Passar 48 dos 67 anos de idade dentro de uma única empresa pode sugerir uma vida de poucas emoções e destoante da frenética dança de cadeiras dos requisitados executivos de primeiríssima linha. Poucos da geração de André Beer, entretanto, são donos de biografia tão intensa e rica. Beer deixa a vice-presidência da General Motors do Brasil em dezembro próximo após o mais longo mandato executivo dentro da GM mundial. É o encerramento de um ciclo de vida, mas não da trajetória profissional, muito menos do fascinante mundo entre as muralhas da maior corporação empresarial do planeta. André Beer continuará na GM como consultor e assessor da presidência a partir de janeiro de 2000, uma data especial, pois é quando a montadora completa 75 anos de atividades no Brasil. É sem dúvida, um dos maiores arquitetos dessa história.
Muitos dizem que o filho de imigrantes iugoslavos nascido em Santo André é uma lenda viva na indústria automobilística brasileira. Outros o definem como mito e há quem o ache insubstituível e sem herdeiro.
Discreto e às vezes tímido, André Beer vê um pouco de folclore nisso tudo. Mas um atributo ninguém lhe tira: é um guerreiro. Sobreviveu a décadas de mudanças jamais vistas no mundo dos negócios e não teve limites na arte de adaptar e criar exigida por um fim de milênio desafiador. Do primeiro automóvel da marca no Brasil, o Opala, à total reformulação da fábrica de São Caetano para manufaturar o mundial Astra e à decisão de erguer no Rio Grande do Sul a moderníssima e sofisticada planta do subcompacto Arara Azul, André Beer pôs seu dedo em todos os projetos de veículos da GM.
“O segredo foi perceber o processo de mudanças e não ter medo de pensar grande” — ensina esse veterano estrategista da indústria automobilística, que por duas gestões, de 1983 a 1989, ainda acumulou o comando máximo do setor ao presidir a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).
Por ter a vida entrelaçada ao próprio percurso da indústria automobilística no Brasil, André Beer atravessou todos os grandes ou espinhosos momentos do setor: participou da festejada industrialização do País a partir da implantação das montadoras nos anos 50, atravessou os dois choques do petróleo nas décadas de 70 e 80, viu a ascensão e queda do motor a álcool, foi hábil interlocutor nos duros anos de controle de preços e também na grossa tempestade armada no Grande ABC pelas históricas greves do chamado novo sindicalismo. Junto com o boom dos veículos populares, acompanha agora cada lance na chegada das 16 newcomers que vão instalar o Brasil no topo automotivo mundial em número de fábricas e assiste atentamente ao frisson do jogo de fusões de marcas até recentemente rivais de pai e mãe. Volvo e Scania, o último dos enlaces, que o digam.
“A indústria automobilística não pode mais ser um elefante. Cada máquina, cada projeto de modelo e cada lançamento consomem investimentos pesados. As exigências do consumidor são crescentes e as novidades andam em ritmo de jato. Os japoneses vislumbraram isso muito bem e se anteciparam: criaram estruturas enxutas e competitivas.
Com a concorrência dramática que vivemos, não há saída senão maximizar recursos com alianças” — comenta do alto da experiência que acumula nesse território e que em 1983 lhe rendeu a inédita vice-presidência executiva da GM brasileira, cargo que não existia fora dos Estados Unidos. O conhecimento polivalente o fez inclusive subverter a hierarquia clássica. Passou a comandar simultaneamente, a partir da vice-presidência, as áreas de Vendas, Pós-Vendas, Administração de Materiais, Qualidade e Marketing. Já vinha de um cargo de tripla responsabilidade assumido em 1971 — a de diretor de Relações Públicas, Governamentais e Empresariais.
Visão abrangente
Foi por sempre ser aberto às novas regras do jogo, particularmente à atual economia sem fronteiras nem bandeiras, que André Beer acumulou visão abrangente do mundo dos negócios. Ajudou a abrir espaço dentro da GM para os programas de qualidade produtiva e modernização dos instrumentos gerenciais, necessários a partir do choque comercial imposto pelo governo Collor. Depois da era do mercado fechado e de produtos reconhecidamente defasados, a GM brasileira deu início em 1991 a um trabalho de reconstrução, com manufatura de carros mais modernos. Só no quinquênio 91/95 a renovação de modelos exigiu US$ 1 bilhão em investimentos.
