquiri jornalístico numa marcha supostamente de insensatez.
Prefiro dizer que Juca Kfouri parece deslocado no tempo. Talvez não acompanhe o noticiário político-policial-econômico denso e incontestável do assalto à Petrobras. Parece que não se deu conta de que o sonho de uma suposta nova classe média propagada pelo governo petista está se esvaindo. Que os aeroportos já não enchem como antes, que os mercadões e mercadinhos estão à cata de consumidores, que os shoppings populares estão às moscas e os shoppings de classe média fazem liquidação fora de época.
Juca Kfouri caiu na armadilha de traduzir a crise de sem-vergonhice sistêmica patrocinada pelo PT e aliados em idiossincrasias sociais, de ricos versus pobres. Juca Kfouri talvez não tenha família de ramificações extensas como eu. De gente pobre, de gente rica e de gente remediada. Se tivesse, se ouvisse até a secretária doméstica que parece não ter, mas que tenho como classe média remediada, saberia que a cotação de Dilma Rousseff despenca em direção ao rés do chão do lamaçal da Petrobras. Aliás, seria bom que se preparasse espiritualmente, porque vem aí uma nova rodada de pesquisa que causará furor no Palácio do Planalto. Os pobres e miseráveis estão abandonando o barco petista. A inflação não perdoa.
Juca Kfouri ainda não se deu conta de que o prestígio petista após o assalto à credibilidade popular durante o processo eleitoral está virando pó e que, por isso mesmo, não tem o menor sentido jogar para o embate de classes o que está fortemente restrito à herança de esculhambação da política pelo PT e aliados.
Vamos então ao artigo de Juca Kfouri. E às minhas contraposições, em negrito:
O panelaço da barriga cheia e do ódio (Juca Kfouri).
O panelaço da indignação e da revolta (Daniel Lima).
Nós, brasileiros, somos capazes de sonegar meio trilhão de reais de Imposto de Renda só no ano passado.
Nós brasileiros, somos capazes de suportar bovinamente a maior carga tributária do mundo civilizado sem receber praticamente nada em troca, como provam indistintos indicadores sociais.
Como somos capazes de vender e comprar DVDs piratas, cuspir no chão, desrespeitar o sinal vermelho, andar pelo acostamento e, ainda por cima, votar no Collor, no Maluf, no Newtão Cardoso, na Roseana, no Marconi Perillo ou no Palocci.
Como somos capazes de vender e comprar DVDs piratas, cuspir no chão, desrespeitar o sinal vermelho, andar pelo acostamento e, ainda por cima, votar no Collor, no Maluf, no Newton Cardoso, na Roseana, no Lula e na Dilma.
O panelaço nas varandas gourmet de ontem não foi contra a corrupção.
O panelaço nas varandas gourmet de ontem foi contra um estelionato eleitoral e ideológico.
Foi contra o incômodo que a elite branca sente ao disputar espaço com esta gente diferenciada que anda frequentando aeroportos, congestionando o trânsito e disputando vaga na universidade.
Foi também incômodo contra a elite política e sindical de esquerda que proporcionou ao longo dos últimos 12 anos os maiores estragos aos cofres públicos, além de induzir os incautos a acreditarem que viraram classe média consistente, duradoura.
Elite branca que não se assume como tal, embora seja elite e branca.
Elite sindical e política que não se assume como tal, embora seja uniforme nos propósitos corporativistas a dano da sociedade.
Como eu sou.
Como eu não sou.
Elite branca, termo criado pelo conservador Cláudio Lembo, que dela faz parte, não nega, mas enxerga.
Elite sindical e política, da qual não faço parte, é uma expressão criada pelos conservadores para identificar os oportunistas que se locupletam em nome do povo.
Como Luís Carlos Bresser Pereira, fundador do PSDB e ex-ministro de FHC, que disse: “Um fenômeno novo na realidade brasileira é o ódio político, o espírito golpista dos ricos contra os pobres”.
Como o pensador Demétrio Magnoli, que escreveu outro dia na Folha de S. Paulo: "A justa indignação da hora faz do impeachment uma solução sedutora. Mas a historia não é a hora. Dilma vai passar, cedo ou tarde. Ela não vale o preço da redução do Brasil a um Paraguai".
O pacto nacional popular articulado pelo PT desmoronou no governo Dilma e a burguesia voltou a se unificar.
O roubo institucionalizado pelo PT no poder desmoronou no governo Dilma e os trabalhadores sem dogmas resolveram sair do casulo da indiferença suicida.
Surgiu um fenômeno nunca visto antes no Brasil, um ódio coletivo da classe alta, dos ricos, a um partido e a um presidente.
Surgiu um fenômeno nunca visto antes no Brasil, uma roubalheira partidária sistêmica, com objetivo claro de se manter no poder indefinidamente.
Não é preocupação ou medo. É ódio.
Não é um roubo qualquer ou assaltozinho, é uma ação de quadrilha organizadíssima.
Decorre do fato de se ter, pela primeira vez, um governo de centro-esquerda que se conservou de esquerda, que fez compromissos, mas não se entregou.
Decorre do fato de se ter, pela primeira vez, um governo popular de esquerda que se imaginou eterno na produção de roubalheiras, banalizando o assalto aos cofres públicos e glorificando estatais das quais extrai a seiva que lubrifica vitórias eleitorais.
