A primeira década do novo milênio será decisiva para a sorte socioeconômica do Grande ABC. Depois de sair do anonimato e subir ao palco de estrela econômica nacional a partir da segunda metade deste século, com a chegada da indústria automotiva, a fortaleza regional está comprometida pelo furacão externo da globalização econômica e pelo vendaval interno de novos polos produtivos.
O Grande ABC está globalizado e encurralado. Desde o começo dos anos 1990, quando o ex-presidente Fernando Collor de Mello iniciou a abertura dos portos com o rebaixamento de alíquotas de importação, a região estremece com a descentralização dos fluxos dos negócios sem fronteiras e acirradamente competitivos.
Além disso, também a sustentação artificial do real frente ao dólar agravou a sangria de divisas e o desembarque de investidores e empreendedores decididos a tudo por um naco do consumo interno. Não bastassem esses movimentos centrífugos de macropolítica econômica, governos estaduais e municipais ajudaram a calibrar a destrutiva guerra fiscal sob olhares permissivos e muitas vezes incentivadores do governo federal.
Mesmo protegidas contra a invasão de produtos estrangeiros, as montadoras de veículos com fábricas no Grande ABC não escaparam de transformações que sacudiram antigos paradigmas de gestão de recursos humanos, de processos e de equipamentos, além de expandirem plantas mais atualizadas fora da efervescência sindical só arrefecida nos últimos tempos. Sem a mesma força política, as autopeças comeram e ainda comem o pão que o diabo amassou.
Outros dois pilares decisivos ao equilíbrio econômico regional acusam duros golpes. O setor químico-petroquímico depende de enxadrismos políticos para aumentar a produção e elevar participação na Grande São Paulo, o maior mercado consumidor do País. O setor de móveis se descobriu recentemente vítima de descuido imperdoável, ao deixar a condição de produtor para se tornar quase que exclusivamente vendedor de produtos de terceiros.
Com esses três setores econômicos atingidos em cheio, os abalos se contabilizam na perda de milhares de empregos, na canibalização de negócios de comércio, de serviços e também industriais, e na explosão demográfica da periferia.
Mas o Grande ABC finalmente acordou. Desde que os novos prefeitos assumiram, há pouco mais de 30 meses, respira-se o ineditismo de ações voltadas à integração institucional e estratégica. Os movimentos envolvem agentes sociais, políticos e econômicos. Tudo isso será suficiente?
Só o tempo vai responder. Entretanto, não é porque está globalizado e encurralado que o Grande ABC deve entregar os pontos. Pelo contrário. Que tal buscar inspiração e exemplos fora dos 840 quilômetros quadrados que envolvem os sete municípios locais? O que a Grande Campinas tem a oferecer de paradigmas ao Grande ABC. E o Vale do Paraíba? E os nordestinos da Bahia, onde a Ford decidiu implantar moderníssima fábrica. A pequena São Carlos, Capital dos Doutores, também serviria de suporte para a reorganização da região? E o segundo polo automotivo do País, instalado na Grande Curitiba, onde se combinam investimentos de alta tecnologia com geração de emprego?
Vale a pena examinar com lentes de humildade esses exemplos de municípios, regiões e Estados que enfrentam a globalização econômica sem sofrer as mesmas dores do Grande ABC. É necessário reconhecer que o agrupamento regional que se mantém em terceiro lugar como potencial de consumo do País só sustentará esse status no novo século se imprimir ritmo mais forte aos movimentos institucionais que o situam na vanguarda nacional.
Sim, o Grande ABC está perdendo a corrida por investimentos produtivos e por novos empregos, mas está disparadamente à frente dos demais competidores na organização de seus atores sociais, econômicos e políticos. Câmara Regional, Consórcio de Prefeitos e Fórum da Cidadania são modelos de responsabilidade coletiva que vicejam com impactos construtivos que precisam ser acelerados.
Talvez porque não tenham batido no fundo do poço como o Grande ABC, municípios, regiões e Estados que constam do mapa de desenvolvimento econômico do País possam até mesmo negligenciar amarrações mais sólidas fora do terreno exclusivamente negocial. Como o Grande ABC do início da segunda metade deste século, não lhes faltam atratividade compulsória de terrenos amplos e baratos e infraestrutura logística.
Muitas dessas localidades acrescentam novas vantagens na guerra por investimentos em relação ao Grande ABC do momento. Faculdades e universidades despejam mão-de-obra sem vícios, menos exigente financeiramente e pronta para ser adestrada. Sem contar um requisito cada vez mais lembrado pelos empreendedores quando se trata de elevar a produtividade não só com investimentos tecnológicos — qualidade de vida em forma de redução do tempo de locomoção casa-trabalho-casa, meio ambiente preservado, segurança e mix de oferta de lazer e cultura, entre outras variáveis.
Como se observa, sobram obstáculos para o Grande ABC. Mais um motivo para todos arregaçarem as mangas e botar a mão na massa.
Região precisa ajustar ritmo à onda de mudança
Como o Grande ABC está reagindo à globalização econômica que atinge o Brasil? A resposta requer cuidados especiais. Resumidamente, depois de muitos anos de falta de juízo completo e de consolidar-se como periferia urbana e cultural de São Paulo, há fortes sinais de que estamos vivos e fazendo o possível para evitar que as contrações sejam mais doídas ainda.
O grande problema é que as respostas aos desafios que se antepõem à recuperação regional não têm a mesma velocidade das transformações ditadas pela trajetória de investimentos em todo o mundo. Exibimos um corpo balzaquiano, que acusa os efeitos de involuntária dieta de emagrecimento industrial, quando se exigem elasticidade, ambição e musculatura próprias da juventude.
Embora se propague aos quatro ventos que o Grande ABC é um primor de participação social e de formulação de novas investidas institucionais, a realidade é menos esfuziante do que o discurso.
Está certo que não existe outro Fórum da Cidadania a dar sopa no País, que a Câmara Regional é modelito diferente de entendimento entre Poder Público e sociedade e que o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos constrói relações cooperativas desprezadas ao longo de décadas. Mas tudo isso ainda está em fase de avanços e recuos. Quase uma espécie de tango institucional, de dois passos para lá, dois para cá. Um ritmo aquém da movimentação frenética da globalização econômica que reduz empregos, que torna as empresas mais competitivas, que acrescenta maiores faixas de exclusão social, que corta sonhos tanto da classe média-baixa operária como da classe média-média de profissionais liberais e executivos emergentes.
A grande questão que se coloca não é nem mais sobre o Grande ABC do presente, que vive fase de profundas transformações. A indagação é sobre o que será da região dentro de 10, 15 anos. Será que vai ser um exemplo prático daquilo que Joseph Schumpeter diagnosticou como destruição criativa que sacudiu Detroit e a fez renascer das cinzas, ou entrará para o catálogo de regiões fantasmas?
