Tanto uma expressão quanto outra são de Elio Gaspari, colunista da Folha de S. Paulo e um dos mais brilhantes jornalistas do País. A última vez que Gaspari abordou o tema que volta ao noticiário foi em janeiro do ano passado, sob o título “Bolsa para todos, ou para ninguém”. Referia-se à invencionice dos metalúrgicos do ABC em associação com o Clube das Montadoras (Anfavea), de criar o PPE (Programa de Proteção ao Emprego), retirado de algo assemelhado dos alemães. Nada mais estúpido do que reivindicar para o Jabaquara a folha de pagamentos do Barcelona.
Agora, crise continuada, os metalúrgicos da CUT sob a direção de Rafael Marques, querem encolher ainda mais a jornada de trabalho, até as vendas melhorarem. Os custos de sustentar empregos e salários em desacordo com a produção recaem sobre todos os contribuintes. As montadoras e os metalúrgicos da região dão razão a Elio Gaspari.
Há um adicional não citado pelo jornalista que cabe perfeitamente como restrição à medida: está comprovado por estudos empíricos que desequilíbrios setoriais movidos pelo intervencionismo estatal geralmente em favor de lobistas no médio e no longo prazos agravam ainda mais os desajustes econômicos, quando não fiscais. Sem contar que efeitos supostamente favoráveis à alavancagem do PIB não passam de embustes. Alguns ganham em detrimento da maioria do empresariado, dos trabalhadores e dos contribuintes em geral.
Legitimidade abalada
No artigo que escreveu em janeiro do ano passado, Elio Gaspari discorreu sobre o PPE utilizando argumentos que poderiam estar esgotados e, portanto, dariam agora legitimidade aos metalúrgicos e às montadoras. Mas é melhor não acreditar nessa possibilidade. Vejam o que ele escreveu:
Essa ideia já apareceu no início de 2014, quando as vendas de veículos começaram a cair. A analogia com o modelo alemão é mistificadora. Lá, a crise que criou esse gatilho ocorreu em 2009, quando a venda de veículos caiu 30%, o PIB contraiu-se 4%. Em Pindorama a situação é diferente. Ademais, nos últimos anos o mercado de veículos foi estimulado por uma renúncia fiscal de R$ 12,3 bilhões e nem todas as montadoras estão perdendo competitividade. Não faz sentido botar dinheiro da Viúva para socorrer metalúrgicos e montadoras. Se o mecanismo é bom, deveria valer também para todos os outros setores da economia e para todas as categorias de trabalhadores.
Interesses conjugados
Está certo que a situação econômica do País se agravou desde janeiro do ano passado, que o acumulado de perda do PIB em 24 meses já chega a 8%, que houve muitas demissões nas montadoras de veículos, que a queda da produção e de vendas ultrapassa aos 30% dos alemães citados por Gaspari (são perto de 40% desde janeiro do ano passado), mas nada disso alivia a barra dos interesses casados de sindicalistas e montadoras.
O antigo lobby do setor não dá trégua. A animosidade entre as partes, épica no passado, é um jogo quase combinado, se não for combinado em que imperam estratagemas cuidadosamente escamoteados em nome do sagrado direito de manter a força de trabalho ativa, longe, portanto do terror do desemprego.
O nó da questão que inviabiliza a transposição da inovação alemã para o terreno brasileiro na área de produção industrial é que não somos a maior economia da Europa. Vivemos permanente situação de horror fiscal e de déficit público preocupante. Governo federal, governos estaduais e prefeituras estão quebrados depois da euforia dos anos de receitas às alturas. Também não contamos, regionalmente, com uma mão de obra competitiva em nível nacional.
Ou seja: adaptar para o Brasil as generosidades das relações trabalhistas da Alemanha tem o mesmo sentido que reivindicar – como tantas vezes reivindicaram os sindicalistas – poder de compra semelhante entre trabalhadores brasileiros e trabalhadores do Primeiro Mundo sem levar em conta, entre outras variáveis, o que os economistas chamam de produtividade do trabalho.
Protecionismo seletivo
Entretanto, como os ignorantes, os mal intencionados e mesmo os bem intencionados mas desprovidos de preparo técnico simplificam tudo, muitas vezes subjugados pela ideologia tosca de um socialismo que já foi para o brejo há muito tempo, sempre é possível que, como no caso do PPE, apareça uma solução mágica para tentar superar um quadro de desconforto setorial.
