Imprensa

Jornalismo e panfleto

MILTON SALDANHA - 20/08/2015

O primeiro jornal em que trabalhei, começando aos 17 anos, em 1963, em Santa Maria (RS), era um panfletário de esquerda, semanal. Eu pensava que estava fazendo jornalismo, mas depois aprendi que a gente, na verdade, fazia panfleto. E era muito bom. Depois disso, escrevi bons panfletos, a maioria clandestinamente, na política estudantil e contra a ditadura. Nada tenho, portanto, contra o panfleto. Pelo contrário, gosto muito.


 


Só não gosto quando alguém faz panfleto e tenta dizer que é jornalismo. É o caso explícito da revista Veja. 


 


Nos meus 70 anos de vida, acompanhando a política brasileira desde os nove anos de idade, fato inusitado mas rigorosamente real, tanto que escrevi um livro de memórias que abrange 60 anos da História recente, nunca tinha visto uma campanha de mídia contra um presidente da República tão forte quanto esta que se levantou contra Dilma.


 


Claro que ela tem grande responsabilidade nisso pelos erros evidentes que cometeu neste início de segundo mandato, o primeiro deles querendo fazer ajuste fiscal no bolso dos trabalhadores de baixa renda e sem coragem de taxar as grandes fortunas. Mas não é só isso. A mídia fomentou seu desgaste desde muito antes, sem um contraditório que permitisse a reflexão das pessoas.


 


Safra de bons resultados


 


Até coisas irrelevantes foram tratadas como sérias, sempre com muito exagero. E falta objetividade e isenção para tratar dos temas econômicos. Um bom exemplo é a safra agrícola de 2015, com ótimos resultados, mas isso não vira manchete. Nada que melhore o ânimo da população interessa aos manipuladores da informação. Só para esclarecer: safras agrícolas têm reflexos diretos sobre o consumo. Quando boas, melhoram os índices econômicos. Mas não é em 24 horas, isso envolve um tempo de maturação e assimilação pelo mercado.


 


Falta também à mídia o equilíbrio que lhe daria credibilidade. Apenas a Folha de S.Paulo abre espaço para o contraditório e mantém colunistas não alinhados com o pensamento único. Na TV, só a Cultura informa e debate ao mesmo tempo, em seu telejornal, além de ter no Roda Viva uma tribuna para as mais divergentes vozes. Isso sim é jornalismo respeitável.


 


Unilateralidade explícita


 


A revista Veja é um horror. Basta ver sua seção de cartas de leitores. Só entram aquelas que apoiam suas teses. Nenhuma que conteste. A alegação será sempre falta de espaço.


 


Mas na edição desta semana a Veja se superou como mestra do mau jornalismo, ou do panfletismo não assumido: no meio de dezenas de páginas destinadas a demolir Lula e seu PT (e nada tenho contra isso), uma, com cara de press release, inocenta Aécio Neves de qualquer irregularidade na construção, com dinheiro público, do aeroporto de Claudio, na fazendo do seu tio. O aeroporto custou 14 milhões de reais. A matéria informa que o Ministério Público arquivou o pedido de investigação, considerando que Aécinho nada fez de errado, é um santo, não superfaturou, está tudo correto, e assim o assunto fica encerrado. Fácil, né.


 


Se a Veja praticasse bom jornalismo teria mandado um repórter ouvir e questionar o autor do arquivamento. Perguntas não faltariam. Uma delas: como sabem, sem investigar, que não ocorreu superfaturamento?


 


Jornalismo é uma profissão de alta rotatividade entre empregos. Como a maioria dos meus colegas, ao longo dos meus 52 anos de carreira, passei pelos mais variados veículos impressos e eletrônicos. Um deles, acho que lá pelo final dos anos 1980, foi a Veja. Uma passagem rápida, mas suficiente para ver como as coisas funcionam naquela redação. Eu estava como repórter, mas ajudava no fechamento da edição, nas madrugadas das sextas-feiras, uma função de editor. Certo dia recebi e finalizei uma ótima matéria de um correspondente em Minas, que contava sobre uma multinacional do leite que estava comprando, para formar monopólio, os pequenos laticínios regionais. Era uma denúncia. A matéria foi vetada e me obrigaram a transformar num texto sem nenhuma importância, contando apenas que a Parmalat estava lançando leites com diferentes cores e sabores. Foi o que saiu.


 


Minoria de bandidos


 


Isso é a Veja. Não fiquei na revista, nem eles me queriam, porque nunca fui jornalista de cabresto. E não pensem que conto isso por bravata ou ressentimento, porque nunca me faltou emprego e bom salário, principalmente em cargos de chefia. Mas nunca me senti sozinho: a esmagadora maioria dos jornalistas é gente honrada, de coragem e com princípios. Os bandidos da classe, que existem em qualquer categoria, são minoria e ficam logo negativamente conhecidos e queimados. Outros, de passado nebuloso, e não citarei nomes, contam com o tempo como aliado para o esquecimento. Isso é uma vergonha!


 


Hoje, felizmente, não preciso do mercado de trabalho, e vivo melhor sem ele, me dedicando principalmente a ler, escrever, viajar e dançar tango.


 


Enquanto a mídia brasileira estiver nas mãos de meia dúzia de famílias milionárias e poderosas, com interesses atrelados ao do alto capitalismo, teremos um jornalismo apenas disfarçado de isento e pluralista. Quem manda na informação no Brasil é o patrão, ponto final. Há editores que se borram nas calças por causa disso. Conheci um, no Estadão, já falecido, mestre da autocensura, que em cada parágrafo da matéria me perguntava baixinho, pelo telefone, porque eu ficava na sucursal do ABC: “Será que o Dr. Júlio vai gostar?” Eu me continha, tinha família para sustentar e não queria atritos, mas tinha uma vontade danada de mandá-lo à merda. Quanto maior a redação, mais proliferam esses cagões.


 


Não é fácil fazer carreira nessa realidade. Eu fiz, buscando os espaços possíveis e sem violentar meus princípios. No Estadão, por exemplo, chefe da sucursal do ABC, fiz parte de uma greve de jornalistas. O único caso similar foi Roberto Appel, que chefiava a sucursal de Porto Alegre. Os demais pensaram primeiro em seus empregos. Não foi sem razão que tive na Carteira do Trabalho vinte empregos registrados, fora aqueles que lá nem aparecem. Mas a profissão, apesar dos patrões e dos editores covardes que tentam interpretar o pensamento e interesses deles, é fascinante. Valeu muito a pena e deixou saudades.


 


O leite mineiro, acima citado, foi apenas um detalhe, entre dezenas de outros que teria para contar, dos mais variados calibres e lugares. O único problema da Veja é que ela exagera e supera a todos no que há de pior da mídia. Porém, como panfleto, vamos admitir, pelo ponto de vista técnico, é muito boa.  


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