A reformulação das linhas de montagem colocou a GM brasileira na posição de terceira maior operação da marca no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e Alemanha, e a elevou em 1998 à condição de fábrica-modelo para a matriz norte-americana. “Foi o ciclo do qual brotaram Omega, Corsa, Vectra, a picape S-10, a caminhonete Blazer e o Astra, todos lançados simultaneamente ou poucos meses após serem colocados no Primeiro Mundo” — fala Beer com indisfarçável satisfação.
Pesaram nessa virada de mesa quesitos como rápido reposicionamento, estratégia clara, correta evolução da conjuntura e trabalho em equipe. A GM deixou definitivamente para trás a era de importar maquinários defasados ou montar veículos desatualizados tecnologicamente. O Arara Azul, que inaugura a moderna concepção de fábrica-condomínio, está orçado em US$ 600 milhões. Só o Astra injetou em São Caetano US$ 300 milhões, o que garante à fábrica sobrevida que André Beer prefere não datar:
“São Caetano ainda é uma planta competitiva. É mais antiga, a mão-de-obra é cara e temos retorno menor, porque não posso jogar os custos maiores nos produtos, já que hoje é o consumidor quem faz os preços. Mas São Caetano foi transformada sob concepção de plataforma mundial, o que lhe assegura escala para atender aos projetos do Vectra e do Astra, sucesso em seus segmentos. Em menos de um ano de lançados, os dois modelos do Astra, quatro portas e hatch, estão entre os 10 mais vendidos do País” — proclama Beer.
Em pleno processo de globalização, com a velha ordem econômica se esboroando e com uma geração de jovens executivos dando as cartas, André Beer foi exemplo de responsabilidade como líder. Conheceu 15 presidentes da GM brasileira, 12 dos quais foram seus superiores hierárquicos. O estatuto veta o que a corporação chama de nativo exercer o cargo máximo da empresa nos países onde está instalada. Coisas do destino que Beer passou ao largo, pois invariavelmente privou de forte amizade pessoal e ilimitado respeito profissional dos presidentes, a maioria com idade para ser seus filhos.
Na prática, Beer sempre foi a grande autoridade na GM, principal porta-voz junto a políticos e governantes. Carismático, é chamado de professor dentro da fábrica, tal a ascendência que exerceu ao moldar várias gerações com sua liderança. Não a empunhou com o dom supremo de ter a palavra final sobre cada ato ou sobre cada auxiliar. Garante que seu forte foi formar equipes, casando a capacidade de pensar com a de agir. “O poder é fundamental numa trajetória profissional. Não o poder ditador, de mandar, mas o poder de liderar, de conduzir e dirigir uma coletividade. O poder de compartilhar as decisões e ser respeitado por isso. Tive esse privilégio dentro da excepcional comunidade que é a GM e nos anos que estive na Anfavea” — relata.
Seu democrático conceito de poder não se limita apenas ao sentido de dividir opiniões e ações, mas de compartilhar o próprio trono. Na Anfavea, como o primeiro mandato foi tampão à saída de Newton Chiaparani, poderia pleitear a reeleição. Mas rejeitou o continuísmo. “O poder embriaga. O grande líder, porém, permite aflorar novos líderes, porque quem se eterniza é ditador” — conceitua.
Eternidade nada tem a ver com longevidade, explicam os dicionários. Por isso, para atravessar com sucesso essas cinco décadas de trabalho duro na GM, o milagre veio da mesma fonte: dedicação total. André Beer costuma dizer que só a família superou o amor à empresa. Mesmo assim, confessa que exagerou nas jornadas de trabalho e não conviveu tanto quanto desejava com os cinco filhos e 11 netos. Para os mais jovens, dá a receita de uma trajetória profissional bem-sucedida: “Além da dedicação, é preciso gostar do que se faz, para fazer bem feito. Depois, é preciso ser persistente. Cada dificuldade vencida é um aprendizado, mas sobretudo uma satisfação, um prazer indescritível”.
Fiel a essa filosofia, nada conseguiu combater o dinamismo de André Beer. Ele começou a trabalhar na General Motors na área contábil em 1951 para elaborar o custo industrial do primeiro refrigerador do País, o Frigidaire, mas explodiu como executivo da corporação. Já na metade dos anos 50 integrava o grupo de trabalho que apresentou o projeto para manufatura dos caminhões e picapes que marcariam o começo da produção automotiva da empresa. Custo Brasil, Custo ABC, câmbio defasado, mercado fechado, crise do petróleo, CIP (Conselho Interministerial de Preços) no papel de mandachuva dos custos e lucros ou a atabalhoada redução das alíquotas de importação do governo Collor nunca deixaram a General Motors frágil e sem um projeto grande para sobreviver. Beer e equipe sempre se consideraram capazes de formular estratégias e propostas. Ele chegou a recusar cargos de comando da marca na Argentina e Alemanha.
Antes da abertura comercial que consolidou o projeto desta década de caminhar de mãos dadas com todas as inovações tecnológicas da corporação no mundo, a GM brasileira já havia deflagrado pequenas-grandes revoluções.
O controle de emissão de gases do cárter foi introduzido nos motores desde a década de 60, antecipando uma política de respeito ao meio ambiente obrigatória apenas 28 anos depois.
Para lançar o Opala em 1968, Beer passou um mês convencendo os altos executivos da matriz sobre a viabilidade de unir a carroceria Opel (da GM européia) com a mecânica Chevrolet (da GM americana). Uma heresia na época. Além de primeiro automóvel da companhia no Brasil, até então dedicada à montagem de caminhões e picapes, o Opala é considerado inédito exemplo de sinergia internacional da corporação GM. “Suamos a camisa para provar que nossa engenharia tinha condições de fazer esse redesenho sem problemas” — lembra.
Outros momentos de brilho se sucederam, não sem Beer exercitar exaustivamente seu inglês junto ao staff: “Para fazer o Chevette foi preciso vencer o estigma de que carro pequeno não dava lucro naquela época. O Monza, então, foi parada dura: vivíamos em 1982 uma das maiores crises mundiais por causa do choque do petróleo. Países e empresas estavam sem fundos externos, porque os árabes tinham todo o dinheiro do mundo. Mas pusemos o Monza no mercado junto com Estados Unidos e Alemanha. Com conceito de carro mundial, o Monza liderou no Brasil por três anos” — relembra Beer. Na chamada década perdida dos anos 80, quando o Brasil, visto à distância, ainda representava tremendo risco, a GM ainda apostou em outro projeto bem-sucedido — o Kadett.
Despreparo assusta
Visionário? André Beer dispensa rótulos. É sem dúvida modelo único de continuidade e adaptação, mas é sobretudo pragmático. Um mundo por si só competitivo como o da indústria automobilística não perdoa o despreparo. Para ajudar como poucos a construir o retrato de vanguarda que hoje a GM do Brasil emoldura perante a matriz, Beer diz que nunca se assustou com a cara feia da concorrência e nem com a face oculta do que a modernidade reserva ao mundo. “Sabe o que assusta? Quando não se está preparado para as mudanças, para o novo. Quem não se recicla, quem não aprende todo dia, naufraga” — ensina, para pessoas e empresas. A GMB dá sua contribuição: em 1998 tirou do caixa R$ 9,8 milhões para o programa de treinamento. Foram 500 mil horas em cursos internos e externos.
O terceiro milênio vai relacionar cada vez mais tecnologia com a vida, diz Beer. Bobagem achar que a tecnologia desemprega. “A tecnologia veio para servir a humanidade. Cria inclusive outras necessidades de ocupação do homem ao mesmo tempo em que descarta tarefas mais antigas. Veja o trabalho repetitivo que a automação e a informática eliminaram. Mas há necessidade de reciclagem nas áreas marcadas para dispensar o trabalho humano” — afirma Beer, advertindo que o mundo não vai parar de progredir para esperar que milhões de brasileiros se alfabetizem e se preparem melhor.
Na roda-viva das mudanças planetárias, ele avisa que máquinas farão desaparecer até mesmo funções básicas como misturar massa e levantar paredes na construção civil, o que põe em xeque o exército de mão-de-obra de baixa qualificação no País.
O futuro consultor da General Motors do Brasil acha que não só o setor automotivo, mas a indústria do século XXI estará extremamente enxuta e automatizada, operando cada vez mais com trabalho intelectual e menos braçal. Acabou o ciclo de a indústria ser grande fonte empregadora e isso será acentuado com as sucessivas rodadas de fusões e incorporações.
