Imprensa

De novo a pergunta: o que será
do Diário sem Ronan Pinto?

DANIEL LIMA - 09/06/2016

A indagação é apenas um pretexto para voltar a especular sobre o futuro do Diário do Grande ABC. O enunciado poderia ser outro, mais ou menos nesta linha: “Quem vai comprar o Diário do Grande ABC?”. Sim, porque o que mais se comenta na praça é a possibilidade de o jornal mais tradicional da região trocar de dono.

A situação em que está envolvido o presidente daquela companhia – há mais de dois meses preso no Paraná por conta da Operação Lava Jato – teria estimulado de vez a família a abrir mão do negócio simplesmente porque não existiria, além de Ronan Pinto, ninguém mais com disposição à tarefa. Mesmo o retorno do empresário ao convívio social não alteraria a decisão.

A edição diária do jornal não combina com o encarceramento do condutor da companhia. Não há ninguém da família com as características de Ronan Maria Pinto para dar fluidez econômica e financeira à empresa.

Não faltam informações sobre eventuais interessados em adquirir as ações do Diário do Grande ABC. Ouço aqui e ali explorações que parecem factíveis, embora não faltem também versões rocambolescas.

É inevitável que me perguntem sobre a viabilidade do negócio. Fecho o bico porque não costumo falar sobre o que não conheço. Como produto jornalístico, sobre isso, mando bala.

O Diário do Grande ABC é minha especialidade. Não propriamente o jornal, mas também o jornal, porque está inserido na regionalidade de quase três milhões de habitantes.

À parte os aspectos financeiros que supostamente mais interessam aos eventuais interessados, meto o bico no produto jornalístico, ao qual não dou nota maior que dois numa escala de zero a 10 nestes tempos de evidente fragilização. Historicamente o jornal merece nota cinco, na mesma escala.

Projeto de reformulação

O que mais ouço em forma de desafio ao produto jornal é o que seria preciso fazer para que a região tenha um veículo que associe tradição e qualidade. Sem modéstia alguma, porque seria cinismo, recomendo que procurem nesta revista digital o que chamei de Planejamento Estratégico Editorial que carreguei debaixo do braço quando cheguei em julho de 2004 para comandar o Diário do Grande ABC. Fiquei no cargo durante nove meses. O jornal seria outro se, independente de minha presença física, levasse a sério boa parte daquele projeto.

Àqueles que têm preguiça de ler, vou repassar abaixo alguns trechos do material que produzi num final de semana numa casa no Interior, longe de tudo e de todos. O planejamento entregue ao Diário do Grande ABC sofreu baixo grau de defasagem nesses 12 anos que separam a compra do jornal pelo empresário Ronan Maria Pinto e a situação em que ele se encontra hoje.

O que repassarmos a seguir são alguns trechos das observações que elaborei há 12 anos exclusivamente à área editorial. Os demais vetores constam da integra do trabalho, disponível nesta revista digital sob o título “Cinco anos para o Diário se adaptar aos conceitos de regionalidade”.

Vamos a algumas das muitas incursões que realizei à época. Antes, acentuo uma premissa indispensável diante da possibilidade de ser mal entendido: não tenho o menor interesse em voltar a frequentar o dia a dia de qualquer veículo de comunicação. Passei 35 dos meus 51 anos de jornalismo acumulando funções em Redação, e não tenho saudade da cadeira elétrica do cotidiano de reportagem e edição.

Leiam um pouco do plano 

 (...) O produto editorial da companhia navega nas águas rebeldes de evidente inadequação ao contexto socioeconômico em que vivem os sete municípios do Grande ABC — Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra — distribuídos em espaço metropolitano extraordinariamente ebulitivo e transformador. Poucos agentes regionais se aperceberam de que o Grande ABC de 2,4 milhões de habitantes e o quarto potencial de consumo do País vive a mais intrigante metamorfose da história, cinco décadas depois de a indústria automotiva aqui se instalar e revirar de ponta-cabeça os cromossomos de uma região então acanhada economicamente. Que perdemos riqueza industrial e ganhamos migalhas de comércio e serviços, todo mundo sabe ou deveria saber. Quase ninguém percebeu, entretanto, que a transposição do Grande ABC industrial para o Grande ABC de serviços alterou o comportamento sociológico da comunidade local. 

 Vivemos já há alguns pares de anos imensa febre de empreendedorismo de diversos matizes para tentar sufocar os estragos da desindustrialização e o surgimento de imensas ilhas de exclusão social. Nenhuma outra região do País, por não ter as características majoritariamente automotivas do Grande ABC, passou por esse autêntico corredor polonês. E o que o jornal diário da região fez para acompanhar ou mesmo antecipar-se às tendências? Absolutamente nada, ou quase nada, em seu núcleo editorial. 

 (...). Pois é esse Grande ABC terceirizado, informal em larga escala, ressentido pelo status desempregador que atingiu duramente quem carregava no uniforme de trabalho logomarcas das montadoras de veículos, é esse Grande ABC profundamente alterado em seu genoma social e econômico que está aí para ser desvendado, para ser modificado permanentemente até exibir novo formato, não essa peça disforme e inquietante que facilmente detectamos no estado de petrificação em que se encontra. Pois enquanto esse Grande ABC está aí a nos esfregar nas fuças todos os problemas e eventualmente também muitas soluções inovadoras, o jornal vive na mais absoluta inanição editorial. Preferem seus profissionais fechar os olhos, contaminados pela grandiloquência de um passado ainda recente de que devemos nos ombrear às coberturas do noticiário nacional e internacional. Ou acordamos para esmiuçar esse Grande ABC instigante com que nos defrontamos após o período mais dantesco das atividades econômicas, ou seremos literalmente soterrados pelo desconhecimento do que se passa em nossas próprias fronteiras. 

 Seria trágico não fosse estúpido admitir que às nossas barbas, em 840 quilômetros de território regional, as grandes alterações históricas se passam sem que o veículo de comunicação que lhe emprestou o nome se tornasse capaz de relatar criteriosamente os fatos, de elucidar dramas, de tematizar prioridades, de conjecturar propostas, de cobrar ação de todos que estão encastelados nas frondosas árvores do poder político, econômico e social. Haveria absurdo maior para a mídia mais tradicional e poderosa do Grande ABC senão continuar observando com certo desdém — quando não com deliberado desinteresse — o que se passa em sua geografia? Que tiro mais estúpido no próprio pé editorial e econômico para a companhia senão a irritante teimosia de seguir o haraquiri de caricaturizar os jornais paulistanos, em vez de esculpir a própria cara? Até quando nossa cultura — e entenda-se cultura nesse caso como o conjunto cumulativo de características sociais e econômicas de nossa região — estará subordinada ao intelectualismo obtuso que aprofunda nosso Complexo de Gata Borralheira mirando a Cinderela da Capital, onde estão os jornais diários mais importantes do País? 

 Que gataborralheirismo é esse — e trato disso no livro específico sobre a fragmentação social do Grande ABC — que, na tentativa de negar, mais resplandece servilismo à Capital? E quem são os contestadores do Complexo de Gata Borralheira — esse é o nome que dei à obra — senão sabujos da Capital que se fingem de regionalistas? O que vale mais nessas alturas do campeonato: um regionalismo realístico, que não esconde nosso gataborralheirismo mas faz tudo o que é possível para mudar o enredo com pressupostos de modernidade, ou um falseamento do conceito de contemporaneidade que no fundo, no fundo, não busca outra saída senão subjugar nosso gataborralheirismo à predisposição de impor — muitas vezes acriticamente — as supostas qualidades da Capital? 

 (...). É sobre esse eixo que vai girar a roda de transformações conceituais no campo editorial que definirão os agregados de valor na esfera econômica. Traduzindo em miúdos: a mesma estrada de conteúdo que colocaria o jornal na trilha de aproximação mais concreta e sustentável com os leitores permitiria o assentamento de bases estruturais para conquistas econômicas. Essa confluência sem falsas aparências deve mover nossos passos na condução da reviravolta editorial com consequentes ganhos comerciais. 

 (...). Reconhecemos as dificuldades que encontraremos em traçar novo perfil editorial para um produto que — agora me manifesto como jornalista — há muito tempo deixou de justificar a própria denominação. Muitos dos problemas que vivenciamos no Grande ABC de uns tempos a esta parte estão situados na zona de aderência do jornal. Reações e inações de uma sociedade declaradamente à deriva resultam de coragem e identificação editorial que o jornal há muito abdicou. Tem-se a impressão — agora me manifesto também como leitor — que o Diário do Grande ABC sofre com a ameaça de uma permanente espada que lhe cortaria a cabeça e lhe retalharia o resto do corpo. Como justificar, em contrário, posicionamentos erráticos, quando não inconsistentes, e dúbios, quando não omissos? 

 (...). Por isso não podemos perder o foco de um regionalismo contemporâneo. Acreditamos francamente na enorme possibilidade de iniciar e encerrar de forma vitoriosa a contagem regressiva dos 50 anos deste veículo de transcendental importância para a comunidade do Grande ABC. Será uma tarefa árdua, desgastante, maratonista. Não haverá vaga para acomodados. Da mesma forma que não sobrará espaço aos interlocutores da comunidade cuja percepção da realidade crônica do Grande ABC se esgota no levar vantagem em tudo e no compromisso social de quem se descontrai num parque de diversões. 

 (...). É preciso compreender o sentido de regionalidade que aplicaremos na linha editorial do jornal para que não se caia na armadilha do reducionismo simplificador. Regionalidade não tem nada a ver com provincianismo. Não faremos do jornal uma repetição diária dos veículos semanários que vivem e sobrevivem de releases dos governos municipais e de empresas privadas que contam com assessoria de imprensa. O conceito de regionalismo contemporâneo prende-se ao desafio de vasculhar cada centímetro quadrado do território dos sete municípios do Grande ABC sem perder de vista o encaixe metropolitano. Também não poderemos desprezar aspectos nacionais e internacionais. Traduzindo a equação: nosso regionalismo jamais se desgrudaria do ambiente metropolitano e muito menos dos sacolejos globalizantes, mas não cometeria a insanidade de, literalmente, tentar agarrar o mundo, enquanto a essencialidade de sua própria gênese territorial escapa entre os dedos da dispersão. (...). Portanto, regionalidade não pode ser confundida com encarceramento territorial. Devemos estar ligadíssimos aos eventos que nos rodeiam, à medida que se operam em áreas mais próximas ou não. Como se explica que Guarulhos está anunciando 13 novas indústrias que no ano passado se beneficiaram de um regime fiscal que abate os custos do IPTU e mesmo do ISS de construção, enquanto nós, depois de quatro anos da instauração de guerra fiscal semelhante no Grande ABC, só enlaçamos uma única indústria, em Ribeirão Pires? 

 (...) O conceito de regionalidade não pode perder de vista uma lógica operacional muitas vezes esquecida e que precisa ser reiterada para que determine o fim de ilusões e desperdícios: temos de extrair de nossos profissionais de comunicação o máximo de informação do território sobre o qual se debruçam cotidianamente. Pretender competir com os grandes jornais da Capital no noticiário nacional e internacional sem contar com a equivalência de recursos humanos e materiais disponíveis é dar um tiro no pé. Afinal, deixamos de explorar as peculiaridades de nosso território, onde vivem nossos leitores e assinantes ávidos por informações regionais qualificadas, e nos perdemos no tiroteio de uma competição desigual. 

 (...). Não podemos mais ver nossos patrimônios pessoais morrerem — como têm morrido porque ainda não inventaram a fórmula da eternidade física — e simplesmente os ignorarmos por falta de conhecimento regional. Em contrapartida, ativos pessoais nacionais e internacionais acabam por ocupar o derramamento de nossos espaços editoriais. Entregamo-nos a uma globalização de mão única — onde o que vale é a globalização excludente do regionalismo contemporâneo. Os personagens que ajudam a construir de fato a história econômica, social, cultural e política do Grande ABC precisam ser valorizados em suas variadas dimensões. Reconhecer-lhes os méritos tem o significado de erguer espelhos que poderão se multiplicar em defesa da regionalidade.



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