Como ombudsman não autorizado dos veículos de comunicação que bem entender (menos do Diário do Grande ABC, no qual sou mais que ombudsman) não resisto a chamar a atenção dos leitores, mais uma vez, sobre o perigo que informações sobre o manjadíssimo mercado imobiliário pode representar ao equilíbrio orçamentário doméstico por anos a fio, quando não como endereço mais reto e direto ao inferno da inadimplência. Afinal, os mercadores imobiliários não estão preocupados com o presente, quanto mais com o futuro dos clientes de ocasião. Eles querem mesmo é industrializar baboseiras com ares de sábios.
Um suplemento sobre o setor imobiliário publicado na edição de ontem da Folha de S. Paulo é ultrapedagógico na sofisticação estatística de bobagens. Entretanto, o jornal caiu na própria armadilha de manipulação ou de descuido publicitário de vender gato de crise aterradora por lebre de aquecimento contínuo da atividade. Um texto auxiliar, assinado por quem entende do assunto e não tem o rabo preso com mercadores imobiliários, porém, colocou ordem no galinheiro de quinquilharias ilusionistas.
Que qualidade de vida?
Diz a Folha de S. Paulo, numa das páginas do suplemento imobiliário -- em manchete de página para ser mais preciso -- que “Preço e qualidade de vida são trunfos na Grande SP”. Reproduzo alguns trechos da reportagem para tornar a compreensão e a análise mais seguras:
A oferta de apartamentos mais amplos por preços menores tem garantido ao mercado da região metropolitana de São Paulo um desempenho mais equilibrado em relação ao da capital. A migração de paulistanos em busca de preços mais baixos e melhor qualidade de vida, segundo especialistas, é um dos motivos que impulsionam o setor em Osasco, Barueri, Guarulhos e no ABC. Na Grande São Paulo, os imóveis estão entre 30% e 40% mais baratos, o que permite investir em um produto de padrão melhor; com mais dormitórios, opções de lazer ou mais vagas de garagem. Em Guarulhos, Osasco e São Caetano, mais de 35% dos compradores de lançamentos são da capital, segundo pesquisa da imobiliária Brasil Brokers. Como vantagem, os municípios têm acesso fácil à capital, seja por meio de estações de trem ou por estarem próximos às principais rodovias e avenidas do Estado, além de uma ampla rede de serviços e comércio. O trânsito, no entanto, é uma queixa comum dos moradores – escreveu a Folha de S. Paulo.
A hora da verdade
Outros textos do suplemento do jornal paulistano poderiam incorporar esta análise, mas acho desnecessário, porque seguem a mesma trilha de um paraíso de urbanismo e qualidade de vida do qual provavelmente até os parisienses teriam inveja. É claro que entre os entrevistados desse mundo de fantasias não poderia faltar o inefável e quadrilheiro Milton Bigucci, presidente do Clube dos Especuladores Imobiliários do Grande ABC.
Tudo que a Folha de S. Paulo publicou no citado caderno publicitário disfarçado de jornalismo teria corrido conforme o figurino de encher as bola de uma atividade que vive momentos de horror, conforme provam inclusive as inúmeras queimas de encalhes anunciadas em páginas inteiras dos jornais. Entretanto, tudo isso ruiu ante um texto graficamente de quarto de despejo assinado por um especialista no assunto.
O que escreveu João da Rocha Lima Júnior, professor de mercado imobiliário da Poli-USP e dono da consultoria de negócios Unitas reproduziu o conhecimento que detenho sobre a atividade e exponho permanentemente neste espaço. Seleciono, sem ferir a integridade dos conceitos daquele especialista, alguns dos trechos indispensáveis para, inclusive, qualificar o título deste artigo, lá em cima. Leiam o que ele escreveu:
A oferta expressiva, na mídia, de lançamentos residenciais na região metropolitana – particularmente em Osasco, Guarulhos e no ABC – dirigida a moradores de São Paulo leva alguns analistas a questionar se a qualidade de vida na capital vem caindo, tendo a indústria da construção descoberto que essas cidades vizinhas oferecem atributos mais atraentes. Não parece ser o caso. A questão concentra-se nos preços, cada vez mais inacessíveis para as famílias de renda média. E esse descompasso tende a crescer, porque a oferta imobiliária residencial na cidade logo estará sob o impacto das outorgas (autorização para construir acima do estipulado) e das limitações de construção impostas pelo Plano Diretor atual. (...). O Poder de compra de uma família de renda média (...) caiu cerca de 50%. Assim, a mesma família que podia comprar 80 m2 pelo indicador IVG-R (do Banco do Brasil) em junho de 2005 tem que se contentar com 40 m2 em junho de 2015. O poder de compra relativo caiu à razão de 12% anual até 2011, quando se observou o pico de uma bolha de preços no mercado (...). Essa quebra de poder de compra do consumidor, relacionando as rendas com os preços, explica os movimentos de saída por esses eixos, muito mais do que qualquer questão urbanística. Vem ocorrendo uma queda de qualidade de vida, porque essas cidades têm se transformado em dormitório para mais pessoas que continuam trabalhando em São Paulo – agora sob a pressão de maior tempo e desconforto nos deslocamentos diários obrigatórios. (...) O movimento para "fora da cidade”, pressionando ainda mais a oferta de transporte e a qualidade de vida das pessoas que aqui trabalham, tende a se intensificar. E, para completar, esses deslocamentos acabarão por agravar ainda mais a mobilidade urbana em São Paulo – afirmou o especialista.
Matando a pau
Está aí alguém que eu poderia tranquilamente chamar de testemunha judicial se o especulador Milton Bigucci insistir na tentativa de me calar ante as posições que, sempre como jornalista, considerar indispensáveis aos consumidores de informações confiáveis.
Chega a ser inacreditável que os irresponsáveis que pululam no mercado imobiliário ainda encontrem retaguarda permissiva, quando não alienada, da mídia para vender bobagens como a de que a descentralização do mercado imobiliário na Região Metropolitana de São Paulo contribui para elevar a qualidade de vida quando se tem, como temos, infraestrutura física urbana para lá de Bagdá.
Está a faltar, já cansei de afirmar, uma Lei de Responsabilidade Informativa que discipline as atividades dos mercadores imobiliários. Eles precisam e devem ser contidos pela lei, já que falta bom senso à maioria. Os bons empresários do setor vão adorar.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)