As jornadas de trabalho, que se vêm encurtando ao longo dos tempos, tendem a generalizar-se por turnos em todos os setores, conforme o fazem as montadoras para acompanhar os altos e baixos do mercado, segundo André Beer. Ele torce para que a legislação trabalhista acompanhe essa flexibilidade. Fazendo coro a 10 entre 10 analistas de mercado, Beer acredita que os empregos se concentrarão, pela ordem de importância, nas áreas de serviços e comércio. Serviços sobretudo vinculados à complementação da cadeia produtiva, como tecnologia de ponta e da informação, e os ligados à qualidade de vida e bem-estar do homem, como lazer e entretenimento.
Mesmo não sendo mais dona de empregos numerosos, a indústria automobilística fascina pelo agregado de alto conhecimento e pelo desencadeamento de novos negócios que gera ao redor, analisa André Beer, para justificar o acirramento do leilão de benefícios entre Estados brasileiros para atrair novas plantas automotivas. “Numa das primeiras apresentações da fábrica no Rio Grande do Sul, mostrei uma foto da GM de São Caetano na década de 20 e outra do início da construção em Gravataí. Eram idênticas. Dava até para confundir. Depois mostrei a imagem da fábrica de São Caetano de hoje, perdida em meio ao adensamento urbano e comercial que atraiu. É isso que seduz: a perspectiva de desenvolver a comunidade e ser importante no crescimento profissional das pessoas” — afirma.
Beer sublinha o papel econômico de uma montadora para a cidade onde se instala — em São Caetano a GM emprega nove mil funcionários e chega a responder sozinha por metade do ICMS. Mas relativiza a guerra fiscal com renúncias milionárias de impostos. Desautoriza interpretar que sejam um tratamento preferencial. Sua tese é de que os municípios e Estados estão abrindo mão de tributos que na verdade não tinham antes de a empresa chegar — portanto não existiam no orçamento público — e que passarão a receber após o período de consolidação do novo negócio.
Beer também subtrai a importância dos incentivos fiscais como fator fundamental de competitividade de uma empresa: “Há vários outros itens envolvidos, como localização, disponibilidade de mão-de-obra, qualidade de vida local e a própria agenda do Estado em novos projetos de desenvolvimento. Tudo é cuidadosamente avaliado em um investimento de grande porte” — relata.
Nesse carrossel de variáveis, também o Poder Público tem papel de ator principal. Se o prefeito for inteligente, não criar entraves e até colaborar com a empresa, facilitando com infraestrutura básica e viária a atividade de produzir e gerar empregos, são grandes as possibilidades de a organização manter-se como âncora local de prosperidade. “Certa época o prefeito Walter Braido queria desapropriar faixa importante da GM para enquadrar um projeto paisagístico da Avenida Goiás. Argumentamos que a área nos faria falta e ele concordou que, mesmo gastando mais com o remanejamento de casas e comércios, seria melhor desapropriar a outra faixa da avenida. É um exemplo de que o administrador público deve estar em sintonia com quem produz riqueza, traz impostos e bem-estar à população da cidade” — acredita.
André Beer não sabe dizer com certeza se condomínios industriais ou consórcios modulares, com grandes fornecedores próximos ou dentro da linha de montagem, são o fato novo que vai revolucionar a indústria automobilística do Terceiro Milênio. Argumenta que as experiências recentes no Brasil por enquanto podem ser definidas como belos laboratórios. Tem receio da viabilidade do modelo para grandes volumes de fabricação. “O condomínio de Gravataí é um prospecto de fábrica do futuro para operar volumes menores. É preciso estar atento a isso. Estamos falando no Sul em 18 fornecedores próximos para montar 120 mil unidades por ano. Ainda não projetamos isso para plantas americanas onde as autopeças precisariam fornecer sistemas completos para 600 mil veículos/ano, quatro vezes mais. Isso é complicado. Onde coloco todo esse volume? Fazendo outras fábricas ou galpões monstruosos ao lado?” — interroga.
Outro tipo de líder
André Beer não se incomoda com a eterna liderança da Volkswagen no Brasil. A GM ocupou por muitos anos a segunda posição no ranking, foi atropelada pela Fiat com sua grande penetração entre os modelos populares, e hoje é a terceira no pódium com 22% do mercado. Beer não acha que falhou na tarefa de colocar a GM no topo. Sua medida de sucesso não está restrita a um bom desempenho na quantidade de vendas, mas à qualidade do desempenho da marca.
