Fui tão bem tratado no Diário do Grande ABC como consultor editorial, como quase ombudsman, porque mais que ombudsman, e também como apresentador de um programa de TV na Internet que, aparentemente, não havia o menor sentido em ter redigido na última quinta-feira carta de despedida à direção daquela companhia.
Depois de cinco meses, 22 colunas “Contexto ABC”, 10 programas “Diálogo Aberto” e série de pequenas proposições editoriais decidi me afastar do jornal mais tradicional da região. A explicação é simples: teimo em viver profissionalmente no embalo de perspectivas sobre as quais tenha alguma capacidade interventora estratégica compatível com reação de parceiros de trabalho e suas circunstâncias operacionais.
A crise econômica, social, moral e de civilidade na Província do Grande ABC não está no horizonte próximo de operacionalidade resolutiva do Diário do Grande ABC que conheço. Daí, voltar à minha rotina anterior, exclusivamente nesta revista digital, foi um passo. Por isso me senti tão aliviado quanto triste -- sem a passagem temporal de um sentimento de frustração, porque já estou calejado de guerra.
Como respeito sobremaneira os leitores mais assíduos deste CapitalSocial não poderia me furtar a esse breve artigo sobre meus cinco meses no Diário do Grande ABC, os quais se somam os nove meses como diretor de Redação entre 2004 e 2015 e os 15 anos, ocupando todos os postos de Redação, entre 1970 e 1985, na primeira passagem por aquele veículo.
Sempre chamei a atenção dos leitores para que não se desgrudassem de minhas ações no Diário do Grande ABC. Convoquei-os a grudarem os olhos em tudo que fatalmente apareceria no meu dia a dia. Aqui estou para prestação de contas rápida, clara, cristalina. Uma prestação de contas respaldada pela serenidade e pela verdade dos fatos. Sem fofocas naturais de quem está a serviço de terceiros.
Participação produtiva
Minha breve participação nesta terceira passagem pelo Diário do Grande ABC foi bastante produtiva entre outras razões porque até estava me acostumando a ser perguntador oficial de um programa na Internet. O convívio com os profissionais de Redação, embora breve e circunstancial, também foi excelente. Do presidente Ronan Maria Pinto, um dos meus endereços prediletos a críticas quando dirigia o Saged, empresa que terceirizou o futebol do Santo André, só obtive atenção e generosidade. Sérgio Vieira, comandante da Redação, jamais se mostrou insatisfeito com minhas intromissões. Entregou-me os jornalistas em algumas reuniões de final de tarde. Foram encontros que mataram minha saudade dos tempos de Editor de Esportes, Editor de Economia e uma espécie chefe de Redação nos anos 1970, além da direção daquela publicação há pouco mais de 10 anos.
Então, perguntariam os leitores: por que saí, saí por quê? Porque não tenho mais paciência para esperar um futuro do qual duvide que chegue. O esfacelamento da Província do Grande ABC em todos os setores, sincronizado com a fragmentação da cidadania, não terá no Diário do Grande ABC ou em qualquer dos veículos de comunicação da região, somados e multiplicados, polo confiável ao estancamento. Esse é um jogo que não depende apenas da mídia, embora a mídia seja parte importantíssima.
Futuro devastador
Em situação normal de tempo e temperatura, esta Província seguirá a marchar rumo a um futuro cada vez mais devastador como suposta integridade regional. Estamos entregues a sortilégios do destino. Talvez algum acidente de percurso nos ofereça uma vereda à recuperação parcial. Da engenhosidade não devemos esperar nada. Faltam-nos líderes e abundam charlatães.
O comunicado que enviei ao presidente daquela companhia, Ronan Maria Pinto, ao diretor de Redação, Sérgio Vieira, e à diretora jurídica Elaine Mateus, foi tão curto quanto emblemático. A Carta do Grande ABC que o Diário publicou na primeira página de 11 de maio último, como consumação de reuniões que mantivemos com aqueles três diretores, é muito mais que uma utopia bendita, a qual poderia instrumentalizar sonhos e embalar o entusiasmo rumo a conquistas parciais, embora importantes. Aquele documento soa como abstração. O ambiente regional não comporta sequer sonhar. Roubaram-nos também os insumos da fantasia. O pragmatismo frio é o prato do dia e a hospedagem da noite.
