Voltei da Capital anteontem à noite com alma lavada, coração exultante e ânimo ainda mais entusiástico com a profissão que abracei há 50 anos. O filme Spotlight é um espetáculo que reverencia e referencia o jornalismo. Recomendo-o, por isso, não apenas aos profissionais de comunicação, mas, principalmente, aos leigos, aos consumidores de informação. Seria o primeiro passo para respeitarem mais quem enfrenta os podres poderes institucionalizados, quando não sacralizados.
Os bastidores vivenciados por meia dúzia de profissionais do The Boston Globo na produção de um case de responsabilidade editorial que culminou com a denúncia de megaescândalo de pedofilia na Igreja Católica são o que existe de mais elementar na atividade. Pena que a prática seja raridade nestes tempos em que muitas redações, principalmente de médias e pequenas publicações, não passam de linha auxiliar de gestores públicos oportunistas e de agentes econômicos (empresários e sindicalistas, principalmente) aproveitadores. Duas bandas podres que confluem para a construção de um ambiente, no caso desta Província, de inquietante congelamento social.
A prática do jornalismo direcionado à sociedade, mesmo que a sociedade aparentemente não esteja nem aí com o que se passa a seu redor, como parecia o caso de Boston, é, portanto, cada vez mais um desafio. A lição que Spotlight derrama durante quase duas horas de sóbria narrativa é que vale a pena enfrentar os poderosos de plantão. Pena que nesta Província o que menos se observa na mídia digital e impressa é o que chamaria de cadeia de decisões editoriais sistêmicas suficientemente fortes para definir e persistir num ritual que não passe de sazonalidades seletivas.
Traduzindo à linguagem simples e direta: pena que por aqui o que se tem de prática jornalística mais severa, mais condizente com a clássica tradição de cumprimento de tarefa intransferível, sejam casos episódicos, quando não sequenciais mas de cartas marcadas por razoes nem sempre republicanas. A estruturação de política editorial sustentada por princípios de defesa do desenvolvimento econômico e social não ultrapassa a barreira imposta por terceiros, geralmente espertalhões. Eles, esses espertalhões, definem as regras do jogo de forma informal, longe das redações. A transfusão de interesses é tão bem articulada que tudo parece natural.
Desmonte publicitário
Muito do que temos na região está alinhado, como escrevi ainda outro dia, ao estado de insolvência publicitária, agravada com as novas tecnologias de comunicação. As fontes de financiamento varejistas das publicações secaram. Explico: até o começo dos anos 1990, quando criei a revista LivreMercado e concedi sociedade a uma especialista na área -- porque não sou do ramo e nem pretendo ser por considerar a atividade incompatível com o jornalismo --, a sustentação comercial da publicação se dava exclusivamente pelo mercado formado prevalecentemente por pequenos e médios comerciantes.
Como ao longo dos anos 1990 eles, esses pequenos e médios empreendedores, foram aniquilados, ao terem de disputar o mercado com muito mais players egressos do desemprego de fábricas que faliram ou se foram, e também com os grandes conglomerados que aportaram na região, tudo se modificou. A carnificina tomou conta do território. Até que se chegou à exaustão completa.
Já há muito tempo quem dá a maioria das cartas editoriais num enlouquecido toma-lá-dá-cá são os agentes políticos. Eles deitam e rolam ante a fragilidade do outro lado do balcão. Por isso, jornalismo de verdade, desse de Spotlight, virou fantasia. Com isso, os ratos fazem a festa. Os bandidos sociais, conhecidos de todos, sentem-se na sala de estar. Manchetes denunciatórias de hoje têm a contraface de artigos assinados amanhã pelos próprios denunciados. Os bandidos sociais só não estão mais assanhados agora porque a Operação Lava Jato é espada sobre a cabeça de muitos.
Liberdade para valer
Spotlight é um grito de liberdade à liberdade de expressão. É a autonomia levada ao extremo com engenharia, arte, suor e muito mais. Estou nas nuvens. Não resisti a um dos pontos mais emblemáticos do filme. A manutenção há dezenas de anos de uma equipe especial de investigação, que dá nome ao filme, me remeteu a rápido diálogo com o diretor de Redação do Diário do Grande ABC, Sérgio Vieira, durante minha passagem pelo jornal recentemente.
Disse-lhe que o jornal precisava contar com pelo menos quatro jornalistas experientes e razoavelmente bem pagos para integrar uma força-tarefa que se dedicaria exclusivamente ao que chamamos de equipe especial.
Foi uma conversa rápida, mas senti no olhar do interlocutor que não haveria recursos financeiros para a empreitada. Esse foi um dos pontos que me levaram a tirar o time de campo do Diário do Grande ABC. Sabia que se ali permanecesse, me tornaria um chato romântico.
Coincidentemente, a equipe Spotlight do The Boston Globo contava no período das investigações de abusos de religiosos com quatro jornalistas. Uma equipe que jamais foi retirada da cena das investigações, exceto durante excepcionais seis semanas em que avançou na cobertura dos destroços políticos, econômicos e humanitários do 11 de Setembro. Nada mais justo.
Experimentos frágeis
Na maioria das redações brasileiras que experimentaram equipes especiais, o desmonte foi inevitável. Disputas internas e visão míope sobre os custos operacionais bombardearam as iniciativas e transformaram supostos e insustentáveis novos 11 de Setembro em excepcionalidade de cada dia.
Qualquer valor monetário que os burocratas do Boston Globe exponham para contrapor-se ao modelo de Spotligth será ninharia perto do retumbante ganho de imagem – e de potencial de avanço no mercado – que tanto aquela denúncia quanto, principalmente, o filme, proporcionaram.
Uma alternativa para a formação de equipe semelhante na região, que poderia atender em sistema de pool a todas as publicações locais, numa ação regeneradora dos costumes, teria de ser bancada por milionários preocupados com as próximas gerações. É mais factível que se construa legislação que estimule o que chamei de reportagem premiada --sistema pelos qual denúncias transformadas em reportagens teriam um naco de dinheiro recuperado transferido para os cofres da publicação. É esse o caminho da salvação, porque o jornalismo está perdendo de goleada para os bandoleiros da praça.
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