“Se um empresário disser que não quer ser líder, tem alguma coisa errada com ele. É lógico que busco a liderança, só que sem sacrificar uma série de outras coisas. Antes, quero ter produtos e atendimento que satisfaçam meu comprador. Não vou penalizar a qualidade em nome de volumes de escala. Uma empresa deve ter imagem de seriedade e honestidade junto ao público. Graças a Deus, nosso SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor) cresce aos saltos, porque é uma linha confiável. Nosso comprador vai encontrar 550 concessionárias preocupadas com ele e uma fábrica que vai dar toda retaguarda a essa rede com financiamento do Banco GM, um fundo de capital de giro e promoções de preços e serviços. Isso é mais importante do que simplesmente dizer: vamos vender. Não: queremos ter retorno adequado que nos faça investir em novos projetos, que nos dê retaguarda nos momentos mais difíceis e, principalmente, que nos faça atender ao consumidor em conforto e em vanguarda” — afirma.
André Beer tem interpretação própria de liderança. Nos segmentos que a GM disputa, só não ganha no popular. A Imprensa especializada elegeu cinco vezes consecutivas os veículos Chevrolet como Carro do Ano da revista Autoesporte: Omega em 1993, Vectra em 1994 e 1997 e Corsa em 1995 e 1996. No segmento de Picape do Ano, a S 10 levou o título em 1995 e 1996 e a Silverado em 1997.
A General Motors é das poucas no Brasil que trabalha com o arco completo de veículos, que se abre do popular às categorias mais altas do mercado. “Dos 10 modelos mais vendidos no ranking de nacionais e importados de julho último, participamos com cinco, isto é, metade: as duas versões do Corsa e outras duas do Astra, além do Vectra. Todos achavam que o Astra 4 portas engoliria o hatch e que ambos não decolariam com o Vectra na parada. Estão todos firmes e fortes” — dispara Beer. Os cinco modelos GM venderam juntos 137 mil unidades em abril. O problema é que o Gol, da Volks, desequilibra o jogo: comercializou sozinho 140 mil unidades no atacado (das fábricas para as concessionárias).
Personagem da história automotiva do País, André Beer sabe que a parada vai endurecer quando todas as fábricas brasileiras estiverem despejando no mercado as três milhões de unidades previstas, por volta de 2001 ou 2002, após investimento inédito de US$ 20 bilhões do setor no último quinquênio do século. Sua aposta é que o Brasil está se qualificando como player global, para jogar em vários gramados do mundo. Além disso, é um eterno confiante nas potencialidades internas, lembrando que aqui há apenas um carro para nove habitantes, quando na Europa essa relação é de 2,5 veículos por pessoa e nos Estados Unidos de um por um.
“Mas isso é missão para o José Carlos” — brinca, passando o desafio para José Carlos Pinheiro Neto, advogado que também despontou no cenário interno da GM e ocupou sucessivamente os mesmos cargos de Beer. Exerce hoje inclusive a presidência da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos. Desde que acertou seu afastamento formal da montadora, há um ano, Beer ouviu do staff que não haveria mais um vice-presidente com todas as suas atribuições e que os canais diretos de todos os altos diretores com o presidente seriam amplificados. De fato, jamais se viu um ponto de intersecção tão acentuado com fornecedores, concessionários, clientes e quase 20 mil funcionários distribuídos pelas fábricas de São Caetano, São José, Mogi das Cruzes e o Campo de Provas de Indaiatuba. Beer foi um elo de comunicação inestimável. Chega a tomar satisfações pessoalmente de eventual revenda de marca criticada por algum consumidor.
Com a imprensa despertou sólida admiração. Respeitados os limites de até onde pode opinar, é uma usina de informações e fonte extremamente confiável. Não foi outro motivo que no lançamento da linha Chevrolet 2000, mês passado, o último dentro de seus vínculos formais com a GM, tenha sido calorosamente aplaudido pelos mais de 80 jornalistas vindos de todas as partes do Brasil, do Piauí ao Rio Grande do Sul. Foi pura emoção. Antes disso, André Beer havia sido homenageado com o prêmio Chairman’s Honors Award, que distingue os principais colaboradores da corporação no mundo e recebido em maio em Detroit. É só a mais recente de uma coleção de dezenas de justas homenagens promovidas ao longo dos anos em atuações também em entidades como Fiesp, CNI, Funcex, CIEE e outros organismos assistenciais. Foi o Homem de Vendas de 1995 da ADVB, Melhor Líder Empresarial do setor automotivo em 1998 e 10 vezes Líder Empresarial do Ano do jornal Gazeta Mercantil.
