Imprensa

Complexo de Gata Borralheira
explica provincianismo midiático

DANIEL LIMA - 17/06/2015

Acredito que possa falar horas sobre regionalismo e provincianismo, pontos extremos do jornalismo historicamente incrustrado na atividade que exerço há 50 anos, completados agora em 2015. Talvez só fale durante mais tempo e possivelmente com conhecimento assemelhado se o assunto for o caso Celso Daniel. Regionalismo e provincianismo são perigosamente tão distintos que podem parecer irmãos siameses.


 


Vou dedilhar estas linhas por conta do que escrevi na coluna “ContextoABC”, sempre aos domingos no Diário do Grande ABC. Escrevi que uma das manchetíssimas daquela jornal na semana que passou (manchetíssima é a manchete das manchetes de primeira página) estava fora do espectro regional. Tratava do índice de inflação oficial de maio e deixava de lado dois casos mais abrasivos e pouco valorizados na edição.


 


A manchetíssima da inflação foi um injustificável estranho no ninho sequencial de manchetíssimas locais que o Diário do Grande ABC vem desfilando em nome da regionalidade implícita na tradicional marca que ostenta há quase 60 anos.


 


Inflação derrota região


  


Sei que o assunto é abrasivo e polêmico. Não seria por isso que fugiria da raia. O regionalismo que defendo no jornalismo da região é tão solidamente forte como fonte de informação e reflexão que não permitiria qualquer dúvida sobre o que deveria ganhar mais destaque gráfico e editorial. A retirada de vigilantes de escolas municipais de São Bernardo, sobretudo em bairros de alta vulnerabilidade criminal, ou a recomposição estratégica da Administração Luiz Marinho com vistas a alçar seu candidato preferido, Tarcísio Secoli, à disputa pelo Paço Municipal, eram opções mais interessantes que repetir o que toda mídia divulgou no dia anterior e os jornalões imprimiram nas manchetíssimas do dia seguinte – sobre o estouro da inflação.


 


Não pretendo me estender demais sobre esse embate. Regionalismo para o Diário do Grande ABC e outros veículos locais é jogar em campo próprio, com apoio da torcida. Para tanto, é preciso se preparar bem para não decepcionar os consumidores de informação.


 


As reportagens precisam ser densas em dados e também em interpretação, mas mesmo que não encaixem essas premissas sempre serão preferenciais ante a concorrência nacional e internacional. Afinal, nada é mais complicado do que tentar competir com a grande mídia impressa, digital e televisiva, que passa o tempo todo a desbravar informações nacionais e internacionais. A Província do Grande ABC é nossa pátria.


 


Quando saímos para jogar no campo do adversário mais bem aparelhado, a tendência é sofrer derrota. Nenhuma publicação da região vai encarar a grande mídia paulistana e nacional na cobertura de assuntos fora de nossa geografia. A derrota será fragorosa. Inclusive dos consumidores de informações locais, que querem saber o que se passa nestas bandas, já que o que se passa em outras bandas eles encontram em fontes mais preparadas, as quais, em contraposição, conhecem pouco nossa realidade. Tanto conhecem pouco que quando aportam aqui geralmente cometem barbaridades.


 


Amplitude de análises


 


Regionalismo midiático combinado com contextualização que abranja outros territórios é uma fórmula perfeita. Por isso, ao longo de minha carreira jamais fiquei preso à morfologia regional para tecer centenas e centenas de artigos sobre o comportamento de nossa economia, principalmente.


 


É triunfalismo provincial debruçar sobre dados locais e acreditar que isso nos satisfará. Alguém que se trancafia num quarto escuro anos a fio pode acreditar que está bem porque nada lhe foi alterado na vida, mas quando dá com a cara na rua será assombrado com as transformações. Essa é a diferença entre provincianismo e regionalismo em termos de informação. Sai-se do quarto escuro e dá de cara com luzes feéricas.


 


Quando se comparam restritivamente dados estatísticos de qualquer atividade econômica, social, criminal e fiscal dos sete municípios o que se está praticando é um jogo de faz-de-contas. Não por outra razão criei o G-20, o grupo dos 20 maiores municípios do Estado de São Paulo, cinco dos quais da região. Aplico integralmente aos municípios pesquisados os mesmos critérios avaliativos. Uma queda de criminalidade acentuada na região, como ocorreu desde o ano 2000, principalmente nos casos de homicídios, poderia ser interpretada como fenômeno localizado. A casa da argumentação cai quando se constata que os demais municípios do G-20 experimentaram semelhante transformação. Sem contar o Estado de São Paulo como um todo.


