O Diário do Grande ABC não pode abrir mão de conectar os leitores com o mundo real desses mais de 800 quilômetros quadrados de território. É o está fazendo nas últimas semanas de forma mais enfática. Algumas cidadelas parecem à beira de um ataque de nervos. Outras provavelmente vão sentir o peso de uma linha editorial mais incisiva. Os acomodados devem estar muito preocupados. Esta Província ainda tem muito a ser remexida, mas já é um bom começo.
Já imaginaram os leitores como estão a conversar os mercadores imobiliários que, justamente por serem mercadores imobiliários, colocam a responsabilidade social no quarto de despejo de relacionamento com a sociedade? Sim, depois da saraivada de matérias reveladoras sobre as estripulias do magnata do setor, o empresário Milton Bigucci, presidente do Clube dos Especuladores Imobiliários, o que replicantes estão a projetar?
A massa de empresários do setor que levam a sério a atividade deve estar agradecida. O Diário colocou o dedo numa ferida de safadeza disfarçada de competitividade, caso do leilão fraudulento no qual Milton Bigucci e parceiros proporcionaram exibição digna de telenovela mexicana, facilmente desmascarada.
Quem acha – e sempre aparece alguém que vê seletividade na abordagem envolvendo aquele empresário – que o uso e a ocupação do solo na região serão tema ocasional na nova postura editorial do Diário deveria ouvir o diretor de Redação Sérgio Vieira. Há engatilhadas outras operações que desmontarão redutos que se sentiam intocáveis. Aliás, a atuação da Tecnisa, que se esqueceu de construir uma rua num megacondomínio em Diadema, abriu a temporada de caça às irregularidades.
Drible no feriado
A semana de análise deste jornalista que vai de sexta a sexta-feira foi prejudicada pelo feriado prolongado. A maioria dos jornais impressos sofre com a perda de densidade informativa. Pelotões de profissionais entram em regime de descanso em forma de rodízio. Mas nem esse intervalo reduziu a intensidade deste Diário no processo de aproximação com os leitores.
Tanto que produziu na edição de quinta-feira, 22 de abril, quase que na ressaca do feriadão, uma matéria inédita sobre cursos que os trabalhadores em regime de lay-off são obrigados a frequentar para que recebam regularmente seus vencimentos. Lay-off é suspensão temporária do contrato de trabalho que garante os salários pagos pelas empresas contratantes e pelo FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador). A Mercedes-Benz demitiu durante a semana 500 dos 715 profissionais afastados desde meados do ano passado. O Ministério do Trabalho e Emprego só garante o pagamento de parte dos salários durante cinco meses.
Este Diário foi a campo para ouvir trabalhadores. Descobriu que há muitas falhas no processo. Os cursos são redundantes, quando não inúteis. Se for mais a fundo o jornal vai revelar uma farsa em larga escala, de gente que finge que estuda e de empresas que fingem que estão preocupadas com aprendizado útil fora da linha de montagem.
Cadê o sindicato?
Também foi surpreendente a constatação de que nos casos específicos da Mercedes-Benz e da General Motors, que recorreram à medida, o sindicato não participa da escolha do aprendizado. Tudo ficaria a cargo das próprias montadoras. É muito pouco provável que se consolide experiência exitosa de cursos profissionais quando não há estudos que identifiquem vácuos de mão de obra na região.
O que se pergunta é até que ponto o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC já se preocupou com alguma iniciativa que recicle para valer esses profissionais? Compartilhar responsabilidades é o se espera dos sindicalistas. Vou mais longe: pelo volume de trabalhadores afastados do dia a dia das fábricas, as unidades do Senai na região, que já cumprem atividades regulares com público convencional, não comportam demanda adicional. Como estariam se virando?
Mesmo com buracos informativos a matéria do Diário do Grande ABC é oportuna. Nenhum dos grandes veículos diários impressos do País se preocupou com uma pauta que comporta novas incursões. Há um cheiro de desperdício a contaminar as relações entre Estado, Capital e Trabalho.
Ovo da serpente
Embora dê prioridade ao voo panorâmico do Diário, ou seja, a questões que já demarcam a alavancagem de interlocução mais assertiva com a sociedade, questões pontuais com viés de complicações estruturantes não podem ser minimizadas. A greve na Mercedes-Benz após a demissão de 500 trabalhadores não é um acontecimento qualquer. Trata-se da expressão mais explícita do ovo da serpente da baixa competitividade da indústria regional, sobretudo do setor automotivo, em um mundo em que as cadeias de produção ditam o futuro das localidades.
Havia muito tempo a direção do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC fora informada sobre o excesso de dois mil trabalhadores naquela montadora de ônibus e caminhões. Mesmo quando a maré era favorável ao setor, a multinacional de capital alemão anunciava necessidade de ajustes de pessoal e produção. A falta de transparência do sindicalismo regional, que prefere o jogo de cena da vitimização, utilizando-se de discurso demagógico, sugere que a vilania solitária é da companhia empregadora. Essa história precisa ser mais bem contada.
*Matéria originalmente publicada no Diário do Grande ABC
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