Esta é uma pergunta essencialmente provocativa. Mais que provocativa, irritantemente provocativa. Sabem por quê? Porque não existe resposta. E não existe resposta porque não sabemos estatisticamente o que fazemos no setor de transformação industrial, sobretudo na área automotiva, nosso centro de gravidade.
A pergunta é incisivamente provocativa porque tem tudo a ver com o que queremos da vida. Estamos perdendo terreno nas exportações para a Argentina, sobretudo por causa dos chineses e dos coreanos -- e ainda não sabemos o que fazer.
E o que estamos fazendo é simplesmente observar uma parte dos estragos no setor automotivo. A dimensão é um enorme ponto de interrogação.
Está na Folha de S. Paulo de hoje sob o título de página interna (“Autopeça brasileira perde fatia na Argentina”) a nacionalização de uma realidade que regionalizei faz tempo nesta revista digital. A Folha não faz referência ao que acontece com o setor de autopeças na Província do Grande ABC porque não é de sua obrigação editorial. Não se trata, por exemplo, do Diário do Grande ABC. Mas mesmo o Diário do Grande ABC se for adiante nessa pauta vai perder tempo, porque não há instâncias locais que deem conta de uma resposta minimamente esclarecedora. Não sabemos o que produzimos.
Entenda-se essa afirmativa como algo muito mais amplo que a simples publicação de um guia de indústrias, como a Prefeitura de São Bernardo acaba de editar. Ter o perfil industrial à mão não significa nada quando não se sabem os detalhes, diríamos, distributivos dessa massa de produtos. O guia pode até ter utilidades diversas, mas é muito pouco.
Regionalização produtiva
Quem deveria saber o que produzimos e ter os dados na ponta de língua seriam as unidades do Ciesp na região. São quatro – Diadema, São Caetano, São Bernardo e Santo André, que abrange os demais municípios desse bicho de sete cabeças que é a Província do Grande ABC. Por mais que se aprove e até se aplauda a iniciativa do Ciesp de Santo André que comemorou o Dia da Indústria, nesta semana, largando a pua na política econômica do governo federal (não se tem informação sobre eventuais críticas às administrações municipais), haverá sempre uma inconsistência crônica nesses espasmos de indignação quando não se lançam mão de dados regionais que estratifiquem a calamidade. Precisam as entidades empresariais e sindicais locais regionalizar a pauta e os dados.
Voltando à Folha de S. Paulo, diz a notícia que as fabricantes brasileiras de autopeças até pouco tempo dominantes no mercado argentino estão perdendo espaços nos últimos quatro anos com a concorrência asiática. “De 2010 a 2014, o Brasil perdeu quase US$ 1 bilhão em vendas de autopeças no país. Sua fatia de mercado no segmento encolheu de 49% para 38% no período, segundo estudo feito pela consultoria econômica argentina Abeceb, a pedido da Folha”, escreveu o jornal paulistano. Que completou: “Em compensação, fornecedores chineses quase dobraram sua presença no mesmo período. E até os europeus, cujos custos salariais são mais elevados do que os brasileiros, conseguiram tomar parte da fatia que era do país”.
Danos gigantescos
Quem acredita que já atingimos o fundo do poço – e o “nós” são os produtores de autopeças brasileiros – deveria rever conceitos, porque a tendência é de novas incursões asiáticas. Afinal, ainda continuamos a ser o principal fornecedor de autopeças para a Argentina. A parcela de exportação de empresas sediadas na Província do Grande ABC, como já disse, é uma incógnita. Mas, considerando-se que a base da indústria de transformação da região é fortemente relacionada ao setor automotivo, principalmente em São Bernardo e em Diadema, os estragos devem ser cada vez maiores. A queda do PIB Industrial de São Bernardo em 2012 (dado mais atualizado pelo IBGE, responsável pelos estudos) atingiu 23%, em números redondos. Uma calamidade. Diadema ficou um pouco atrás. Quem tem maior participação relativa na região sofre os maiores danos.
Quando afirmo que caberia ao Ciesp centralizar fogo em estudos que desnudem os segredos da indústria automotiva na região, sobretudo das autopeças em larga escala de pequeno e de médio porte, quero dizer que não se deve acreditar que a resposta ou uma contribuição substantiva venha de instituições públicas como o Clube dos Prefeitos do Grande ABC e mesmo da Agência de Desenvolvimento Econômico, cujo centro de interesses passa ao largo do incômodo que assola os pequenos e médios empresários.
A subalternidade dos Ciesps locais à Avenida Paulista não é boa companheira à resolução de problemas específicos que atingem grande parte do empresariado industrial da região. A história tem mostrado e provado que há uma distância quilométrica entre as dores locais e o conjunto de dores que mobilizam aquela arquitetura piramidal do principal cartão postal da Capital. Já passou da hora de romper o lacre de uma hierarquia tácita que não interessa provavelmente inclusive à própria instituição, irmã siamesa da Fiesp.
Mais um alerta
Esta não é a primeira nem a última vez que vou chamar a atenção sobre a invasão asiática na Argentina, nosso principal parceiro comercial no Mercosul. Os empresários que participam das entidades que representam os interesses do setor industrial da região parecem ter imensa dificuldade de encaixar a melhor metodologia para dar organicidade a um conjunto de deficiências estruturais que os estão levando às cordas. Quando não se sabe o que representam no sentido mais amplo da medida, como é o caso de uma imensa floresta de suprimento e produção, o mais provável é que todos se percam em meio a algo que se tornaria um inferno.
Os chineses já foram subestimados demais por forças empresariais e sindicais da região. Para os leitores terem uma ideia, pinço os principais trechos das declarações do então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, que, em junho de 2008, concedeu uma entrevista à revista LivreMercado, predecessora deste CapitalSocial. Acompanhem a pergunta deste jornalista e a resposta do sindicalista para entenderem o tamanho da encrenca que vem do passado:
Numa projeção de médio e de longo prazos, o que o senhor imagina como perfil do metalúrgico das montadoras de veículos no Grande ABC? As mudanças que ocorreram já foram metabolizadas e não há mais nada praticamente a ser alterado ou a ameaça chinesa tem de ser levada em conta?
Sérgio Nobre -- Para falar desse perfil futuro, é imprescindível, antes, fazer uma contextualização histórica e resgatar o passado recente da categoria metalúrgica. De 1959 a 1990, vigorava no Brasil o modelo fordista de produção, caracterizado por fábricas totalmente verticalizadas, elevado número de funcionários pouco qualificados profissionalmente dentro de um processo produtivo muito fragmentado. A partir dos anos 1990, a abertura à produção internacional deu origem à competição de mercado que levou as montadoras brasileiras a buscar novo modelo de produção baseado na experiência da Toyota, no Japão. Tal modelo exigia profissional polivalente, habilitado a executar muitas tarefas diferentes e a conhecer o processo de produção como um todo, trabalhar em equipe e, assim, se antecipar aos problemas. As montadoras também passaram a buscar um trabalhador mais jovem e com elevada qualificação garantida por cursos técnicos e até de idiomas. Naquela época, paralelamente, houve redução drástica do número de postos de trabalho no ABC em consequência da combinação de dois fatores principais: a recessão provocada pela introdução pelo governo federal de políticas e novo processo de produção enxuta. Diante desse quadro, foi e segue sendo um grande desafio para o movimento sindical a defesa do emprego com qualidade e contrapartidas. A luta por boa remuneração, boas condições de trabalho e representação sindical dentro da empresa para garantir negociação permanente, por meio das comissões de fábrica. Quanto às mudanças, elas constituem um processo permanente e, na medida em que vão sendo metabolizadas, surgem novas questões a debater, negociar e digerir. No caso da China, entendo o seu modelo de produção como insustentável, porque a competitividade chinesa se alicerça não só na mão-de-obra farta e barata, mas em outros fatores, como incomparável escala de produção. Esse país asiático não tem como se manter nos atuais níveis de crescimento porque não haverá recursos naturais para supri-lo - matéria-prima, insumos - nem o Planeta suportará o impacto desse crescimento. Além disso, a história vem provando que os trabalhadores, quando submetidos a um sistema que concentra milhares de pessoas submetidas a péssimas condições de trabalho, salários miseráveis e opressão política, acabam dando um jeito de se rebelar e mudar a realidade. A China não pode ser referência para nenhum país. A luta histórica dos trabalhadores tem de ter como referencial um modelo de produção justo, democrático, que respeite o meio ambiente, pague salários dignos e garanta condições de trabalho satisfatórias. No Brasil de hoje, ainda temos um longo caminho a percorrer para a construção desse modelo positivo, mas muito já foi conquistado e não podemos abrir mão de buscá-lo, nunca. Não somente o movimento sindical, mas empresários e governos têm de refletir sobre que país queremos para nossos filhos e netos. Será o atual padrão da China? Com certeza não – disse o sindicalista.
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