O Diário do Grande ABC resiste num ambiente de mídia impressa assolado economicamente pela multiplicação de plataformas de comunicação e, particularmente nesta geografia, pelo esclerosa mento de um modelo industrial que sustentou a mobilidade social durante décadas.
Dispersão irremediável
Pior que o modelo econômico do passado que resiste nestes tempos é a dispersão da sociedade à qual o Diário do Grande ABC se dirige. Não existe nesta Província o menor sinal de que as forças de pressão, geralmente deletérias à cidadania, deixarão de entrincheirarem-se para sustentar seus postos. O que existe de mais daninho numa sociedade está reunido nesta Província. Estamos absolutamente encalacrados. E o principal jornal da região não haveria de se desvencilhar desses tentáculos apenas porque em boa hora e providencialmente, embora de forma romântica, porque sem infraestrutura de recursos humanos, tenha se dado à missão de construir uma Carta.
Quem teve o interesse de ler as 22 colunas Contexto ABC que produzi para o Diário do Grande ABC desde abril último deve ter captado a mensagem: à medida que o tempo passava e meu desencanto se acentuava, após breve estágio de esperança, mais dava mostras de que faria daquela jornada profissional não mais que um tiro curto.
Talvez o tempo tenha me ensinado a distinguir racionalidade de paixão quando está em debate a regionalidade desta Província. O Diário do Grande ABC me parece ter sido a última escalada de acreditar em alguma coisa transformadora.
Se for para perder tempo, prefiro seguir nesta revista digital entre outras razões porque não tenho de dar satisfação a ninguém, exceto à minha consciência. No Diário do Grande ABC que me ofereceu ampla e total liberdade de atuação, paradoxalmente me sentia um estorvo e não pretendia, de forma alguma, me tornar um convidado indesejado. Tudo se encaminhava nesse sentido. Estava a exercer ali, principalmente como colunista crítico do próprio jornal, a função de implacável torturador e de inconsolado torturado.
Médico e monstro
O tom que tive de imprimir nas últimas edições de “Contexto ABC” denunciava um jornalista repetitivo, por mais que caminhasse em busca de criatividade estilística. A inação regional é um processo tão sedimentado que congelou a todos. Tenho espasmos de impaciência quando leio que somos uma sociedade civil. Não somos mais que um bando em busca silenciosa de alguma saída. Os bons, que são muitos, não resistem aos maus, que são poucos mas preponderantes na desordem calculadamente desagregadora em que vivemos.
Ter passado pelo Diário do Grande ABC foi uma nova experiência da qual jamais me arrependerei. Por outro lado, precisava mesmo colocar um ponto final. Não suportava mais viver na corda bamba de integrante da equipe e crítico dessa mesma equipe. Esses laços me tornavam preso de mim mesmo. Vivi uma dualidade de médico e monstro.
Voltar a receber a cada manhã uma nova edição do Diário do Grande ABC na soleira de minha porta é um exercício muito mais saudável. Durante cinco longos meses senti essa rotina violentada pela sensação de que havia uma carta-bomba atirada pelo motoqueiro.
Passado me liberta
Não sei quantos profissionais de jornalismo teriam coragem de abrir mão da tríplice atuação que exerci no Diário do Grande ABC durante quase um semestre. Provavelmente poucos. Talvez até este jornalista seja uma raríssima exceção. Possivelmente a melhor explicação é que sou refém do passado que pauta o futuro.
Ou seja: o conhecimento regional de que desfruto limita sobremaneira a maleabilidade de acreditar no dia de amanhã com o mesmo grau de entusiasmo de quem não dispõe desse ativo de informações. Portanto, sou vítima de minha própria e consolidada experiência regional. Sei decifrar a região sem grandes dores de cabeça. Pena que o preço disso seja um caminhão carregadíssimo de ceticismo.
O Diário do Grande ABC de hoje não passará por essa dura sabatina de regionalidade transformadora porque no passado de uma Província economicamente invejável também foi incapaz de dar a volta olímpica da redenção. A sociedade é resiliente demais no apego municipalista regado a individualismo, corporativismo e tudo que se imagina como componente do atraso.
Somos o retrato do Brasil, com a diferença de que o Brasil jamais conheceu nossa prosperidade durante longos períodos, enquanto estamos experimentando já há duas décadas um processo de empobrecimento que avançará a ponto de nos tornarmos iguaizinhos à média brasileira. Estudos já demonstram essa tendência inexorável.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)