Sem grito
Filho do Grande ABC, em nenhum momento André Beer suaviza o cenário regional. Acha que o comportamento dos sindicatos em muito azedou o percurso econômico da região, não pelo conteúdo das reivindicações, mas pela conduta que ele chama de exacerbada de seus líderes. “Não sou contra ação sindical e mobilização dos trabalhadores. Só não aceito posições radicais. Não se garantem emprego e salários no grito, um comportamento que sem dúvida assustou, aborreceu e explica a saída de muitos empresários da região. Embora em São Caetano a Força Sindical tenha se pautado com diálogo mais acessível, a CUT no restante do ABC representou um problema cortante para todos na região, sem compreender que quem dita regras é o patrão consumidor” — considera.
Enfrentar o então agressivo movimento sindical, segundo André Beer, foi mais espinhoso do que negociar a intransigência do CIP quando as empresas ficaram reféns do congelamento e monitoramento dos preços: “O diálogo com o governo, pelo menos, foi de alto nível. A distorção do CIP não estava nas pessoas, mas na filosofia: controle de preços só premiou o incompetente. Para quem quis investir e crescer, foi terrível. O mercado fechado impediu o Brasil de ter acesso a processos mais modernos e o controle do CIP represava custos, atrapalhando todo o planejamento. No caso da indústria automotiva foi quase mortal, porque qualquer investimento em veículo novo exigia àquela época planejamento com até quatro anos de antecedência” — conta Beer. Hoje esse prazo na GM foi reduzido à metade no caso de modelo totalmente novo. Mudanças de design e versões ocorrem em questão de meses.
André Beer mudou-se há apenas três anos para São Paulo. Três dos cinco filhos residem e têm atividades no Grande ABC, um cuida da fazenda da família no Mato Grosso e uma filha está nos Estados Unidos. Beer viveu, portanto, intensamente as transformações da região. Por isso, não economiza chumbo grosso também aos políticos. Faltou aos prefeitos e legisladores municipais, a seu ver, maior sinergia com as empresas e com as necessidades da comunidade, o que também teria afastado muitas possibilidades da região.
“As autoridades públicas foram absolutamente relapsas ao permitir o favelamento crescente do Grande ABC e a invasão de áreas maravilhosas como as da Represa Billings e da Mata Atlântica. Não entra na minha cabeça o descaso de administradores para questões elementares como a saúde, deixando abandonado um esqueleto erguido para abrigar um Hospital de Clínicas Regional. Falo isso de cátedra, porque fui durante anos curador da Faculdade de Medicina do ABC e vi as necessidades da população na área” — ataca.
Causas sociais
O futuro assessor especial da General Motors tem, aliás, um gosto acentuado pelas questões humanas. Por mais que estivesse com os limites dos horários tomados, sua agenda de trabalho sempre abriu espaços para receber ou prestigiar entidades comunitárias ou assistenciais. Beer pratica filantropia com energia semelhante à que empenha nos negócios. Pessoalmente, colabora com ações ou participa de conselhos administrativos de quase uma dezena de organismos. Na GM, foi um dos idealizadores da criação, em 1993, do IGM (Instituto General Motors), braço da montadora para causas benemerentes.
Entre as causas abraçadas pelo IGM estão os projetos educacionais Semear e Parceiros da Criança desenvolvidos com menores das favelas Tamarutaca, Príncipe de Gales, Gamboa e Palmares, em Santo André, e do Heliópolis, na Capital. Estão sendo investidos R$ 800 mil em dois anos em atividades de recreação e complementação escolar de 540 crianças.
O IGM contemplou no biênio 97/98 mais de 40 escolas Senais e 16 entidades com programas de assistenciais, de doações, de saúde, educacional e cultural. São organismos como Apaes, creches, asilos, centros de apoio a aidéticos e o Comunidade Solidária, de alfabetização de populações carentes. São quase 44 mil pessoas beneficiadas anualmente só no programa de doações.
