O modelo automotivo herdado por Fernando Henrique Cardoso dos tempos de autarquia econômica sob dirigismo do Estado e o mapa do inferno que o ex-presidente entregou ao sucessor Lula da Silva, de plena abertura comercial ditada pelos movimentos do capital livre, simbolizam muito mais que dois períodos contrastantes e perniciosos do guarda-roupa macroeconômico nacional.
O cadeado posto à integração externa do País durante o período nacional-desenvolvimentista, seguido do escancaramento de portas e janelas da internacionalização a qualquer custo, desloca o eixo de debates para um mesmo ponto: tanto num caso quanto noutro os governos federais de plantão protagonizaram patetices que, nas respectivas etapas, encantaram os conservadores e indignaram os liberais e, na sequência, encantaram os liberais e indignaram os conservadores.
Salsicha no meio dessas duas bandas de interesses diametralmente opostos, o Grande ABC saiu do céu e se enfiou no mais ardente dos infernos. Nos tempos de mercado fechado, nadou de braçadas com improdutividades e abusos que o setor privado, em conluio com a estatocracia gerencial, perpetrou em larga escala com suporte técnico-político do CIP (Conselho Interministerial de Preços). Nos tempos atuais de abertura destrambelhada, o Grande ABC come o pão que o diabo amassou diante da necessidade de adequar-se ao figurino esquálido da competitividade a todo custo.
Viveu-se, portanto, um inferno de irresponsabilidade macrogerencial do País que desprezou completamente a importância do gradualismo para transpor, sem tamanhas dores econômicas e sociais, o congelamento seguido de imersão em água fervente. Faltou ao governo Fernando Henrique Cardoso o senso protecionista que o presidente George Bush, por exemplo, implementou no setor de aço nos Estados Unidos. Quando assumiu o posto — contam os jornalistas Edward Alden e Caroline Daniel, do Financial Times –, Bush impôs tarifas de até 30% sobre o aço importado pelos Estados Unidos. A explicação: “Precisamos facilitar um ajuste positivo à competição contra o produto importado”.
Charles Bradford, presidente da Bradford Research, consultoria especializada em metais, afirmou: “Uma mudança monumental está ocorrendo, o que ampliará a competitividade das siderúrgicas, que vinham sendo consideradas dinossauros corporativos praticamente inúteis”. E completou: “Com três ou quatro siderúrgicas fortes, a indústria será capaz de conduzir melhor as negociações, ajudando a estimular os preços do aço, que estavam em baixa histórica antes da imposição de tarifas”.
Por que Bush decidiu tarifar as importações de aço? A proteção ofereceria ao setor uma pausa para reorganização e ajuste aos produtos de fora de baixo custo. A matéria do Financial Times é elucidativa: “A natureza abrangente do programa tarifário de Bush mudou a dinâmica do mercado. Além da proteção tarifária, Bush exigiu uma reestruturação do setor siderúrgico norte-americano como contrapartida e tomou providências objetivas para cobrir parte dos dispendiosos planos de aposentadoria de antigos operários siderúrgicos”.
É extremamente interessante estabelecer paralelos entre o setor automotivo brasileiro, até então notadamente concentrado no Grande ABC, Vale do Paraíba e Grande Belo Horizonte, e o setor siderúrgico norte-americano. A história teria sido completamente outra se o governo FHC tivesse implantado medidas análogas às de Bush, em vez de vangloriar-se do desmesurado rebaixamento de alíquotas alfandegárias que atingiriam em cheio as autopeças e durante determinado período favoreceu o investimento nas montadoras mais antigas.
A crise no setor automotivo nacional é resultado da mania dos gerenciadores públicos nacionais, fascinados pelo gigantismo que a mídia acrítica e incentivadora de perdularismo fermenta com a fartura de manchetes. No campo esportivo, apenas para que um exemplo emblemático seja assimilado como comparativo, o Brasil viveu a fase de construção de grandes estádios. Mineirão, Pelezão, Castelão e assemelhados levaram o País a ocupar posições de destaque inócuo no livro dos recordes. Chegaram a construir um estádio muito maior que a população da cidade. O dinheiro público, então farto e livre das amarras fiscalizatórias, patrocinou tal disparate.
