Sob nova direção, o Clube dos Construtores e Incorporadores do Grande ABC (que também representa imobiliárias e administradoras) vai colocar o dedo numa das feridas mais sensíveis do setor nestes tempos de recessão econômica. Na noite desta quinta-feira, a Acigabc receberá associados e interessados em geral para discutir distratos imobiliários. Distratos são o reverso de contratos. Trata-se de rompimento de vendas já contabilizadas nos orçamentos das empresas. No ano passado, as grandes construtoras brasileiras acusaram solavanco de 41% nos negócios registrados. Ou seja: mais de quatro a cada 10 imóveis considerados vendidos foram devolvidos. Devolvidos significa que as empresas tiveram de, livremente ou por decisão judicial, encaminhar quase todo o dinheiro das vendas aos respectivos desistentes. Tudo com correção monetária.
No caso específico da Província do Grande ABC, certamente o novo presidente do Clube dos Construtores, engenheiro e empresário Marcus Santaguita, evitará caracterizar como parte do enredo de complicações contratuais o desempenho desastroso do antecessor Milton Bigucci, dono do conglomerado MBigucci, considerada a maior companhia do setor da região. Santaguita é um dirigente conciliador. Fosse o sucessor de Milton Bigucci alguém com algum grau de franqueza pública, a imagem do empresário seria ainda pior.
Presidente da entidade durante mais de duas décadas, e especificamente nos últimos anos de fartura imobiliária, Milton Bigucci agiu como vendedor de ilusões. Ao falsificar conceitos e dados estatísticos e ao produzir enxurrada de informações supostamente embasadas em sustentação econômica regional, Milton Bigucci contou com o suporte da imprensa para vender uma realidade que só constava dos truques de marketing: a de que o mercado imobiliário da região comportava todos os investimentos possíveis na área residencial e também no setor de escritórios.
Estado da arte enganosa
Vivíamos, segundo a versão de Bigucci, um estado da arte imobiliária. Era investir e correr para o abraço. Sempre, repito, com o suporte da mídia regional. Exceto desta revista digital. Razão, aliás, dos destemperos jurídicos que sempre fugiram de questões mais nucleares aqui impressas – ou seja, os escândalos de que Milton Bigucci comprovadamente participou e sobre os quais ele não ousa contestar, porque sabe que é causa perdida.
Tratou-se, a ação institucional de Milton Bigucci na engabelação dos ingênuos, de verdadeiro assassinato do bom senso. O processo de fragilização econômica da região, cujos números estão disponíveis nesta revista digital, não resguardava aquele desfile contínuo de expectativas fantásticas.
Se no Brasil como um todo o conto da carochinha da exuberância do mercado imobiliário foi uma patetice generalizada, na Província do Grande ABC a situação tornou-se muito pior, Viveu-se período de farra. Nada mais estúpido e oportunista, com altos custos sociais, como se vê e se comprova agora. O definhamento econômico regional supera largamente a média nacional. A locomotiva de vícios da indústria automotiva perdeu o fôlego e abalroou a carroça imobiliária.
O comedimento da nova direção do Clube dos Construtores do Grande ABC é notícia interessante, inclusive para amenizar os estragos na reputação do ex-presidente Milton Bigucci. Fosse o Brasil um País em que as fontes de informações econômicas prestassem contas às autoridades constituídas em casos de acintosa manipulação do mercado, Milton Bigucci estaria enroscadíssimo.
Autoritarismo nefasto
A decisão de debater e esclarecer pontos cruciais da avalanche de distratos demonstra que os novos dirigentes pensam diferente dos tempos de autoritarismo e exclusivismo de Milton Bigucci. Agora existe uma direção colegiada que não pretende esconder a realidade do mercado imobiliário. Mais que isso: quer trazer à luz tudo que interessa aos empresários e à sociedade como um todo. Com Milton Bigucci na presidência aparentemente vitalícia de até então, ninguém ousava recomendar ponderação e tampouco uma agenda que tratasse com realismo os percalços do setor. A ordem era inflar os números de vendas e de lançamentos de imóveis.
O encontro de amanhã em São Bernardo deverá reunir especialistas em distratos. O presidente Marcus Santaguita vai repetir aos convidados o que tem afirmado como empresário: não há legislação específica para regular a devolução de imóveis na planta e que a quebra de contratos gera grande passivo às empresas do setor. Também dirá que o volume elevado de distratos que sufoca indistintamente grandes, médias e pequenas incorporadoras e construtoras compromete os resultados das companhias e até mesmo operacionalidade e a conclusão das obras. “Desta forma, coloca-se em risco toda a cadeia imobiliária”, afirma o dirigente.
Marcus Santaguita vai reunir advogados de direito imobiliário, empresários do setor da construção civil, representantes dos principais bancos de financiamento imobiliário e membros do Judiciário. Tudo para encontrar uma saída que contemple compradores e vendedores. Não será fácil o encaminhamento de algo suficientemente substancioso. A jurisprudência tem colocado o setor empresarial em maus lençóis. Entre 85% e 90% dos valores pagos pelos compradores, corrigidos monetariamente, viram sentenças-padrão a quem recorrer.
Complicações múltiplas
O tema é muito delicado. Santaguita afirma: “Nossa posição é que sejam respeitados os contratos, pois quando uma construtora oferta uma unidade no mercado, não está vendendo uma opção de compra, mas algo que demandará série de esforços, tempo e recursos humanos e financeiros para ser concretizado”.
A defesa corporativa de Marcus Santaguita seria perfeita não fossem as dificuldades de destruir situação inapelavelmente dramática: grande parte dos compradores que recorrem ao Judiciário para obter de volta o dinheiro empenhado é formada por gente que perdeu o emprego ou de alguma forma teve abalada a capacidade de manter a renda por causa do processo inflacionário.
A outra situação em que o obstáculo à confirmação da compra se traduz em distrato é quando o sistema financeiro rejeita parcial ou inteiramente o crédito previsto.
Também não faltam casos em que compradores desistem do negócio antes da assinatura do financiamento bancário porque se dão conta de que estão pagando muito mais pelo imóvel do que as construtoras e incorporadoras anunciam como queima de estoque nos jornais. Nesse caso, o feitiço da especulação imobiliária incentivada na região pelo então presidente Milton Bigucci volta-se contra o próprio feiticeiro. Literalmente no caso da MBigucci que, depois de longas temporadas de artificialismos agora tem-se defrontado com a realidade dos fatos ao recorrer a liquidações utilizando-se do eufemismo "megapromoção".
Do paraíso ao inferno
Ontem em São Paulo, o presidente do Secovi-SP, Flavio Amary, descreveu a trajetória do setor imobiliário nos últimos três anos como “do paraíso ao inferno”, citando shoppings com lojas vazias, lajes corporativas ociosas e locação comercial ou residencial em queda. Amary afirmou que o lançamento de novas moradias diminuiu 37% em 2015 em relação ao ano anterior, sendo que em 16 regiões pesquisadas a queda foi de 24%. A declaração do dirigente foi publicada pela Agência Estado e precedeu o anúncio de defesa institucional do impeachment da presidente Dilma Rousseff.
No evento Summit Imobiliário 2016, que está sendo realizado em São Paulo, o presidente do Secovi afirmou haver razões concretas para formalizar o impeachment, citando a argumentação do jurista Ives Gandra da Silva Martins. A Agência Estado não fez menção a eventual preocupação do dirigente do Secovi com os distratos imobiliários, mas o Secovi tem batido muito no tema que virou obsessão do setor. Encontrar uma saída passou a ser questão decisiva para amenizar os estragos macroeconômicos no setor.
Tanto que um dia antes, à Folha de S. Paulo, Flavio Amary afirmou que “o fluxo de caixa do empreendimento é prejudicado e traz dificuldades para os demais compradores”. No ano passado, entre as sete principais incorporadoras de capital aberto do País, o volume de contratos de compra de imóveis cancelados cresceu R$ 512 milhões em relação ao ano anterior. Em 2015, Direcional, Eztec, Gafisa, MRV, PDG, Rossi e Tecnisa somaram R$ 6,4 bilhões em distratos.
A agenda do Clube dos Construtores do Grande ABC é providencial, como se pode ver. Mas não se tem a ideia do quanto é preocupante o quadro regional, porque as informações não saem da confidencialidade dos empresários, a maioria dos quais de pequeno e médio porte e, portanto, distantes da Bolsa de Valores. Mas há indicativos de que tanto quanto a quebra de vendas num ambiente especialmente atingido pela recessão e pela crise política, os estratos são um monumental enrosco que ameaça os empreendedores.
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