Imprensa

Uma entrevista que explica a
gênese desta revista digital

DANIEL LIMA - 27/11/2015

O jornalismo que pratico desde que me conheço por jornalista, e isso faz 50 anos, não é o jornalismo que alguns gostariam que eu praticasse. Até alguns membros do Judiciário, pouco afeitos ao jornalismo que pratico, ao jornalismo que os jornalistas de verdade praticam, censuram meus parágrafos, considerando-os pecaminosos porque invadem o terreno da interpretação baseada em informações consolidadas. Teria este jornalista unicamente que se reportar às informações em estado bruto. Uma heresia que atinge diretamente o coração da cidadania.


 


Vou traçar dois paralelos sobre o jornalismo do qual não abro mão, porque não glorifica declarações nem sempre verdadeiras de terceiros, e o jornalismo contemporâneo praticado nas melhores praças pelos melhores profissionais do ramo.


 


Lanço mão de alguns parágrafos da entrevista que o jornalista Nick Davies concedeu ao também jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews. Primeiro, entretanto, reproduzo os parágrafos de apresentação do convidado da GloboNews:


 


 Registrar, revelar, denunciar, contextualizar, questionar, explicar. Verbos que fazem parte do trabalho cotidiano dos jornalistas, mas nem sempre são simples de conjugar. Quando, por exemplo, um repórter decide dar visibilidade a segredos militares, que o governo dos Estados Unidos e seus aliados preferiam manter em sigilo, as pressões não são poucas. Foi assim no caso que ficou conhecido como WikiLeaks, que arranhou um pouco mais a imagem dos serviços de informações americanos e ainda alimentou muitas dúvidas sobre campanhas militares patrocinadas por Washington. Foi assim também no escândalo das escutas ilegais na Inglaterra, que precipitou o fechamento do centenário tabloide News of the World do magnata da mídia Rupert Murdoch e expôs ligações espúrias e práticas inaceitáveis de alguns dos mais influentes jornalistas do Reino Unido. O elo entre essas duas coberturas é um repórter que colabora há mais de três décadas com o jornal inglês The Guardian e não se assusta com pautas difíceis e nem recua na hora de criticas a profissão que abraçou. Aos 62 anos, Nick Davies segue mais inquieto e ativo do que nunca.


 


Primeiras declarações


 


Estão entendendo aonde quero chegar? Vou adiante, agora com algumas das declarações do entrevistado Nick Davies:


 


 Ser jornalista pode ser frustrante. Muitos de nós temos a fantasia, que nos faz sair da cama de manhã, de que, se escrevermos sobre uma coisa ruim, ela deixará de acontecer. O que acontece é que você escreve sobre a coisa ruim, os responsáveis por ela ficam muito irritados com você e continuam. (...) Quando você tenta expor abuso de poder, enfrenta pessoas muito poderosas que não querem abrir mão de seu poder. Em termos de elite e da forma como a política funciona, acho que não mudamos nada. (...) A Internet teve um efeito devastador em nosso modelo de negócio. Ela está nos tirando leitores e anunciantes, que foram as duas fontes de renda que nos mantiveram vivos durante décadas. Eles estão indo embora. (...) Se nos próximos 10 ou 20 anos, nós morrermos, as pessoas vão lamentar. Vão desejar que seja inventada uma nova profissão que faça o que devemos fazer: ir à rua descobrir o que é verdade e o que não é e passar a informação adiante. Isso é muitíssimo importante.


 


Mais declarações


 


Os parágrafos seguintes da entrevista do jornalista inglês entrevistado pela GloboNews guarda fino parentesco com as funções de ombudsman não autorizado que pratico de vez em quando e já faz muito tempo. Prestem atenção:


 


 Nos jornais de Londres circula um velho ditado: “Cão não come cão”. Esse é o lema dos jornais de circulação nacional. O cão pode comer o gato ou o rato, mas não o cão. Ou seja, os jornalistas escrevem sobre todos, mas não sobre si mesmos. Então, o Guardian, eu e alguns outros começamos a escrever sobre a realidade da nossa história. Não só os crimes. Escrevi um livro que discute por que contamos histórias com imprecisões, distorções e propaganda. (...) O fluxo de informações, que tem tanto impacto na democracia e na forma como as pessoas veem o mundo, é muito importante. (...) Todo mundo tem opiniões, mas, se formos profissionais, somos capazes de deixar essas opiniões de fora. Mas as pessoas falam no ideal de “objetividade”. Acho que isso é um mal-entendido. Assume-se que existe uma versão objetiva da verdade que podemos pegar e colocar no noticiário, como faríamos com uma pedra. E, na verdade, quando, em qualquer época, um ser humano tenta representar a realidade numa escultura, numa foto, numa matéria ou no que seja, temos de tomar decisões: escolhemos o assunto, o apresentamos de tal forma. Até um fotógrafo pode tirar uma foto de outro ângulo, colorida ou não, com alta luz. Portanto, o nosso trabalho é repleto de decisões, e é bobagem achar que podemos ser objetivos, mas não tem a ver com escolher lados, mas com a necessidade de tomar decisões.


 


Declarações consagradoras


 


Agora, os parágrafos finais e consagradores a todos os jornalistas que não se deixam levar pela conversa fiada de simplesmente transpor para a tela de um computador as informações de terceiros:


 


 (para se manter relevante) o jornalismo precisa deixar de simplesmente relatar acontecimentos e passar a ajudar as pessoas a entendê-los. Pela primeira vez, existe apoio comercial para isso. Já percebemos que, com a internet tirando nossos leitores, a forma de recuperá-los é dar às pessoas a chance de entender o mundo, que está muito complicado e confuso. Há dez anos, quando a internet nos assustava, muitos gerentes disseram: “Precisamos economizar. Vamos parar de fazer investigações longas e complicadas. Elas são muito caras”. Agora eles estão dizendo: “Precisamos dessas investigações, que são especiais. Assim, as pessoas virão até o nosso site”. Começamos a fazer no Guardian o que chamamos de “leituras longas”. São reportagens de seis mil palavras, enormes, que só 1% ou 2% de nossos leitores vão ler, mas, quando leem, dizem: “Ah, agora entendi. Vou ler o Guardian amanhã”. É isso: tentar dar sentido a um mundo muito complicado. Acho que esse é o nosso futuro – disse o jornalista.


 


Evangelho antigo


 


Quem procura maledicência para tentar especular sobre as razões que me fizeram deixar o Diário do Grande ABC depois de cinco meses e pouco de consultoria e também como ombudsman, encontra as melhores explicações nos parágrafos finais da entrevista do jornalista inglês. Ou se pretender ir às raízes de minha decisão, sugiro que leia os seguintes parágrafos que construí em março de 2004 (portanto há mais de 11 anos) e que consta do acervo desta revista digital sob o título “Cinco anos para Diário se adaptar aos conceitos de regionalidade”. O que vou transpor agora é apenas um fragmento do Planejamento Estratégico Editorial que preparei àquele jornal quando, naquele 2004, assumi a direção de Redação, cargo que ocupei por nove meses. Leiam os próximos parágrafos e os compare com os do jornalista inglês:


 


 O jornalismo mais contemporâneo exige que os profissionais conheçam tanto as técnicas de interlocução com os leitores como uma bateria de questões específicas relatadas pelas fontes de informação. Não podemos ser simples repositórios de declarações. Tratamos dessa questão, com profundidade, no livro “Meias Verdades”. É epidêmico o grau de manipulação de informações. Principalmente nos jornais diários, formulados pela mesmice de reproduzir declarações acriticamente. Não se trata de obstar esse caminho necessariamente pela estrada da opinião, mas pela avenida da interpretação e, principalmente, por um feixe de dados de valor agregado. (...) A essência do esgarçamento informativo qualificado está plantada na aridez de conhecimentos dos profissionais de comunicação. A saída é setorizá-los e fazê-los mergulhar fundo nos arquivos, nos livros, enfim, em toda a literatura possível de ser utilizada a qualquer instante. (...) Entregar às páginas opinativas dos editoriais a incumbência de eventualmente neutralizar ou reposicionar os efeitos maléficos e distorcivos de fontes de informação viciadas é um comodismo que se instaurou nas redações. (...) Informações equivocadas que tenham ocupado o corpo da publicação dedicada ao noticiário geralmente se consolidam como verdadeiras e irrebatíveis.


 


Obviedade condenada


 


Este artigo tem um endereço certo, como insinuei no início: há magistrados que precisam se inteirar sobre a singularidade da prática de jornalismo de verdade. A experiência que já vivi com a perseguição que me move o empresário Milton Bigucci é um catálogo de aberrações decisórias. Chegou-se ao ponto de me condenarem porque escrevi sobre as maiores obviedades que alguém poderia desfraldar – a inexpressividade do Clube dos Especuladores Imobiliários do Grande ABC fartamente reconhecida pela própria classe e por aquele que está prestes a assumir o cargo de presidente, Marcus Santaguita. Milton Bigucci levou ao tribunal dois funcionários da entidade como testemunhas que asseguraram a grandiosidade daquela organização e o meritíssimo simplesmente acolheu a acusação em detrimento de um profissional que vai a campo para construir parágrafos comprometidos com a realidade dos fatos.


 


O jornalismo investigativo, interpretativo, fundamentado, não pode ser soterrado jamais porque é a própria cidadania que está em jogo. E não abro mão disso. Por isso fiz da revista LivreMercado a melhor publicação regional do País durante duas décadas. E não adianta pedirem-na de volta porque só tenho uma vida e boa parte dessa vida foi entregue completamente àquela empreitada.


 


Montei com pouco dinheiro e muito trabalho a melhor equipe de jornalismo da região em todos os tempos. Rafael Guelta era um excepcional profissional que, nos últimos tempos de Diário do Grande ABC, estava relegado a produzir notinhas curtas e insossas para uma coluna econômica. Na revista LivreMercado seu talento refloresceu e a partir daí subiu vários degraus na carreira. Na revistaLivreMercado a edição seguinte era rigorosamente pautada pela edição anterior, com nexo e transparência. Fizemos algo que a Província do Grande ABC jamais mereceu simplesmente porque é Província. O desabafo parece politicamente incorreto. E quem disse que sou politicamente correto?


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