Com FHC espalhou-se pelo País uma infinidade de veículos ao custo de guerra fiscal, de precarização do mercado de trabalho, de retalhamento da demanda, de aniquilamento da rentabilidade. Deixamos de levar em conta a dualidade da Belíndia, uma obra de séculos que não se eliminará em algumas décadas. Principalmente num País que há 20 anos não sabe o que é crescimento do PIB per capita.
Não teria sido mais humano e equilibrado para o mercado de trabalho, mais ajuizado para os investimentos e mais interessante aos cofres públicos se o governo Fernando Henrique Cardoso tivesse aplicado no setor automotivo brasileiro — então dinossáurico como o setor de aço norte-americano — uma política econômica semelhante à de Bush? Um planejamento estratégico que permitisse uma modernização cuidadosa, executada sob o pressuposto de que, antes de abrir demais, o ideal seria manter o mercado fechado e forçar legalmente as montadoras mais antigas aqui instaladas a praticarem cronograma de investimentos que rebaixasse os custos relativos dos veículos, aproximando-os dos valores médios de produtividade internacional? E que em paralelo, para evitar a precarização do mercado de trabalho nas regiões atingidas pela onda de eficiência, se introduzissem políticas de recolocação da mão-de-obra, preferencialmente com o estímulo de aproximar as cadeias produtivas sob o conceito de interdependência, de coopetição, em vez de competição?
Mas, como ficaria o populismo com a farra das montadoras nos mais diferentes pontos da geoeconomia nacional? Esqueceram que fábrica de veículos se transformou em ícone desenvolvimentista sob o guarda-chuva de um marketing político-partidário semelhante ao dos gigantescos estádios dos tempos de Brasil Grande? Como poderia o governo FHC, engabelado pela massa crítica das indústrias automotivas de mercados exauridos nos Estados Unidos, Europa e Ásia, resistir à avalanche do dimensionamento exagerado do potencial de um país que não conta com mais de 60 milhões de habitantes em condições de participar do consumo veicular?
A situação que vive a indústria automotiva — e se perde no mar de problemas o setor de autopeças, praticamente desnacionalizado pelo tratamento alfandegário discricionário, entre outros descuidos do governo FHC e de um sindicalismo seletivo — é extremamente grave não só porque o governo Lula da Silva recebeu um País em escombros macroeconômicos. Pesa também na equação — e vários dos executivos de montadoras já ofereceram esse cardápio de lamúrias nos últimos tempos — o descompasso entre excesso de oferta e escassez de demanda. Diferentemente do que imaginam alguns triunfalistas, esse contrapasso está longe da circunstancialidade da conjuntura econômica para se instalar em pontos profundamente estruturais e, portanto, mais duradouros.
O governo Fernando Henrique Cardoso caiu no conto de um liberalismo que a pátria do liberalismo mundial pratica com sentindo diametralmente oposto, como está claro no protecionismo do setor de aço para retomada de fôlego, reorganização corporativa, compactação e seletividade de players e, a partir daí, enquadramento aos pressupostos de competição em que os maiores beneficiados são os consumidores locais.
Fernando Henrique Cardoso protegeu durante determinado período apenas parte dos protagonistas do jogo automotivo — as antigas montadoras aqui instaladas. Sacrificou a maioria dos empreendimentos nacionais de autopeças. Iludiu a platéia com a multiplicação de plantas automotivas que, ao repartirem um bolo esquálido, não contam com a essencial escala de produção para beneficiar os consumidores.
Os mesmos consumidores que, em queda permanente de massa salarial, praticam o constrangedor voyerismo de apreciar as jóias sobre-rodas encalhadas nas vitrines de concessionárias ou nos pátios de montadoras coalhadas de problemas. Quando muito, fazem malabarismos orçamentários para esticar a prestação dos carros populares, que já representam um terço da frota em circulação.
Concorrência demais é como monopólio ou oligopólio sem contrapartidas de eficiência: faz muito mal ao bolso dos investidores, dos consumidores e aos cofres do governo, simplesmente porque não há capitalismo que resista à não-remuneração do capital, ao barateamento do consumo e ao suprimento do monstro estatal.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES