Economia

Impactos da desindustrialização
ainda não foram metabolizados

DANIEL LIMA - 30/06/2015

Nenhum dos entrevistados pelo Diário do Grande ABC no suplemento que circulou na edição de ontem sobre “Desindustrialização” escapa à crítica. Eles erraram completamente o alvo da avaliação dos fatos históricos ou pretenderam fazer todos crerem que vivemos situação de estabilidade igualmente histórica, sem grandes perdas a lamentar.


 


Toda vez que algum veículo de comunicação ouve alguém da região instalado em posto de destaque ou de relativo destaque no organograma institucional estatal ou privado sinto que meu coração ameaça bater além da conta. Como não sou portador de cardiopatia alguma, só pode ser mesmo desconexão emocional com efeitos colaterais.


 


Já vivi situações piores nos anos 1990, quando estava praticamente sozinho na luta contra um exército de manipuladores e de condescendentes. Hoje tenho muitos aliados, embora a maioria silenciosa, e os antagonistas, com perdão da sinceridade, parecem tudo, menos especialistas em decifrar o que se passa.


 


O elenco de entrevistados foi ouvido separadamente, mas transmitiu a sensação de que foi reunido num mesmo ambiente e, como nesses casos a maria-vai-com-as-outras do politicamente correto sempre prevalece, caminharam no mesmo passo de imprecisões. Eles praticaram um jogral de conveniências. Isso significa que há uma ordem unida que resiste ao tempo e aos fatos para sugerir aos incautos que a Província segue poderosa porque jamais sofreu estocadas de desindustrialização.


 


Sindicalismo impreciso


 


Poderia começar esta breve avaliação das declarações ao Diário do Grande ABC com qualquer um dos entrevistados, mas decidi pela ordem numérica das páginas. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, cutista de quatro costados, afirmou que nas montadoras da região a diferença salarial sofreu redução quando confrontadas com os metalúrgicos de São José dos Campos e também no Paraná. Mencionou valores para dar veracidade à informação, mas sonegou dados mais relevantes.


 


Primeiro, salários nominais são apenas uma parcela dos custos com a mão de obra na região. As conquistas sindicais prevalecem e encarecem folhas salariais muito, mas muito acima dos concorrentes mais antigos. Digo concorrentes mais antigos, casos do Vale do Paraíba e do Paraná, porque os mais recentes, omitidos por Rafael Marques, ganham com folga em todos os quesitos das planilhas de custos. Ou seja: o peso relativo da mão de obra é muito inferior ao que é registrado na Província do Grande ABC. Os salários são muito mais baixos e os agregados de vencimentos e direitos complementares à legislação trabalhista são infinitamente inferiores. Portanto, Rafael Marques falou apenas uma meia-verdade.


 


Mais diferenças


 


O dirigente sindical disse também que na área de autopeças Campinas tem salários maiores que os da região. Pode ser verdade. Só não disse que o entorno de Campinas, entre outros entornos de cidades-região do Estado de São Paulo, recepcionaram novos investimentos do setor automotivo e impõem novas derrotas à região quando entram em campo custos e benefícios comparativos, além de produtividade.


 


Tem mais sobre as declarações do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, integrante da dinastia iniciada por Lula da Silva no final dos anos 1970. Rafael Marques disse que a Província do Grande ABC é celeiro de mão de obra. “Daqui saíram os níveis de chefia e gerenciais para Indaiatuba e Sorocaba, e por isso estão investindo em centro de treinamento em São Bernardo. Outras montadoras não têm isso formalizado, mas também funcionam assim. Os engenheiros da Ford Camaçari, por exemplo, saíram daqui”, disse o dirigente sindical.


 


O que significam as frases de Rafael Marques? Significam que viramos um time pequeno do campeonato nacional de mão de obra de montadoras e autopeças, cedendo técnicos às novas plantas bem mais azeitadas e atualizadas tecnologicamente. Algumas peças, na verdade: a literatura econômica mostra que a invasão das montadoras nas áreas no entorno de grandes municípios se dá principalmente com mão de obra local, treinadíssima no uso de novas tecnologias. Gente da roça adquire adestramento em pouco tempo.


 


Não temos o monopólio da qualidade técnica, embora nossa mão de obra metalúrgica, sobretudo das montadoras e autopeças, carregue o ônus de um DNA sindicalista que espanta o empresariado. O discurso de Rafael Marques poderia ser levado ao terreno da galhofa com a sugestão de que ao invés de montadoras e autopeças a Província do Grande ABC troque tudo isso por centros de treinamento de mão de obra para a América Latina.


 


Diagnóstico equivocado


 


Muito pior que a abordagem de Rafael Marques e sua pregação de supremacia técnica dos metalúrgicos da região foram as respostas de Paulo Bresciani, secretário-geral do Clube dos Prefeitos do Grande ABC. Ele disse entre outras barbaridades que a região não registra processo de desindustrialização, acrescentando que houve risco dessa mancha na segunda metade dos anos 1990. “Foi algo nacional, com reflexos aqui por sermos polo industrial pioneiro”. E completou: “Recentemente, desde 2012, vivemos momento problemático, com o Brasil dentro do jogo mundial. Tem questão macroeconômica, de competitividade com outros países e, claro, a indústria regional sofre. Vivemos outras situações mais graves e saímos delas com a sociedade regional organizada”.


 


É de lascar, mas tenho de fazer contraposições para restabelecer a realidade dos fatos.


 


Primeiro, a desindustrialização negada pelo executivo do Clube dos Prefeitos é algo como sugerir que a Cantareira não passa por ressaca. A diferença é que a qualquer estação de chuvas mais divina aquele reservatório pode tirar todo mundo do desassossego da falta de água, enquanto a desindustrialização regional é sistêmica, quase endêmica.


 


Segundo, a crise dos anos 1990 teve predominância de causas estritamente regionais. O envelhecimento do setor produtivo regional não suportou o baque da maior abertura dos portos e dos custos específicos da mão de obra, entre outros obstáculos como o esfarelamento da logística numa Grande São Paulo endoidecida.


 


A globalização escancarada do governo Fernando Henrique Cardoso, ou seja, sem regras de contrapartidas e graduais, colocou a nu a baixa competitividade regional.


 


Terceiro, a crise de 2012 que o dirigente do Clube dos Prefeitos destaca como consequência de fatores macroeconômicos do jogo mundial também tem prevalecimento de causas locais, nossas, de esgotamento do modelo automotivo frente aos concorrentes nacionais mais lépidos e menos enrijecidos pelas chamadas conquistas trabalhistas.


 


Quarto, quando Luiz Paulo Bresciani diz que sairemos da crise como teríamos saído da crise dos anos 1990 graças à sociedade organizada, o titular do Clube dos Prefeitos entra em convulsão mental. Para início de conversa não existe sociedade organizada na região; e, para fechamento de conversa, só saímos da crise dos anos 1990, mesmo com imensidão de mortos e feridos, e ganhamos fôlego durante parte dos dois mandatos do presidente Lula da Silva, porque se incrementou o consumo em geral, contando inclusive com o rebaixamento de alíquotas automotivas, para garantir a farra do boi proporcionada pela balança comercial amplamente favorável graças às commodities.


 


Mais que reestruturação


 


Já Giovanni Rocco, secretário-executivo da Agência de Desenvolvimento Econômico, também evita, segundo a matéria do Diário do Grande ABC, falar em desindustrialização. Repete o que antecessores disseram o passado. A indústria regional passaria por reestruturação. Também valoriza fatores externos, como a crise na Argentina, para identificar as razões da crise econômica. É lógico que preferiu esquecer os chineses que estão aí, botando para quebrar. Como outros, Giovanni Rocco coloca a Agência de Desenvolvimento Econômico no topo de organização do gênero, mencionando a multiplicação de técnicos.


 


Num texto paralelo, Rocco cita a importância da indústria de defesa como força motriz à recuperação industrial. Nada que entusiasme quem conhece a fundo o mundo desse setor que tem em São José dos Campos o centro de atenções e investimentos no País. O que a região terá, se tiver, será uma pequena fábrica de componentes rudimentares do projeto Gripen, de valor agregado muito abaixo do necessário para recuperar as perdas industriais. Só em 2013, segundo os últimos dados disponibilizados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), São Bernardo perdeu 23% da força industrial, o chamado PIB Industrial. Imaginem quando saírem os números do ano passado e, principalmente, deste ano.


 


Giovanni Rocco é tem a seu favor no breve currículo à frente da Agência de Desenvolvimento Econômico a iniciativa que permitiu uma parceria com a Universidade Metodista de São Bernardo, da qual saiu um estudo importantíssimo sobre as consequências econômicas que o monotrilho provocará em território regional, ao cruzar territórios de São Bernardo e São Caetano. Certamente quem teve essa iniciativa poderá ser visto com mais entusiasmo como agente de mudanças. Por isso não precisa entrar na corrente mais que envelhecida de mistificação da crise industrial regional.


 


Deputados alheios


 


As intervenções dos deputados federais Alex Manente e Vicentinho Paulo da Silva também foram pífias. Alex Manente falou em unificação do ICMS (Imposto de Circulação sobre Mercadorias e Serviços) como alternativa capaz de mudar o quadro. Nenhuma medida macrotributária resolverá os problemas específicos do setor industrial desta Província, simplesmente porque as mudanças eventualmente introduzidas no modelo brasileiro valeriam para todos os entes da Federação. Nossa baixa competitividade econômica tem raízes locais, construídas ao longo dos anos, e se juntam à imensidão da floresta de problemas estaduais e nacionais que os demais municípios e Estados igualmente cultivam.


 


Vicentinho Paulo das Silva respondeu com o viés próprio de ex-sindicalista que virou deputado. “É bom lembrar que elas (empresas) têm a lógica do lucro fácil. Quando saíram de seus países para vir aqui foi com essa intenção”. Uma verdade, mesmo que enviesada, que não deixa de ser uma confissão de fundamentalismo ideológico que reitera as dificuldades da região. O terreno da competitividade regional está minado para quem sabe que esse é o nome do jogo internacional e que capital não suporta desaforo nem aperto demais do torniquete sindical.


 


A titular da Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Santo André, Oswana Fameli, também ouvida pelo Diário, disse o que já repetiu centenas de vezes sobre o chamado polo tecnológico que jamais chega e que, mesmo chegando, não vai resolver o problema industrial na dimensão necessária. Oswana projetou um pacote de políticas públicas para criar condições favoráveis às empresas. Tudo isso a pouco mais de um ano do esgotamento do mandato, primeiro ou não, do prefeito Carlos Grana.


 


Tecnologia da Informação


 


Já o Secretário de Desenvolvimento Econômico de São Caetano, Francisco Soeltl, disse que a migração da indústria é fenômeno além das questões municipais. Ele destacou custos imobiliários, sindicatos e logística como causadores. Tudo quase que integralmente correto. Menos a afirmativa de que São Caetano não teria como buscar caminho alternativo. E os projetos voltados à Tecnologia da Informação, afinal, onde estão, depois de cantados em prosa e verso?


 


Mauá do secretário de Desenvolvimento Econômico Aldo Cursino fala como era de se esperar sobre as vantagens do Rodoanel, como se o Município tivesse se preparado para receber um braço daquela serpentina logística. Outras declarações nem vale a pena avaliar. Estamos no mato da desindustrialização sem o cachorro da autocrítica inteligente.


 


Lembrei em cima da hora que o quadro publicado no suplemento, com dados fornecidos pelo Clube dos Prefeitos, sobre a movimentação do emprego e do número de empresas dos setores industrial, comercial e de serviços tendo como base de cálculo o último ano de Fernando Henrique Cardoso, 2002, e, na ponta, 2014, é tão digno de confiabilidade à análise histórica da economia da região quanto uma pesquisa que pretenda inventariar a proporção de santistas no ranking de torcedores de futebol no Brasil tendo como geografia o Estádio da Vila Belmiro num jogo qualquer do time mandante. Ou seja: os números orquestrados são seletivos e, mesmo que não fossem, são incompletos para uma análise mais precisa do movimento das peças econômicas da região -- por razões que já cansei de explicar.


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