A resposta vai depender em boa parte do pragmatismo das ações que se desenvolvem nesse território de 840 quilômetros quadrados, 2,3 milhões de habitantes e 3% do PIB (Produto Interno Bruto) do País.
O perigo é o Grande ABC incorrer na histórica encenação do Estado brasileiro de produzir mais manchetes que obras, mais acessórios que prioridades. Principalmente quando se sabe que o calendário eleitoral é fonte inesgotável de projetos sem sustentação prática, que os cofres públicos estão à míngua, que a comunidade vive o drama do desemprego e já está entalada de tantos impostos e que os empreendedores sofrem com a concorrência internacional e os custos genuinamente brasileiro e regional.
Acéfala durante quatro décadas no âmbito governamental interno, com a quase totalidade de prefeitos e vereadores aperfeiçoando acrobacias individuais de carreiristas, a expressão Grande ABC não passava de metáfora, um lance de marketing pressupostamente de conteúdo geoeconômico.
À falta de uma instituição capaz de promover a interação dos agentes econômicos e sociais, agora temos três — Consórcio dos Prefeitos, Câmara Regional e Fórum da Cidadania. Sem contar que no bojo da Câmara Regional surgiu a Agência de Desenvolvimento Econômico. É da capacidade de mobilização dessas organizações que depende fortemente a sorte do Grande ABC. Exatamente por isso não se pode desperdiçar munição. A globalização é implacável.
O Fórum da Cidadania, desde abril sob o comando de Carlos Augusto César Cafu, diretor do Sindicato dos Químicos, já está ganhando nova configuração. Tem vez a densidade representativa, depois de sofrer o diabo com o isolamento vivido por Sílvio Tadeu Pina. Cafu chegou no momento certo. O Fórum da Cidadania estava à deriva, sem foco e em esclerose acentuada como consequência de equívocos que se acumularam principalmente depois do inchaço das plenárias.
Inédito encontro de forças díspares e muitas vezes antagônicas, casos de organizações empresariais e sindicatos de trabalhadores, o Fórum da Cidadania é arranjo diferenciado no espectro institucional do País. Foi lançado às vésperas das eleições de 1994, sob o mote Vote no Grande ABC. Simboliza, acima de tudo, sentimento de boa-vizinhança entre direita e esquerda sob a ótica de soluções consensuais. Descarta-se tudo que tenha potencialidade polêmica.
Depois de viver fases distintas, nas quais sucederam-se o entusiasmo pelo lançamento da novidade, a robustez de representatividade seletiva, o inchaço de uma densidade artificial e o esvaziamento das plenárias, a nova direção do Fórum já começa a inocular conceitos de cidadania em diversos segmentos da comunidade até então alheios ao movimento, casos específicos de movimentos populares e bolsões acadêmicos.
Resta saber se o temário estará em sincronia com as necessidades socioeconômicas da região, sob a perspectiva não de um passado que já saiu de moda, mas de um formato de futuro em que prevalecerá o conceito de capital social, isto é, a aproximação dos detentores do poder econômico, sindical e político com o conjunto da sociedade que se esfarela em poder de consumo por força das perdas industriais.
O Fórum da Cidadania é trunfo estratégico para a harmonia integrativa da região. Tanto que a história recente de costura institucional encontra no surgimento da entidade instrumento decisivo. Quando o Fórum emergiu, em 1994, o Consórcio Intermunicipal dos Prefeitos afogava-se em desinteresse. Os prefeitos de então mal se conversavam. Pior do que isso: presos em seus mundinhos, alguns enxergavam a região com lentes cor de rosa, numa imitação mal-ajambrada dos músicos do Titanic.
O Fórum bateu forte nos prefeitos, mexeu com seus brios, mas não os retirou da imobilidade. Foi preciso que novos chefes de executivos assumissem em 1996 para recuperar o Consórcio Intermunicipal de modo a lhe dar abrangência mais ampla, sobretudo voltada para operações socioeconômicas.
Falta muito, entretanto, para o Consórcio sobrepor-se ou igualar-se às preocupações municipais. Gilson Menezes e Luiz Tortorello não são exatamente exemplos de dedicação regional. Menos mau que mobilizam assessores diretos para acompanhar o empenho dos demais.
Nem se pode dizer também que a maioria dos prefeitos se dê as mãos para o que der e vier. Além de diferenças partidárias, há evidentes disputas pelo estrelato regional. Um caso emblemático foi o lançamento do projeto Eixo Tamanduatehy. A maioria dos prefeitos não deu as caras no Palácio de Mármore, onde Celso Daniel era disputadíssimo anfitrião.
Completando o triângulo da esperança regional, a Câmara do Grande ABC é uma mistura de Fórum da Cidadania e de Consórcio dos Prefeitos, adicionando-se a participação do governo estadual. Criada há dois anos, a Câmara Regional é a ponte que liga os problemas da região com as tentativas de solução ao alcance do Palácio dos Bandeirantes. A doença do governador Mário Covas parecia comprometer o diálogo, mas a indicação do professor Sílvio Minciotti para fazer tabelinha com Armando Laganá como representantes do Estado lança luzes de entusiasmo.
Mas convém não exagerar no otimismo. Os cofres estaduais estão comprometidos com a queda de arrecadação provocada pela retração econômica. Organismo informal, a Câmara Regional exige constante monitoramento de relações entre a região e o governo estadual.
Houve espécie de vácuo nas relações entre a região e o governo do Estado quando Emerson Kapaz, um dos mentores e executores da instituição, deixou a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico para cuidar de candidatura a deputado federal.
O ideal seria a aprovação pela Assembléia Legislativa da Região Metropolitana do Grande ABC, tal como a RM da Baixada Santista. Entretanto, as autoridades públicas da região não investem nessa proposta entre outros motivos porque temem pela distribuição paritária de membros deliberativos entre o Grande ABC e o Palácio dos Bandeirantes.
A Agência de Desenvolvimento Econômico é o braço estratégico do Consórcio e da Câmara. Ainda em fase de estruturação, a função inicial que lhe é atribuída está conectada à avaliação de um banco de dados preparado em convênio com a Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados). A Agência é uma das provas de que os dirigentes políticos da região que comandam o Consórcio e a Câmara estão dando de lavada nos antecessores, cujo desprezo por estudos socioeconômicos locais — e consequentes decisões práticas — ajuda a explicar o esfacelamento da base industrial.
Fórum, Consórcio e Câmara Regional seriam a Santíssima Trindade do Grande ABC contra o furacão da globalização? Nem oito nem 80. Os poderes dessas organizações são limitados diante da complexidade do xadrez macroeconômico.
As duas principais matrizes econômicas da região — o setor automotivo e o setor químico/petroquímico — ainda respiram reestruturação. Os efeitos do capital mundializado só não fizeram estragos sociais ainda maiores porque as montadoras e também os sindicatos de trabalhadores contam com forças-tarefa nas esferas de decisão estadual e federal. Além disso, a desvalorização do real frente ao dólar realocou a origem dos fornecedores das automobilísticas, substituindo-se parceiros internacionais por nacionais.
As montadoras de veículos contam com alíquotas protecionistas que garantem margem de manobra contra a invasão de importados e fôlego para programar investimentos de atualização tecnológica e de gestão. Também pesou para amenizar os custos sociais a redução de impostos estaduais e federais, em acordos precários, além de se ter a expectativa de que a política para renovação da frota seja um adicional de amortecimento do choque entre oferta excessiva e demanda retraída de veículos.
O drama para a região é que a produção nacional de veículos está descentralizada com novas fábricas. Serão 17 até o ano 2002. A participação do Grande ABC no bolo de produção de veículos já foi superior a 90%, mas cairá para 30% da projetada capacidade instalada de três milhões de unidades dentro de dois ou três anos. Se demanda e capacidade instalada não se encaixarem, a ociosidade assumirá sinônimo de mais conflitos entre capital e trabalho, além de mais desemprego.
Aliás, independente disso, a Volkswagen/Anchieta já programou cinco mil dispensas nos próximos cinco anos por conta da completa reorganização da unidade, a última das montadoras da região a dobrar-se à modernidade produtiva no setor. Já as autopeças, cujas impressões digitais se confundem com as pegadas das montadoras, sofreram e ainda sofrem um bocado.
A globalização não dá trégua. Pelo contrário: as autopeças foram atiradas às feras da competição mais cruel. Tiveram de adaptar-se ao jogo da competitividade exasperante, em que se exigem custos asiáticos num regime tributário, fiscal e — durante muito tempo — cambial implacavelmente desfavorável. Gorduras funcionais foram queimadas, ossos estruturais foram quebrados. Muitas empresas não resistiram. Desapareceram, foram incorporadas e fundiram-se a grupos internacionais. Segundo o Sindipeças, o capital estrangeiro domina hoje 60% do setor.
O quadro de desemprego industrial na região está conectado a essas mudanças. Num cálculo otimista, a base de empregos nas autopeças foi reduzida em dois terços desde a abertura econômica, em 1990. Isso quer dizer que uma empresa que contava com 450 funcionários não registra mais que 150 cartões de ponto. Dá para imaginar o rombo do impacto social quando se sabe que de 60% a 70% do PIB do Grande ABC está atrelado ao setor automotivo.
Basta observar os índices de criminalidade — entre 94 e 98 cresceu em 47% o número de homicídios na região. Foram 1.159 homicídios no ano passado e as projeções para este ano, com base nos cinco primeiros meses, indicam que podemos chegar a 1,2 mil vítimas fatais da violência. O dobro dos homicídios registrados no ano passado em Nova York, que tem população quase três vezes superior à região.
A indústria químico-petroquímica, baseada no Polo de Capuava, também está interligada ao setor automotivo. Boa parte da produção da empresa-mãe, a Petroquímica União, e das unidades de segunda geração que a cercam está relacionada ao setor automotivo.
É um equívoco correlacionar autopeças exclusivamente ao setor metalmecânico. Desde que foi descoberto como material economicamente mais vantajoso, cada vez mais a engenharia veicular incorpora o plástico em peças e acessórios. Para se ter um exemplo regional bem próximo, a Arteb, autopeças de São Bernardo, acaba de investir US$ 60 milhões para introduzir mais plástico em sua linha de faróis que antes eram sinônimo de alumínio.
Não é à toa que o Grande ABC disputa uma guerra de guerrilhas para ter o que chama de polo de moldes. Seria a maneira de compor rede mais atualizada tecnologicamente de abastecimento às montadoras. O que se tem hoje nos setores de autopeças e de plásticos é uma balbúrdia, com excesso de empresas do mesmo segmento, o que estimula concorrência predatória. Caso típico de autofagismo, de falta de sistematização da ocupação industrial.
Modelo diverso do que os asiáticos tão bem souberam planejar e executar tanto no setor automotivo quanto no eletroeletrônico e que acabou inspirando os polos da Grande Belo Horizonte (Fiat) e da Grande Curitiba. Falta à região o que os técnicos chamam de rede competitiva de fornecedores mundiais.
A modernidade que chega às linhas de produção das montadoras e das autopeças e a eficiência das indústrias químico-petroquímicas não sustentam, por si só, um Grande ABC metabolizado para ocupar sem traumas o tabuleiro do futuro econômico. Afinal, além da descentralização da produção automotiva, o setor químico-petroquímico debate-se para aumentar a capacidade de produção do nafta, instrumento político da Petrobras.
Além disso tudo, o maior problema do Grande ABC está no padrão de industrialização. A liderança mundial dos setores químico e metal-mecânico prevaleceu nos anos 70 e na década de 80, mas está subordinada já há vários anos às novas tecnologias da informática, da microeletrônica e das telecomunicações, pela busca de novos materiais e de energias renováveis pela biotecnologia. Essa corrida o Grande ABC já perdeu para outros polos industriais, como a Grande Campinas, São Carlos e o Vale do Paraíba, por exemplo, no Estado de São Paulo.
A tradução dessa equação é que a modernização das plantas automotivas e químico-petroquímicas não é suficiente para dar suporte ao desenvolvimento socioeconômico do Grande ABC. Quanto muito, assegurará a tendência de privilegiar número cada vez mais seletivo de trabalhadores e executivos especializados em automação, marketing e consultoria, entre outras atividades de apoio, enquanto numerosas hordas de excluídos continuarão a se aglomerar na periferia.
O setor moveleiro, decantado pelos incautos que o posicionaram como parceiro econômico do automóvel, há muito deixou de ser produtivo e se transformou em polo comercial. Estudos e ações estão em desenvolvimento para resgatar as origens e incrementar a produção.
O trabalho deverá dar frutos, mas não se deve esperar muito porque a recuperação implica em revolução tecnológica que por sua vez é restritiva ao emprego de mão-de-obra, cujos efeitos serão semelhantes aos investimentos em automação no setor automotivo.
Além disso, o peso econômico da atividade na geração de riquezas também é acanhado se comparado ao oferecido às indústrias de ponta de regiões com melhor qualidade de vida e campi universitários voltados para o mercado de trabalho das novas estrelas da produção.
Dessa forma, está claro que não basta à região recuperar o tempo perdido pela indústria químico-petroquímica e pelo setor automotivo. É preciso muito mais. Há milhões de metros quadrados de galpões industriais abandonados que poderiam ser convertidos em novas vocações produtivas, alinhadas com a modernidade. Mas até agora nem de longe se anunciou qualquer iniciativa nessa direção.
Talvez devido à síndrome do Custo ABC, um coquetel que envolve a imagem de um sindicalismo bravio de outros tempos, custo elevado do metro quadrado de terreno, caótico sistema viário, mão-de-obra cara e indicadores cariocas de criminalidade. Sem contar, é claro, os estilhaços da guerra fiscal.
Num contraponto compulsório ao esvaziamento industrial, o Grande ABC ainda está se adaptando ao redirecionamento para os setores de comércio e serviços. Há uma década, desde que o Mappin construiu shopping center na Avenida Pereira Barreto, entre Santo André e São Bernardo, iniciou-se a reconfiguração econômica da região. Atracaram num suposto porto seguro redes de fast-food, supermercados, hipermercados, videolocadoras, novos shoppings e franquias as mais diversas, entre outros negócios reluzentes.
O choque sofrido pelo comércio e pelos serviços já instalados na região foi intenso. Se, antes do refluxo industrial, serviços e comércio do Grande ABC eram provincianos e o endereço mais nobre da Capital era opção de compras de grande parte da classe média, depois do advento dos novos investimentos o que se tem é um quadro de excesso de ofertas e escassez de demanda.
Saudar empreendimentos do comércio e de serviços com o foguetório de que o futuro está garantido não passa de inocente deslumbramento. Os grandes empreendimentos canibalizam-se e asfixiam os pequenos, porque o Grande ABC ainda não encontrou novas alternativas industriais para suas matrizes de produção.
A ocupação territorial dos setores de comércio e serviços deu-se sob a mesma lógica oportunista da indústria. Com a diferença de que, contrariamente ao setor industrial, não reúnem a mesma capacidade de agregar valores desenvolvimentistas. Entenda-se por valores desenvolvimentistas não o crescimento de arrecadação de tributos, sempre medido como evolução da massa de consumo em empresas mais facilmente fiscalizáveis, mas o conjunto dos empreendedores e suas implicações sociais.
A expectativa de que a indústria de entretenimento amenize a situação de empobrecimento do Grande ABC ainda não passa exatamente disso, de expectativa. As atividades noturnas na região ganharam novos impulsos com o boom de danceterias e choperias, mas ainda é pouco. Faltam parques temáticos, cujos investimentos são extremamente elevados.
O corredor da Via Anchieta, que já reúne restaurantes, motéis e o Parque Estoril, ainda é subestimado pelos empreendedores e sofre com a falta de critérios de prioridade de planejamento e também de recursos financeiros da Administração Pública de São Bernardo. O corredor da Avenida dos Estados, em Santo André, acalenta o projeto do Eixo Tamanduatehy, mas a proposta é para um futuro ainda distante. A Cidade de Criança, outrora disputadíssima, vive sequelas do tempo que não pára de atualizar tecnologias. O obsoletismo dos brinquedos transformou-a em Cidade da Vovozinha.
Até mesmo a proposta de potencializar o turismo regional, sobretudo nas áreas mais atingidas pelos mananciais, não alcança unanimidade. A Vila de Paranapiacaba, marco da industrialização regional, poderia deflagrar o processo, mas é um patrimônio histórico que se deteriora na exata proporção do excesso de ego de muitos que se julgam preservacionistas.
Tentativa de Beto Carrero de obter autorização para montar um parque temático na Vila foi rechaçada de pronto. Nem lhe deram oportunidade de dialogar. A impressão que se transmite é de que o marketing salvacionista, escorado no pretexto de manutenção das raízes históricas da vila, vale mais que soluções efetivas que também não colocariam o acervo em risco.
De fato, apenas Ribeirão Pires, integralmente tomada pela Lei de Proteção aos Mananciais, finalmente movimenta-se para traduzir em recursos financeiros o que sobra de recursos naturais. Organiza-se para incrementar o turismo, mas o ritmo das transformações é quase artesanal, dada a falta de dinheiro.
É também de dinheiro que depende São Bernardo para recuperar o glamour intelectual sufocado pela imagem de operariado vanguardista. O símbolo a ser resgatado tem a marca da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Um consórcio entre a própria Prefeitura, o governo do Estado e a livre-iniciativa foi anunciado há mais de um ano como resposta à recuperação desse espaço cultural. O problema é que os recursos financeiros têm entrado a conta-gotas.
Embora diretamente não tenha peso expressivo à economia do Grande ABC, o chamado Projeto Nova Vera Cruz muito contribuiria para recuperar parte da imagem de atratividade regional. Uma tarefa nada simples. Apesar de todos os aspectos positivos de conquista de autoestima e bens materiais da classe operária, além de ter acelerado a distensão política nacional, o movimento sindical da região consolidou imagem de truculência que só o peso de cérebros criativos poderia arrefecer. À Vera Cruz estaria reservada grande parte dessa ação.
O descompasso entre o poderio econômico e a representatividade política é um transtorno para o Grande ABC encurtar a distância rumo a futuro menos intrigante. Embora se faça muito marketing sobre as bancadas da região na Assembléia Legislativa e na Câmara Federal, a realidade nua e crua é torturante. Entre os 94 deputados estaduais, a região conta com apenas sete. E dos 513 deputados federais, inscrevemos apenas três em Brasília.
Senador, ministro de Estado ou uma eminência parda de bastidores, mesmo que não tão parda quanto outras que todos conhecem, é ilusão. Sonhar com um ACM é exigir demais, porque o senador baiano é, independente de juízo de valor, resultado de estrutura político-institucional que despreza o princípio democrático de um-eleitor-um-voto.
A distribuição de cadeiras na Câmara Federal é um Quasimodo institucional que penaliza sobremaneira o Estado de São Paulo, detentor de 40% do PIB nacional, mas que se resume a apenas 70 deputados. Se os paulistas já não têm lá peso político, o que dizer do Grande ABC com três míseras vagas? Qualquer Estado do Norte/Nordeste vale muito mais que a região, detentora de colégio eleitoral de 1,5 milhão de votantes.
Sacrificado politicamente no altar de demagogia do regime militar, que contrabalançou a força econômica do Sul/Sudeste com a proteção política do Norte/Nordeste, construindo-se um Frankenstein de repercussões socioeconômicas avassaladoras, o Grande ABC depende de ações pontuais de empreendedores e sindicalistas para mudanças tópicas na esfera federal. Sem exagero, vale muito mais um executivo de montadora de veículos ou um sindicalista local do que um deputado federal eleito na região. Mas isso é muito pouco ao considerar que os problemas do Grande ABC são imensos e exigem políticas públicas intercomplementares de influência estadual e federal.
Sem tônus político, o Grande ABC notabiliza-se mesmo pelo poder corporativo absolutamente inserido no contexto histórico do País desde a colonização dos portugueses. Daí o sucesso do sindicalismo incrustado nas montadoras de veículos e nas principais indústrias de autopeças. O significado de cidadania passa longe da região, mas não decorre exclusivamente do sentimento de corporação dos trabalhadores que em quatro décadas ocuparam o principal parque industrial da América Latina.
A ocupação demográfica do Grande ABC é uma explicação mais justa. Depois da chegada de levas de imigrantes portugueses, espanhóis e italianos, principalmente, nas primeiras décadas deste século, desembarcaram os migrantes do Norte/Nordeste para ocupar vagas na indústria automotiva que se instalou a partir de meados dos anos 1950.
Entre os imigrantes europeus e os migrantes nortistas e nordestinos existiu a sintonia fina de superar o passado de dificuldades e garantir um futuro mais digno. Nesse ponto a região foi pródiga, porque não faltaram oportunidades para a conquista de bens materiais. Cada trabalhador ou pequeno empreendedor que chegou, viu e apostou no Grande ABC tratou de concretizar o sonho de construir o futuro familiar. As relações comunitárias, por isso mesmo, foram relegadas a segundo plano.
Os anos mais recentes de esvaziamento econômico transformaram o Grande ABC num barril de pólvora social. A periferia incha e invade as águas supostamente sagradas dos mananciais em proporções só semelhantes à explosão da criminalidade que torna Diadema recordista nacional, com 108 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes.
A síndrome de Gata Borralheira permanece e se exibe no complexo de periferia urbana e cultural da Capital tão próxima. Esse bloqueio psicológico se explica pela origem da ocupação industrial. Os trabalhadores construíram residências na região, enquanto os executivos preferiram a vida cosmopolita de São Paulo, onde centralizaram a administração dos empreendimentos.
Recentemente iniciou-se tendência de reversão dessa mão de direção diante da evidência de que administração e operação são atividades compulsoriamente próximas num mundo de alta competitividade.
A costura do tecido esgarçado da cidadania do Grande ABC não é obra para poucos anos, sobretudo porque a região vive momentos de espanto.
Tem-se a impressão de que o furacão da globalização ainda não foi corretamente interpretado e que há uma comunidade atônita, paralisada, esperando por espécie de passe de mágica capaz de subverter a ordem natural dos acontecimentos e retroceder no tempo, recolocando a região no patamar de tranquilidade econômica e social de que, queiram ou não, foi apeada pela mundialização dos negócios.
Como ilusionismo está em baixa, depois que inventaram um Mister M para estilhaçar a credibilidade dos homens de cartola e bengala, o melhor que o Grande ABC tem a fazer é botar a mão na massa. Os tempos de fastígio passaram mesmo. Agora é dureza, muita dureza.
SOS Santos para salvar Grande ABC
Nem guerra fiscal de outros Estados, nem qualidade de vida comprometida pela criminalidade crescente, nem mesmo a mão-de-obra mais cara do País. Os inimigos mais perversos do parque produtor do Grande ABC chamam-se Porto de Santos e logística de transporte deficiente, na avaliação do ex-capitão de indústria Itiro Hirano. Um dos cinco irmãos que ergueram o império Nakata, de Diadema, Itiro afirma ter crença fabulosa no potencial da região. Mas é insistente em dizer que as oportunidades para reconduzir o Grande ABC ao palco nobre da economia nacional estão em Santos, no Rodoanel e, em plano também prioritário, no destino do lixo industrial.
“Se dermos solução a esses problemas pontuais, não tenho dúvidas de que teremos a segunda onda de industrialização do ABC e quem foi embora vai voltar” — exagera esse falante e simpático filho de imigrantes japoneses, que rompeu o pacto de silêncio de quase um ano e meio com a Imprensa depois que a família, como a maioria de quem comandou autopeças no Brasil, curvou-se ao capital multinacional e passou a empresa às mãos da norte-americana Dana.
Hoje à frente de outra organização familiar, a FSN Participações, de São Bernardo, Itiro Hirano recorre às grandes cidades do mundo que estão dentro ou próximas de terminais marítimos para sustentar a tese de que Santos, como porta da rota exportadora, e o Rodoanel, para romper o gargalo viário metropolitano rumo ao mercado consumidor do País inteiro, são o passaporte do desenvolvimento regional. São até, na sua visão, fatores determinantes no processo de qualificação que a indústria automobilística promove nas fábricas locais.
“Precisamos tornar Santos mais competitivo e à altura de sua importância ao servir ao maior Produto Interno do País, o Estado de São Paulo, que produz 46% das riquezas brasileiras. Para o Grande ABC, contar com um terminal barato, eficiente e moderno é crucial” — opina Itiro Hirano. Como superporto, o maior da América Latina ao movimentar 38 milhões de toneladas no ano passado, Santos perde para estruturas menores como Sepetiba (RJ), Rio Grande (RS) e Paranaguá (PR). Mesmo privatizadas por meio de arrendamento dos terminais para particulares, as operações em Santos são consideradas caras — R$ 153 cada contêiner, para R$ 103 de Paranaguá, por exemplo –, além de uma das três mais perigosas do mundo em pirataria.
Itiro Hirano acha Santos estratégico. Reprova inclusive a comparação do Grande ABC com a outrora capital mundial do automóvel, Detroit, justamente devido ao diferencial marítimo. A posição geográfica do Grande ABC impediu que chegasse ao fundo do poço como Detroit, a seu ver, porque a cidade norte-americana está longe de um porto. “Desde os vickings, as grandes conquistas se dão pelo mar” — compara. “Não adianta produzir riquezas se não temos como escoar” — sustenta, ao atribuir igual importância ao anel viário de 162 quilômetros que circundará e ligará a Grande São Paulo a 10 rodovias paulistas e que se conectará na região ao sistema Anchieta-Imigrantes.
O destino do lixo industrial é o terceiro elo que deveria mobilizar Poderes Públicos para não quebrar a corrente de confiança de quem aposta no Grande ABC. Do alto de 63 anos de idade e rica vivência empresarial, Itiro Hirano considera até insulto aos empreendedores da região não dispor de locais adequados para o lixo, principalmente o de alta toxidade. “Sofri muito na Nakata. Tinha de embarcar todo meu resíduo para o Espírito Santo, onde o preço de US$ 400 a tonelada incinerada é simplesmente a metade do da região” — relata.
Dizendo-se adepto de receita que tempera a disciplina e humildade dos orientais com a criatividade e jogo de cintura dos brasileiros, Itiro cobra as autoridades do Grande ABC pela demora em criar uma coordenação entre Poderes Públicos e iniciativa privada, algo que só agora começa a ganhar forma com instâncias como Câmara Regional e Consórcio de Prefeitos. Faltou às prefeituras relação mais íntima com os empreendedores, sobretudo os de grande porte, que dão o tom dos negócios regionais, afirma. “Empresário é como alguém adoentado. É carente, quer carinho, quer apoio e atenção do Poder Público” — entrega Itiro.
“Muitas vezes os prefeitos se relacionaram otimamente com pequenas empresas, mas se mantiveram distantes dos planos das grandes. Só agora as prefeituras criaram secretarias de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. E o que precisamos é de secretários que entrem pela porta da cozinha, sem cerimônia, com parceria suficiente para dizer: preciso de 10 ambulâncias para a cidade. O que você está precisando? Quer que limpe a rua, desobstrua uma área, traga linha de ônibus para facilitar o acesso de seus funcionários? É uma barganha saudável, porque facilita a vida das empresas e tem reciprocidade com o Município” — ensina.
A ausência de relacionamento mais profundo com o parque produtor seria um dos motivos da evasão industrial. Segundo Itiro Hirano, o Grande ABC dormiu na cômoda posição de sediar o maior polo automotivo do País e somente acordou com o barulho do caminhão de mudança das grandes fábricas. “Só que as indústrias não cochilaram. Estiveram sempre acordadas para a redução de custos, para o cerco da concorrência externa. Como outras regiões e Estados não tinham um polo exuberante como o nosso, estavam sempre alertas para atrair empresas” — interpreta.
Itiro Hirano desaprova a guerra fiscal por comprometer orçamentos públicos, mas compreende a conduta dos governantes. Investimentos externos são desejados por qualquer localidade interessada em deixar a periferia do mundo.
O caso Ford-Bahia é, para ele, emblemático. Mesmo mais enxutas e menos empregadoras, as novas montadoras irradiam tecnologias mais avançadas e movimentam riquezas por arrastar autopeças, bancos, escolas, serviços, turismo e toda uma cadeia geradora de emprego e renda. Cita a mineirização promovida pela Fiat, a curitibação e agora a baianização automobilística. Acha, entretanto, que há munição para contra-atacar: “Já que optamos por não entrar na guerra fiscal, temos de sublinhar os itens sedutores: um porto no nosso quintal, a chegada de um anel viário de Primeiro Mundo para receber e escoar produção, a vizinhança com o maior centro consumidor do País, escolas de nível e a proximidade com outros polos paulistas de ponta, como Campinas e São Carlos” — cita.
Itiro Hirano acredita que a mão-de-obra cara, na maioria das vezes o dobro do custo de outras localidades produtoras, deve ser encarada no seu aspecto positivo: é também a mais especializada do País e se enfileira ao lado dos pontos sedutores do Grande ABC, supõe. Segundo ele, a evasão industrial deve-se menos ao custo trabalhista e mais à guerra fiscal milionária de outros Estados, que inclui terrenos e infraestrutura gratuitos.
O adensamento urbano das cidades cosmopolitas não tira o sono de Itiro Hirano. A escala de valores que mede a qualidade de vida tão festejada neste fim de milênio só falha na região, a seu ver, na questão da violência. Ele não acredita que se viva bem no Interior ou em cidades pequenas apenas devido à menor incidência da criminalidade e que isso tenha sido um dos pontos decisivos para a fuga do Grande ABC.
“Cidades como Londres, Paris e Tóquio passaram pelo caos no trânsito, pela periferização e por ondas de violência. Esses problemas estão acentuados no Brasil porque as grandes cidades crescem em moradores e em frota de veículos, algo que outras metrópoles mundiais já vivenciaram e só melhorou porque a população na Europa, por exemplo, parou de crescer”. De resto, na sua visão, é nas metrópoles que se tem melhor oportunidade de emprego e salário, mais equipamentos urbanos, de lazer e culturais, além de maior disponibilidade de bens de consumo.
Filho de imigrantes japoneses que lavraram terras no Paraná quando chegaram ao Brasil, Itiro Hirano acha até interessante para o País a descentralização industrial, como meio de espalhar melhor o emprego e a renda. A globalização econômica, para ele, era processo inevitável. Derrubou mais intensamente empresas brasileiras, em particular as autopeças, porque não vislumbraram o alcance do fenômeno e não se prepararam, interpreta.
Enquanto as multinacionais — precursoras da economia sem fronteiras — há décadas davam o tom de novos processos de gestão e produção, o Brasil continuou acalentando o sonho do Estado grande com a estatização e cercando o território para organizações domésticas tipicamente familiares, porém desatualizadas. O mercado fechado, assim, teve mais aspectos negativos do que a aparente defesa dos interesses nacionais, a seu ver.
“Alguns brasileiros mais atentos farejaram o crescimento e o agrupamento de empresas em corporações, que não é coisa de agora. Há muito tempo as fusões ocorrem lá fora. Quando se olha para Sony, Toshiba e Honda, vê-se que foram famílias que se anteciparam ao jogo global e profissionalizaram as estruturas. Fomos pegos de calças curtas porque não nos preparamos, porque nosso mercado estava fechado. Não escapou ninguém. As grandes autopeças tiveram de se associar às gigantes internacionais e as pequenas de estrutura familiar foram simplesmente engolidas pela absorção do controle acionário por quem detinha mais capital e mais tecnologia. A Nakata só sobreviveria dessa forma” — expõe Itiro, que se mantém fiel ao pacto de silêncio entre os irmãos e não revela valores de negócios.
Especula-se que pelas três fábricas da região e uma em Buenos Aires, responsáveis por 65% do mercado de peças para suspensão e 15% do de amortecedores, a Dana tenha tirado do bolso R$ 40 milhões pela Nakata.
O capital estrangeiro domina hoje 70% do setor, segundo últimos levantamentos do Sindipeças. Itiro divide a responsabilidade da invasão entre o despreparo do empresariado brasileiro e o governo, que abriu o mercado de forma violenta ao jogar as alíquotas de importação do setor para 2% e impedir um período de transição.
Antes disso, também o governo foi culpado pela não consolidação do Brasil como um centro de desenvolvimento de veículos, reduzido a importador de modelos concebidos nas matrizes automotivas. Faltou apoio à pesquisa interna, diz Itiro, e só recursos públicos para empresas brasileiras fariam frente aos maciços investimentos das multinacionais. Foi por falta de apoio oficial que não vingaram os projetos de veículos nacionais da Gurgel e Agrale, cita.
Também pesou, na sua opinião, a visão equivocada do governo de encarar o Brasil sempre como potência agrícola, relegando a industrialização a plano secundário durante anos estratégicos.
Itiro Hirano concorda, porém, que, não fosse por uma política de choque na abertura comercial, o empresário brasileiro não se mexeria. “Continuaríamos a ser sem vergonha, sem dar valor para o mercado interno, para o trabalhador e para o produto feito aqui” — dispara.
O ex-comandante da Nakata já praticava a retórica da modernização com sua bandeira de investir no funcionário como parceiro. Desde 1968 em Diadema, dentro da arena do movimento sindical mais combativo do País, a autopeça nunca enfrentou greves porque exercitou o diálogo e valorizou funcionários com cursos e capacitação.
Em 1994, quatro anos antes de ser absorvida pela Dana, a família concentrou-se no Conselho de Administração e os cargos de comando passaram para executivos profissionais. Com a globalização nos calcanhares, o objetivo era tornar a Nakata palatável, nas palavras de Itiro, a um sócio ou novo dono sem que a empresa e quadro de 1,3 mil funcionários sofressem danos.
Até agora não há notícias de dança de cadeiras. Sucumbiu, entretanto, o cinematográfico jardim oriental com espécies raras de Bonsai cultivadas por jardineiro exclusivo. Itiro Hirano conseguiu salvar as aves e outros animais que criava soltos na imensa área verde, doando-os para o minizôo de São Bernardo.
O alto preço do desemprego pago à nova ordem econômica mundial, com enxugamento de estruturas físicas e de vagas, poderia ter sido amenizado, segundo Itiro, se o País tivesse preparado um colchão de serviços públicos e a modernização do setor terciário para absorver a exclusão da massa de trabalhadores das indústrias.
Também pesou no cenário recorde de desemprego no Grande ABC o baixo índice de escolaridade da população adulta cortada das fábricas. “Bons empregos continuam a existir. Não temos tanta gente capacitada para assumi-los” — constata o empreendedor, para quem o governo também falhou na demora dos programas de reciclagem e requalificação para ocupações que exigem menos capacidade intelectual.
Itiro Hirano afirma que as autopeças que não interessaram ao capital multinacional para serem players como sistemistas ou subsistemistas — que trabalham direta ou indiretamente nas montadoras — terão de se contentar em compor o baixo clero, como fornecedoras das fornecedoras ou do mercado de reposição. Itiro não despreza esses nichos e avisa que também são exigentes na qualidade e pontualidade. Há estudos que indicam que o mercado de reposição brasileiro é o segundo maior do mundo, só perdendo para o México.
Aliás, para fabricantes de peças isoladas que não estão no quintal das automotivas ele recomenda a mesma profissionalização e modernidade de processos: investir em pesquisa, quebrar paradigmas, inovar, motivar o funcionário como equipamento mais importante da empresa e não ter qualquer preconceito ao capital estrangeiro. “A mentalidade deve ser globalizada entre grandes e pequenos empreendedores, entre funcionários do chão de fábrica e de cargos de gerência” — ensina, ao dizer que não são salários fabulosos que medem a valorização de uma empresa à equipe, mas as oportunidades de reciclagem, qualificação e ascensão profissional que cimentem a empregabilidade dos trabalhadores. Isto é, deixá-los sempre preparados para o mercado, algo cultivado na Nakata desde a fundação em 1952, ao desenvolver planos internos de carreira.
Já para as sistemistas, que somam de 20 a 30 nomes em âmbito mundial, Itiro vislumbra grande poder de barganha. A concentração de fornecedores em reduzido número os tornará capazes de virar o jogo onde até agora as montadoras reinaram absolutas ditando regras e preços. “Para se vender, é preciso ter produto bom, barato e poder de comercialização. E poder na sua essência: como fornecedoras globais, dificilmente as montadoras deixarão de comprar. Os sistemistas, escreva aí, vão acabar dando as cartas” — profetiza Itiro Hirano, que fez fama pelas brigas por melhores preços junto às automobilísticas.
Recolhido aos afazeres mais amenos da FSN, que empresta o nome dos patriarcas e fundadores da Nakata, Fukuichi e Sue, Itiro diz que ainda não colocou a leitura em dia, sobretudo de clássicos da história e da geografia mundial que aprecia. A filha Cláudia, de 29 anos, é seu braço de apoio na empresa de participações e o filho Oston, de 27, toca os negócios de consultoria financeira instalados em São Paulo.
Uma casa recentemente adquirida em Campos do Jordão ajuda a descarregar energias acumuladas. Também a neta única, Mariana, de cinco anos, ocupa os momentos de entretenimento. Itiro Hirano não tem em mente desafios como o do colega Abraham Kasinski, ex-big boss da Cofap que recomeça a vida empresarial com uma fábrica de motocicletas. Planeja algo menos exigente, como transmitir sua experiência em palestras a associações de jovens empresários ou pequenos empreendedores familiares.
Paraná ultrapassa fase de test-drive
Sede do segundo maior polo automotivo brasileiro, concentrado em municípios que formam a Região Metropolitana de Curitiba, o novo-rico Paraná está em fase de test-drive. O veículo zero quilômetro que sai de sofisticada linha de montagem tem qualidade, motorização, dirigibilidade, segurança, conforto e design de Primeiro Mundo. Por ainda não sofrer desgaste causado naturalmente pelo uso e pelo tempo, que corrói engrenagens, desajusta parafusos e reduz potência, o carrão Paraná deslancha na estrada. O motorista, deslumbrado, se empolga com a promessa de longa viagem, que inclui o sonho de o Estado tornar-se a segunda economia brasileira até 2015. Por enquanto, tudo bem. Mas, como máquinas não duram para sempre…
Acomodado em seu berço esplêndido na cidade modelo de urbanismo dos anos 70, Capital ecológica e vitrine do Brasil para o Primeiro Mundo nos anos 90, o curitibano está esfuziante e apreensivo. Festeja, como um nordestino que dança para a chuva, o novo parque automotivo que já atraiu três montadoras (Renault, Volkswagen/Audi e Chrysler), 38 empresas de autopeças, investimentos de US$ 4,3 bilhões e vai gerar quase nove mil empregos diretos e 42 mil indiretos. Protagonista de mudança que chega no fim do século para industrializar um Estado notabilizado pela produção agrícola e geração de energia, o curitibano está assombrado pela incerteza. Teme que, ao fim da festa, trombe com algo parecido com um novo Grande ABC, por ora o maior polo da indústria automotiva brasileira, onde a qualidade de vida enferrujou e precisa ser reinventada.
Plantador de 40% dos grãos colhidos no País e maior gerador brasileiro de energia, o Paraná contribui com 6,44% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional e prevê que, até 2002, substitua o Rio Grande do Sul no posto de quarta economia do País. Deu grande salto no ano passado, quando o PIB apresentou resultado 17 vezes maior que o desempenho do Brasil: 2,54% (R$ 58 bilhões) contra apenas 0,15% (R$ 901 bilhões). Em 1998, o Estado exportou US$ 4,12 bilhões, equivalentes a 8% do total obtido em divisas pelo Brasil (R$ 51,12 bilhões). Os portos de Paranaguá e Antonina passam por amplo processo de modernização e movimentaram 20,13 milhões de toneladas. Recorde histórico, com aumento de 14,2% no transporte e armazenagem de contêineres.