Continuou defendendo os pobres contra os ricos.
Continuou engordando os cofres paralelos em nome dos pobres mas em permanentes conluios com os ricos empreiteiros.
O governo revelou uma preferência forte e clara pelos trabalhadores e pelos pobres.
O governo revelou uma preferência indissociável pelas estatais e pelos destinatários de contratos milionários.
Nos dois últimos anos da Dilma, a luta de classes voltou com força.
Nos dois últimos anos de Dilma, a luta pelo corporativismo e privilégios nas estatais ganhou mais força.
Não por parte dos trabalhadores, mas por parte da burguesia insatisfeita.
Não por parte de trabalhadores, mas por uma quadrilha política prepotente que controlou os cordéis estatais.
Quando os liberais e os ricos perderam a eleição não aceitaram isso e, antidemocraticamente, continuaram de armas em punho.
Quando os esquerdistas encastelados no poder ganharam a eleição, estavam certos de que poderiam manter indefinidamente os cofres das estatais à disposição da causa própria.
E de repente, voltávamos ao udenismo e ao golpismo.
E de repente, voltámos ao corporativismo ideologizado e ao radicalismo desclassificatório.
Nada diferente do que pensa o empresário também tucano Ricardo Semler, que ri quando lhe dizem que os escândalos do mensalão e da Petrobras demonstram que jamais se roubou tanto no país.
Tudo muito diferente do que pensa a maioria minimamente conhecedora dos costumes políticos do País, crente até recentemente na combustão de escândalos por conta de individualidades ou grupinhos facilmente detectáveis, não por causa de ramificações dolosamente construídas para delinquir em nome do povo e em benefício próprio.
“Santa hipocrisia”, disse ele. “Já se roubou muito mais, apenas não era publicado, não ia parar nas redes sociais”.
Santa ignorância de ingênuos que se imaginam especialistas ao confundir roubos convencionais de alguns com roubos revolucionários de grupos organizados.
Sejamos francos: tão legítimo como protestar contra o governo é a falta de senso do ridículo de quem bate panelas de barriga cheia, mesmo sob o risco de riscar as de teflon, como bem observou o jornalista Leonardo Sakamoto.
Sejamos minimamente inteligentes: tão legítimo como protestar contra o governo é a falta de senso de ridículo de quem acredita piamente que as ações estão circunscritas a estratos sociais supostamente privilegiados e barulhentos, porque vivem apenas entre eles, e deixem de conhecer as periferias silenciosas, nas quais as panelas se esvaziam com a alta inflacionária e a alma sobressalta depois do golpe eleitoral.
Ou a falta de educação, ao chamar uma mulher de “vaca” em quaisquer dias do ano ou no Dia Internacional da Mulher, repetindo a cafajestagem do jogo de abertura da Copa do Mundo.
São gentes de todos os estratos sociais que recorrem a frases pouco educadas, quando não ofensivas, porque entendem que diplomacia é muito menos importante que frustrações decorrentes de uma crise genuinamente nacional indevidamente manipulada como internacional em rede de televisão, diretamente da voz de uma presidente que avocou a própria vaca com que foi contemplada em coros agressivos ao dizer na campanha eleitoral que a dita cuja, a vaca de mudanças na economia, jamais tossiria enquanto estivesse no comando do País.
Aliás, como bem lembrou o artista plástico Fábio Tremonte: “Nem todo mundo que mora em bairro rico participou do panelaço. Muitos não sabiam onde ficava a cozinha”.
Gentes de todos os estratos sociais, como bem lembrou aquele mecânico da periferia de São Bernardo, que vive o dia a dia pós-eleitoral com o ânimo dos deserdados; “Quem precisa recorrer a um discurso autoprotecionista do Dia Internacional da Mulher para tentar sensibilizar o povo já perdeu o respeito de quem imagina representar”.
Já na zona leste, em São Paulo, não houve panelaço, nem se ouviu o pronunciamento da presidenta, porque faltava luz na região, como tem faltado água, graças aos bons serviços da Eletropaulo e da Sabesp.
Já nos sindicados supostamente de trabalhadores mas de fato de lideranças encasteladas nas tetas do governo que não fiscaliza o que distribui porque não convém fiscalizar, o pronunciamento da presidente foi acompanhado com tensão e horror, porque alguns supostos direitos trabalhistas foram parcialmente rasurados para desgosto de quem quer o Estado protetor manifestando-se sempre a favor da categoria, esquecendo-se do País como um todo.
Dilma Rousseff, gostemos ou não, foi democraticamente eleita em outubro passado.
Dilma Rousseff, lamentemos ou não, foi democraticamente eleita em outubro passado graças a um estelionato lubrificado com dinheiro espúrio.
Que as vozes de Bresser Pereira e Semler prevaleçam sobre as dos Bolsonaros é o mínimo que se pode esperar de quem queira, verdadeiramente, um país mais justo e fraterno.
Que as vozes de Bresser Pereira, Semler e Bolsonaros não prevaleçam sobre a voz do povo que, com panelaço explícito ou panelaço silencioso, não suporta mais uma presidente e uma coalizão partidária que levaram o País à bancarrota.
E sem corrupção, é claro!
Sem disparates e corrupção, é claro!
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)