O som do biwá, instrumento japonês correspondente ao violoncelo ocidental, ainda está muito presente. O kembu, a milenar dança dos samurais, nunca saiu das gratas recordações. E o professor de artes marciais Mitsugui Yoshinatsu tem lugar cativo não só na memória, mas sobretudo no coração.
Não poderia ser diferente. Mitsugui Yoshinatsu foi avô e grande referencial na carreira da premiada bailarina Ivonice Satie, a dama da vida cultural de Diadema há pelo menos quatro anos, desde que foi convidada a virar de ponta-cabeça o mundo da dança na cidade. Ivonice experimenta grande momento de brilho na carreira de 38 anos dedicados à dança não só porque Shogun, seu primeiro trabalho coreográfico, criado em 1982 em homenagem ao avô e várias vezes consagrado na Europa, cruzou o Oceano rumo à América e estreou, no mês passado, a Maximum Dance Company, em Miami, depois de ter aberto em fevereiro o calendário deste ano do San Francisco Ballet, na Califórnia.
O momento é também particularmente feliz para essa descendente de orientais, corpo miúdo mas idéias largas e aguçadas, porque realiza feito inusitado no terreno da cultura: popularizar a arte, no caso a dança coreográfica.
Diadema vive período de efervescência cultural como poucos municípios através da Companhia de Danças e do projeto Oficinas de Dança, que têm Ivonice Satie como grande arquiteta. São pelo menos 48 Oficinas espalhadas pelos 12 Centros Culturais envolvendo cerca de 800 moradores entre crianças, jovens e adultos, inclusive grupos de terceira idade.
As Oficinas já ganharam notoriedade com apresentações em inúmeras cidades da região e do Estado. Já conquistaram prêmios como o primeiro lugar na categoria amador do Festival de Dança de São José dos Campos, em junho último, pela turma de iniciados do Centro Cultural de Diadema. E ganharam também o mundo com a exibição em Cuba do grupo Mulheres de Eldorado, dia 30 passado. Em agosto próximo, esse dedicado exército que encontrou na linguagem do corpo uma maneira de expressar-se, de liberar a criatividade, recebe reforço de pessoas excepcionais, por meio de convênio com a Apae local.
“Achava que havia esgotado meu círculo artístico no meio do balé clássico, mas encontrei na dança moderna aquela reciclagem, aquele respirar o novo de que todo ser humano precisa” – comenta Ivonice, que comandava o Balé da Cidade de São Paulo em 1993, quando veio para Diadema, e até então subira em palcos do Brasil e do mundo para exibições e montagens de espetáculos mais convencionais.
Sair do circuito elitista elaborando e executando coreografias contemporâneas e, mais importante, levar e envolver nisso a população mais humilde, são capítulos novos que ganharam traços mais fortes em Diadema. “Cresci e me profissionalizei num ambiente formal, de dança clássica, de óperas, de prima-donas, que, no entanto, estão longe da realidade brasileira. É impossível fazer aqui grandes companhias, apresentações milionárias que só exploram a fantasia, o romântico, a utopia da vida. A dança coreográfica moderna tem o grande mérito de falar mais diretamente ao público, de provocá-lo, pois trata da realidade, de assuntos cotidianos” – entusiasma-se Ivonice, que nessa nova linguagem trabalhou temas como Carnaval dos Animais, uma analogia entre o comportamento dos homens e dos bichos, e Paulicéia Desvairada, em homenagem ao centenário de morte de Mário de Andrade, que em sua época já vislumbrava o caos das metrópoles.
Aos 47 anos de idade, a diretora-geral da Companhia de Danças de Diadema coleciona prêmios como Governador do Estado e Bailarina do Ano, de 1977, da Associação Paulista de Críticos de Arte. Compôs elencos como o Corpo de Baile de São Paulo de 68 a 81 e o Ballet du Grande Theatre de Genève de 83 a 89, além de atuar no famoso Chorus Line de Walter Clark e desenvolver trabalhos para o Ballet Contemporâneo de Milão e Companhia de Dança do Teatro de Ulm, na Alemanha, em 1989.
No ano seguinte, atuou como maitre e coreógrafa na renomada Companhia Cisne Negro em São Paulo e em 91 foi convidada como maitre para o Ballet da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, entre tantos compromissos de um currículo que consome cinco folhas de papel sulfite. Shogun, uma entre várias criações reluzentes, mistura artes marciais com dança moderna e recebeu seu primeiro prêmio em 1983, como primeiro colocado no 7º Concurso Internacional de Coreografia em Nyon, Suiça. Em 88, foi remontado para o Ballet de Wiesbaden, na Alemanha, em 90 para o Jeune Ballet de France, em Paris, e no ano passado venceu o Concurso de Varna, na Bulgária, através de interpretação da bailarina Andréa Thomioka, de São Bernardo. Nas remontagens, Ivonice oferece assessoria acompanhando efeitos de iluminação, figurinos e distribuição espacial, entre outros detalhes.
Esse conhecimento eclético, por sinal, é a grande marca registrada de Ivonice Satie, que veio da pequena Bilac, no Interior de São Paulo, para a Capital, aos seis anos de idade e aos nove iniciou estudos de dança na Escola Municipal de Bailados da Prefeitura influenciada por uma vizinha impressionada com sua habilidade corporal. A única neta de Mitsugui Yoshinatsu que lhe herdou os dons artísticos e o espírito irrequieto nunca vestiu exatamente o figurino de bailarina tradicional.
Fumou durante 31 anos. Parou no ano passado, depois de deixar-se tocar no ponto energético da orelha, pela acupuntura. Antecipando-se à era da globalização, de seres humanos multifuncionais, Ivonice sempre teve em mente que um artista deve unir as várias pontas de um espetáculo. “Um bailarino não deve só dançar. Precisa atuar e saber como é administrar uma montagem, cuidar da parte técnica e da iluminação, fazer a função de assistente, comprar tecidos e preparar figurinos. Não pode ficar limitado à única linguagem cênica, a fim de dar continuidade à carreira depois de não poder mais dançar” – fala a bailarina e coreógrafa, que colocou como pré-requisito para criar a Companhia de Danças de Diadema, em 1995, a implantação de um corpo de balé participativo, pró-ativo.
Os 13 integrantes, garimpados no Grande ABC e na Capital, realizam funções em sistema rotativo e são também professores, comandando as Oficinas de Dança nos bairros todas as quartas-feiras, dia de intervalo nos ensaios que acontecem durante a semana inteira. “Cada um tem pelo menos quatro turmas sob sua responsabilidade” – comenta.
A Companhia de Danças ganhou prestígio não só no seu meio — abrirá este mês o já famoso Passo de Arte, que neste quinto ano de realização acontece em Santos –, mas sobretudo junto à comunidade. A Companhia de Danças deu mão tão forte às Oficinas de Danças, que só pode estar aí a explicação da proporção do sucesso que acontece em Diadema. “A comunidade, na maioria formada de imigrantes do Nordeste, é receptiva à coreografia moderna porque, de alguma forma, a identifica com a arte popular de suas origens” — sublinha Ivonice, que não se incomoda quando o público atravessa os aplausos antes de encerrada a apresentação, ri ou se manifesta com ovações no desenrolar das cenas. “Isso é participar, é entender o que estamos tentando transmitir” – emociona-se a bailarina, que passou a respirar Diadema desde que, em 1990, na festa de um primo, conheceu o arquiteto Wagner Bossi, que desde a gestão anterior do prefeito Gilson Menezes trabalhava com planejamento urbano em favelas da cidade. Ivonice apaixonou-se duas vezes: por Bossi e por Diadema.
O marido aposentou-se no ano passado, mas Ivonice permanece, incentivando a arte na comunidade. Criar algo que deitasse raízes sociais, aliás, era a grande proposta da então diretora artística do Balé de Danças da Cidade de São Paulo quando aceitou vir para o Município. Chamaram-lhe a atenção a ausência de grupos artísticos locais e a incidência de eventos trazidos de fora. “Tínhamos de encontrar uma maneira de interagir com o público e criar algo permanente. Fiquei gratificada quando a atual direção do Departamento de Cultura reforçou o apoio ao nosso trabalho” – afirma.
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29/11/2024 TRÊS MULHERES CONTRA PAULINHO