“Ajudar os mais humildes faz muito bem à alma” — incentiva André Beer, que no mês passado foi paraninfo dos formandos do 24º Curso Internacional de Técnicos em Aparelhos Ortopédicos e Membros Artificiais, um convênio que a AACD de São Paulo mantém com a Organização Mundial da Saúde e Organização Mundial do Trabalho para formar instrutores em todo o mundo para lidar com a causa dos deficientes físicos.
Beer foi requisitadíssimo no papel social da GM e no seu próprio, como ser comunitário. Cansou de fazer rifas para reerguer o Hospital São Caetano. “Na verdade tenho interesses: quero aumentar minha cotação no céu. Devo estar em débito lá cima” — brinca.
Pelo IGM, outra causa digna de nota são as doações mensais da montadora ao Hospital do Câncer, da Fundação Antonio Prudente. Desde 1993, cada questionário de índice de satisfação preenchido e retornado pelo comprador de um veículo zero reverte em R$ 1 à entidade. As doações chegam em média a R$ 115 mil ao ano.
Dentro da General Motors uma experiência humana superlativa é o Clube dos 30. André Beer fundou há 13 anos e é considerado o maior incentivador dessa mobilização, que reúne funcionários da empresa com pelo menos 30 anos de serviços em atividades sociais, culturais, recreativas e esportivas na ADC-GM (Associação Desportiva e Classista), onde está outra menina-dos-olhos: o futsal campeão de títulos nacionais e internacionais. Corintiano irrecuperável, André Beer tem queda especial pelo futebol, de salão ou de campo.
Livro e consultor
Toda essa vivência André Beer quer agora colocar em livro e multiplicar na forma de consultor. Há quem diga que, até prova em contrário, não se pode discutir política industrial ou o futuro da indústria automobilística sem colocar Beer à mesa. Como a princípio, a partir de janeiro, seu compromisso com a GM do Brasil consumirá apenas cinco dias da agenda mensal, tudo indica que a Beer Consulting, como foi batizada, terá uma bem fornida carteira de clientes. Em lugar de só montar carros, um dos mais experientes executivos da indústria brasileira passará a montar estratégias também para outros setores. “Quero atuar na discussão e estruturação de estratégias de negócios para segmentos variados. O Brasil carece desse profissional orientador. Tem muito consultor palpiteiro, mas poucos estrategistas” — fala, com a habitual franqueza.
A experiência do livro deve desdobrar-se em duas. Beer acertou com um grupo de jornalistas especializados escrever a várias mãos a trajetória brasileira e internacional do setor automotivo e como acredita que será a arrancada para o novo milênio. O percurso de vida na GM, a experiência profissional mesclada com momentos pessoais, pretende imprimir em outra obra. “Nada de autobiografia. Não sei ainda que rumo dar ” — confidencia.
Certa mesma é a nova divisão da jornada mensal: uma semana para a GM, outra para a Beer Consulting e outra para exercitar a veia da assistência a entidades benemerentes. Como o mês por enquanto tem quatro semanas e como ninguém é de ferro, uma será reservada ao que Beer chama de momentos de prazer: andar de barco e de moto, pescar, caçar e tocar violino e piano. Beer tem grande afinidade com música instrumental. Dos 16 aos 26 anos tocou e comandou a banda Yankee, que se apresentava nas matinês de finais de semana em clubes como Aramaçan, Pirelli e Rhodia para ajudar no orçamento da família. O pai consertava instrumentos em uma pequena oficina e ensinou-lhe a manejar o violino e o saudoso acordeão.
Decididamente, André Beer nem de longe pretende encerrar o ciclo natural do homem: nascer, crescer, amadurecer e depois entrar em inevitável declínio. Está em pleno exercício da maturidade, ainda que aparentemente sem uma perna de apoio. Beer sentiu muito a recente viuvez, após um casamento de 45 anos. É homem que presa laços familiares. Fala com sorriso nos olhos dos cinco filhos bem-encaminhados na vida e dos 11 netos que têm tudo para seguir semelhante trajetória. Exibe a quem quiser ver fotos em farta quantidade de todos, reunidos nos últimos anos nos cartões de Natal da família. Este ano Dona Nathércia não estará na ceia. Ainda sensível, Beer pensa em não editar o cartão de Boas Festas para milênio de 2000.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES