Vai demorar para São Bernardo ganhar a cara econômica e social de Santo André, mas o melhor mesmo é rezar para que essa perspectiva esteja o mais distante possível da consumação. Se São Bernardo de amanhã for a Santo André de hoje, estamos todos perdidos. A mudança significaria que a Província do Grande ABC teria seguido a mesma trilha de destruição de riqueza.
A Santo André enferma de hoje é uma cidade com apenas 14% de participação do emprego industrial com carteira assinada no conjunto dos trabalhadores. São Bernardo de perdas e ganhos por conta da Doença Holandesa automotiva tem 32%.
Tanto num caso como no outro a participação relativa do setor de transformação no mercado de trabalho foi muito maior. Nos anos 1970 Santo André e São Bernardo praticamente empatavam. Reuniam mais de 60% de trabalhadores no setor industrial. Justificava-se, portanto, o “viveiro industrial” do hino oficial.
A desindustrialização e a chegada de comércios e serviços passaram a dar o tom. Houve quem saudasse a descentralização industrial rumo ao Interior. Diziam que a mudança desafogaria a metrópole. Esqueceram de combinar com os russos das mazelas sociais que ficaram e se tornaram praticamente insolúveis. Não há orçamento publico que dê jeito no descasamento entre demanda por serviços e escassez de dinheiro. Mesmo com o recrudescimento da carga tributária que, entre o primeiro ano de FHC e o último de Lula da Silva subiu 50%.
Reportagens contrastantes
Duas reportagens publicadas na edição de ontem do Diário do Grande ABC sem qualquer contextualização davam conta de que não é loucura entender que São Bernardo de amanhã será a Santo André de hoje, exceto se no meio do caminho houver plataforma de embarque a novos tempos que não tenham qualquer parentesco com os velhos tempos que se estendem por estes tempos.
No alto da página de Economia o Diário do Grande ABC dava conta de que a operadora de turismo CVC trouxe para Santo André, seu berço de negócios, duas empresas coligadas, a Submarino Viagens e a Textur Advance, adquiridas recentemente pelo grupo que, nas mãos de Guilherme Paulus, virou um fenômeno de produzir a alegria da clientela nacional e internacional.
Na parte de baixo da mesma página de Economia o Diário do Grande ABC publicava reportagem sobre o corte de trabalhadores na Mercedes Benz de São Bernardo, na forma de PDV (Programa de Demissões Voluntárias). A produção e a venda de caminhões desabaram no País. São números estratosféricos que se sobrepõem a números estratosféricos do ano passado. Não há quem resista a tanta queda.
Por isso o excedente de mais de dois mil trabalhadores será inexoravelmente eliminado. Esse excesso já vem de longe, mesmo antes da crise atual. Foi toureado com série de iniciativas minimizadoras, várias das quais sustentadas por dinheiro de impostos federais em intervenções que, gostem ou não, distorcem as relações econômicas.
Agora as demissões possivelmente não encontrem nova boia salvadora. O governo petista, como se sabe, desarrumou completamente a economia. As ações de proteção ao emprego industrial com PDVs e outros produtos sindicalistas feitos sob medida para as grandes e médias empresas viraram sucata. Não há lobby automotivo que resista às intempéries econômicas que impactam duramente os cofres públicos.
Otimismo exagerado
A reportagem sobre a CVC tem um tom de otimismo. As medidas estratégicas da empresa representaram, segundo se informa, a contratação de mil trabalhadores. A matéria não é explicativa a ponto de confirmar o que suspeito, mas os empregos em questão são para uma variável de call-center, de prestação de serviços ao telefone. A CVC, garante a reportagem, conta com centenas de lojas espalhadas pelo País. Santo André passou a concentrar o quartel general da gestão da demanda. A CVC aumentou a presença em Santo André ao beneficiar-se da redução da alíquota do ISS (Imposto Sobre Serviços). Com o ajuntamento das peças das três unidades – a CVC e suas novas conquistas – haverá ganhos sistêmicos em logística, em administração financeira e em Tecnologia da Informação.
O que me deixou intrigado com a reportagem foi o uso da expressão “Vale do Silício do Turismo Brasileiro”, ditada pelo executivo Valter Patriani, referindo-se a Santo André por causa da concentração de empresas daquele conglomerado. Tenho receio de que alguém leve a tirada de mau gosto a sério e possa vir a propagar uma heresia. Há diferença brutal entre call-center e um centro avançado de Tecnologia da Informação como o localizado na Califórnia, Estados Unidos. Tomara que tenha sido apenas uma força de expressão do executivo.
Fico receoso de que a Província do Grande ABC se consolide cada vez mais -- como se tem consolidado com outras empresas de serviços de baixo valor agregado -- como área de emprego volumoso mas de salários reconhecidamente baixos. Perder dois mil empregos formais na Mercedes Benz em São Bernardo e ganhar mil postos de trabalho de serviços em Santo André é algo como sugerir que vencer a Alemanha num simples amistoso ou mesmo num torneio mequetrefe qualquer tem o peso de lavar a honra futebolística nacional após os sete a um no Maracanazo.
Caminhando à igualdade?
Em maio último Santo André contava com estoque de 191.141 trabalhadores com carteira assinada. Desse total, apenas 14,21% estavam empregados no setor industrial. Os números de São Bernardo, embora cadentes, são mais robustos: 256.956 trabalhadores com carteira assinada, dos quais 82.577 do setor industrial. Ou seja: o peso do emprego industrial é mais que o dobro de Santo André, com 32,15%.
A distância a separar os dados de São Bernardo e Santo André parece quilométrica, mas não custa lembrar que existe correlação forte entre queda do número absoluto de empregos do setor de transformação industrial e aumento da participação relativa dos demais trabalhadores. Os setores de comércio e de serviços costumam inchar à medida que o desencaixe industrial se acentua.
Não há desindustrialização sem o correspondente aumento do terciário. Nos casos em que a desindustrialização tem o correspondente emagrecimento do terciário o que se encontra de fato é terra arrasada. Não é isso que se deu em Santo André e tampouco se dará na Província do Grande ABC. A metropolização nos garante massa de consumo mesmo com perda do PIB per capita, como estamos sofrendo há muito tempo.
São Bernardo e Santo André caíram pelas tabelas nos primeiros anos deste século principalmente porque sofreram duros desfalques industriais. Nem o boom automotivo salvou a pátria de São Bernardo. No ranking de movimentação do PIB dos Municípios que integram o G-22, o grupo dos 20 maiores endereços paulistas, exceto a Capital e acrescentando-se Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, que integram a Província do Grande ABC, São Bernardo ficou na 15ª colocação e Santo André carregou a lanterninha. Por isso o alerta sobre o crescimento do emprego no setor terciário se faz importante, para evitar embustes informativos de governantes loucos por boas notícias, mesmo que as boas notícias não passem de ilusionismo.
Fosse o emprego do terciário (comércio e serviços) relevante à construção do PIB, Santo André estaria nas nuvens. O estoque de trabalhadores dos dois setores é semelhante ao de São Bernardo, que, como mostramos, acima, é muito superior na área industrial. Entre comerciários e prestadores de serviços Santo André somava em maio último estoque de 153.622 trabalhadores, contra 160.028 de São Bernardo. A proporção de empregados do setor industrial em relação ao contingente de trabalhadores do terciário em Santo André era, portanto, de 17,69%, enquanto em São Bernardo, na mesma equação, o quociente era de 51,60%.
O que São Bernardo tem a fazer é começar a rezar para que o fenômeno Mercedes Benz, que não é fenômeno coisa alguma, não vire um rastilho de pólvora. Virar uma Santo André seria o pior dos futuros que se desejaria a São Bernardo.
Total de 1894 matérias | Página 1
21/11/2024 QUARTO PIB DA METRÓPOLE?