 


Aí está a diferença entre regionalismo e provincianismo. Quem exalta estudos locais sem olhar para o mundo lá fora arrisca a própria pele de credibilidade. Joga-se para a plateia em detrimento da realidade dos fatos. 


 


Indicadores diversos


 


Poderia dar muitos mais exemplos, mas acho que tudo está muito claro. Rapidamente posso lembrar, também, que no final dos anos 1990 criei o IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), inicialmente agrupando quase uma centena dos municípios paulistas mais importantes. Foram efetivados estudos estatísticos respaldados sempre por fontes oficiais. Nada menos que 15 indicadores de diversos calibres balizaram quadros comparativos. São Caetano conquistou o titulo geral nas temporadas em que dados sistêmicos foram consolidados.


 


A isso também se deve chamar de regionalidade. Aqueles mesmos indicadores, mas restritos ao ambiente desta Província, redundariam claramente em provincianismo.


 


A regionalização da pauta jornalística da Província do Grande ABC não tem o significado de que a agenda nacional e internacional esteja interditada e que eventualmente uma manchetíssima daquelas geografias não possa furar o cerco. A morte do papa em abril de 2005 foi exceção à regra de nove meses de manchetíssimas regionais que permearam minha passagem como diretor de Redação do Diário do Grande ABC.  Nenhum fato regional seria tão importante porque, mais que o registro de uma notícia, o que se praticou foi o registro da história.


 


No caso, a manchetíssima sobre a inflação recorde de maio não tem nenhuma cara de manchetíssima histórica suficientemente forte para afastar uma manchetíssima regional. Poderia ter sido uma submanchetíssima e tudo estaria resolvido. Mas aí é que aparece de vez em quando na mídia regional, como na cultura regional, o que chamo de Complexo de Gata Borralheira de múltiplas faces, entre as quais a necessidade de correr atrás dos grandões para se afirmar como soldado no passo certo. Bobagem. Provincianismo e gataborralheirismo andam sempre juntos.



Reportagens históricas


 


Entretanto, mesmo com tudo isso, com essa aparente e insofismável distinção entre provincianismo e regionalismo, é natural que leitores tanto desta revista digital quanto do Diário do Grande ABC que tiveram e estão tendo acesso a esses conceitos não se deem por satisfeito e até entendam que a manchetíssima daquela publicação sobre a inflação estava corretíssima. Faz parte do jogo jogado o contraditório fértil, mas insisto que o agregado de valores que sustentam o conceito de regionalidade não dá espaço a qualquer avaliação mais aderente que possa retirar uma ou outra matéria da gestão Luiz Marinho do principal ponto gráfico daquela edição em que se preferiu a inflação.


 


Quando da morte do prefeito Celso Daniel, nenhum veículo de comunicação da região e do País se dedicou sobre a gestão do petista com tamanha competência e complementariedades como a revista LivreMercado, a qual comandava na área editorial. Era questão de honra dar aos leitores a dimensão de Celso Daniel como o dirigente público mais decididamente regionalista da história, retirando-o da vala comum de chefe de Executivo assassinado. A sensibilidade de enxergar o homem público que se foi permeou aquela edição histórica. Da mesma forma que, em outra edição histórica, abordamos o que poderia ser a primeira gestão de Lula da Silva à frente do governo federal.


 


Foram, sem falsa modéstia, dois grandessíssimos shows de bola. Como tantos outros da publicação que consumiu 20 anos de minha vida profissional e pessoal.


 


Não se faz regionalismo midiático ou em qualquer atividade humana, no setor público ou privado, em organizações sociais, sem dedicação completa e entendimento de que não podemos ficar presos ao próprio umbigo. Da mesma forma que não devemos cometer a burrice de achar que tudo que vem de fora é melhor -- no mais mal-acabado resumo de gataborralheirismo.


Leia mais matérias desta seção: Imprensa

Total de 1884 matérias | Página 1

13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)
11/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (32)
08/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (31)
06/11/2024 Maioria silenciosa sufoca agressão de porcos sociais
06/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (30)
04/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (29)
31/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (28)
29/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (27)
28/10/2024 OMBUDSMAN DA SOLIDARIEDADE (2)
25/10/2024 OMBUDSMAN DA SOLIDARIEDADE (1)
24/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (26)
21/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (25)
18/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (24)
16/10/2024 PAULINHO SERRA É PÉSSIMO VENCEDOR
15/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (23)
11/10/2024 MEIAS-VERDADES E MENTIRAS NA MIRA
09/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (22)
03/10/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (21)
01/10/2024 CARTA ABERTA AOS CANDIDATOS