Foi o que se deu com os metalúrgicos da Província do Grande ABC, disparadamente a maior parcela dos benefícios do Programa de Proteção do Emprego. Com o agravante de que a quase totalidade do dinheiro despendido auxiliou as maiores empresas. As pequenas metalúrgicas nem se habilitaram ao programa, excluídas por conta de restrições fiscais, tributárias e trabalhistas – tudo isso, aliás, há muito tempo alertado aqui.
Além do PPE, o chamado lay-off é outra ferramenta utilizada para evitar ou adiar demissões na indústria automobilística, como bem lembrou na edição de ontem do jornal Valor Econômico a jornalista Marli Olmos. “Ambos usam recursos públicos do Fundo de Amparo ao Trabalhador para completar salários do empregado que é obrigado a ficar em casa. No lay-off o trabalho é suspenso temporariamente enquanto que no PPE reduz-se a jornada em um dia por semana” – explicou a jornalista.
O que os metalúrgicos reivindicam agora ao governo Michel Temer com amplas possibilidades de sucesso -- o interino evita criar áreas de atrito porque pretende virar titular do posto -- é mais um dia a menos de trabalho por semana.
Repasse de custos
É muito cômodo repassar os custos da baixa competitividade da indústria automotiva da Província do Grande ABC ao restante do País. Vários entraves que montadoras novatas ou não tão novatas já superaram e por isso mesmo se mostram resilientes à crise econômica nem passam pela agenda das duas organizações.
Impera solidamente a comodidade de lançar mão da força setorial e de velhos lobistas para arrancar dos cofres públicos federais recursos financeiros que insistem em inflar os custos das montadoras porque suas unidades industriais não se desvencilham de vícios sindicais. A República Sindical do ABC dá as cartas num jogo só aparentemente indecifrável. Quem fica sempre no prejuízo é o conjunto dos contribuintes brasileiros e quem sofre diretamente as distorções do mercado de trabalho é a Província do Grande ABC.
Aqui, como já escrevemos num passado que vai longe, contamos com trabalhadores de primeira, de segunda e de terceira classes. Talvez caiba apenas uma mudança: o que eram trabalhadores de primeira classe naquela Reportagem de Capa da revista LivreMercado que preparei antes que o novo século começasse deveriam se constituir, agora, em trabalhadores de classe especial.
O mais lamentável de tudo que se lê sobre as relações dos metalúrgicos e das montadoras com o governo federal desde muito tempo é que os acordos se reproduzem sem grandes solavancos e também sem oferecerem alguns legados que poderiam amenizar gradualmente o peso que impõem ao conjunto da sociedade.
Cadê as contrapartidas?
Não existe no vocabulário dos consorciados nada que, mais que lembrar competitividade no sentido mais profundo da palavra, defina contrapartidas de produção, de produtividade e de eficiência a ponto de reoxigenar as engrenagens das fábricas. Prevalece espécie de capitalismo de acomodação. O mercado consumidor interno garantiria a paz entre capital e trabalho com alta rentabilidade para os passageiros da classe especial. Faltou combinar com os russos da crise econômica e fiscal do governo Dilma Rousseff.
Desafio os leitores a pesquisarem no Google, por exemplo, um único registro que envolva dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo que aponte o encadeamento de frases como “produtividade do trabalho”, “competitividade nas linhas de produção” ou assemelhados. Quem se der ao trabalho vai quebrar a cara. Constam aos magotes trechos de reportagens como os do presidente Rafael Marques, na reportagem do Valor Econômico. Leiam:
O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, espera que o governo também aumente a quantidade de dinheiro público na complementação salarial caso seja preciso diminuir ainda mais a jornada. É uma necessidade que ele tem percebido nas conversas com empresários. Desde 2011, a base que Marques comanda diminuiu de 107 para 79 mil metalúrgicos. “A crise foi uma paulada no emprego”, diz. Hoje, 26 mil empregados da indústria automobilística participam do PPE ou lay-off. Equivale a mais de 23% de todo o efetivo do setor. (...) Faz pelo menos dois anos que a maior parte dos metalúrgicos do ABC não sabe o que é fazer hora extra, diz (...) Rafael Marques – escreveu o Valor Econômico.
A enfermidade é grave, vem de longe, mas ainda insistem no uso de caríssimos esparadrapos.
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