A projeção do governo estadual para este ano é de que o PIB paranaense deva crescer 2,5%, contra retração de 1% na economia brasileira. O Paraná recebe investimentos que somam US$ 28 bilhões, dos quais US$ 16 bilhões no setor industrial e US$ 12 bilhões em infraestrutura. Para atraí-los, criou nos últimos quatro anos empresas como a Paraná Investimentos, a Paraná Desenvolvimento e a Agência de Fomento. Apostou fortemente na modernização da infraestrutura ao recuperar e privatizar 2,3 mil quilômetros de estradas, além de grandes avanços nas telecomunicações e na localização estratégica no Mercosul, pois faz divisa com Argentina e Paraguai e tem acesso fácil para o Uruguai. É uma transformação e tanto para um Estado que até pouco tempo se limitava a cuidar bem dos pinheirais e das roças de soja, café e erva-mate.
Engana-se, porém, quem imagina que a industrialização do Paraná se restrinja à criação do segundo maior polo automotivo do País. No Norte do Estado estão se instalando indústrias de plásticos; no Sudoeste, um polo de eletroeletrônicos; no Sudeste, grandes frigoríficos. O crescimento é impulsionado também pela capitalização do agronegócio, com o complexo madeireiro e papeleiro e, com participação expressiva, pela construção civil.
Em março deste ano o Paraná inaugurou a hidrelétrica de Salto Caxias, orçada em US$ 1 bilhão. Com isso, aumentou em 40% a capacidade instalada de produção de energia. Cooperativas agrícolas, que investiram R$ 135 milhões no biênio 1997/98, prometem para este ano injetar recursos superiores em 52,2% (R$ 206 milhões). A CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) já iniciou entendimentos com o governo estadual para instalar unidade entre Curitiba e o Porto de Paranaguá. Nos primeiros quatro meses de 1999 o Estado possuía 160.770 empresas — 24.543 instaladas em 1998 (mais da metade de comércio varejista), 73.588 criadas nos últimos quatro anos e 74% inscritas no Simples, por serem pequenos e microempreendimentos.
Efeito Grande ABC
Apesar de o governador Jayme Lerner, político-urbanista que criou o mito Curitiba, tratar com desdém qualquer especulação de que a crescente industrialização possa provocar prejuízo à qualidade de vida do Paraná, faz sentido o temor que manifesta o cidadão comum da Capital do Estado. Ele lê em jornais e revistas, e assiste nos telejornais, notícias sobre o caos em que se transformou a Grande São Paulo. Atingida pela explosão demográfica — quando a indústria, principalmente a automotiva, demandava mão-de-obra intensiva — a Região Metropolitana padece agora da falta de emprego, gerada pela automação dos processos industriais e exigência de maior capacitação profissional dos poucos desempregados que ainda têm alguma possibilidade de um dia voltar ao chão de fábrica.
O morador de Curitiba testemunha, na rotina diária, a migração crescente e ainda não catalogada oficialmente de brasileiros de outras regiões do País. Chegam atraídos tanto pela propagada qualidade de vida da cidade quanto pela riqueza e pelos empregos gerados principalmente no segundo maior polo da indústria automotiva brasileira. É óbvio supor que a ideia de morar na Região Metropolitana de Curitiba já tenha passado pela cabeça de milhares de desempregados da indústria automotiva do Grande ABC. Muitos devem ter feito isso. O anúncio da riqueza econômica e da qualidade de vida do Paraná é prato cheio para atrair todo tipo de gente; dos executivos que almejam menos desperdício de tempo com o caos urbano aos desesperados que não têm mais nada a perder e se lançam em qualquer tipo de aventura pela sobrevivência.
Jayme Lerner tem discurso de script decorado, que repete toda vez que está diante de platéia de profissionais capacitados (geralmente executivos de grandes e médias empresas), na tentativa de atraí-los para a Grande Curitiba: “Um cidadão que mora em São Paulo perde cerca de três horas por dia nos congestionamentos de trânsito em regiões como a Marginal do Tietê, no deslocamento de casa para o trabalho. Se viver até os 72 anos de idade, que é a média de vida do brasileiro bem nutrido, basta fazer a conta para perceber que perderá sete anos inutilmente, respirando poluição dos automóveis e acumulando estresse”. Ao pintar esse quadro, o governador enfatiza que nem de longe o Paraná avista o Grande ABC pelo retrovisor do carrão que deslancha na estrada.
Curitiba tem aproximadamente 1,5 milhão de habitantes. O crescimento populacional é fora do comum para uma cidade que contava com 400 mil moradores em 1965, quando iniciou o projeto de Plano Diretor, e 600 mil na década de 70, quando começou a executar o plano. É na Capital do Paraná que se concentram mais de dois terços da população da Região Metropolitana, calculada em torno de 2,5 milhões de habitantes — um Grande ABC.
Em todas as cidades vizinhas o crescimento populacional bate recordes e é incentivado pelas prefeituras. São José dos Pinhais, que abriga as fábricas da Volkswagen/Audi e Renault, registra nos últimos anos crescimento demográfico em torno de 7%, contra a média brasileira de 1,5%. Na pequena Bocaiúva do Sul, que tem menos de 10 mil habitantes, o prefeito Elcio Berti entrou para o folclore. Para aumentar a população, tentou proibir a venda de anticoncepcionais femininos e agora quer impedir a distribuição e venda da pílula anticoncepcional do homem.
Político de estilo intelectual e sedutor, que sabe explorar sutilezas em palavras e imagens, Jayme Lerner não acredita que a Região Metropolitana de Curitiba venha a se transformar num novo Grande ABC. O governador argumenta que o modelo de indústria automotiva globalizada que se instalou no Paraná, que emprega pouca gente e exige capacitação profissional com formação mínima no Ensino Médio, afugenta aventureiros. “Prevalece hoje no País espécie de visão trágica das coisas; estão sempre esperando que aconteça o pior. Não gosto de tragédias. Emprego minhas energias para mudar tendências não desejáveis” — afirma o governador. “O que faz a diferença a favor do Paraná é infraestrutura e qualidade da mão-de-obra. Estamos direcionando investimentos para regiões estratégicas do Estado, para evitar concentrações como as que ocorreram no Grande ABC”.
Jonel Chede, presidente da Associação Comercial do Paraná, reforça o discurso de Jayme Lerner. “O polo automotivo que está nascendo na Região Metropolitana de Curitiba é qualitativo, diferente do polo quantitativo que existe no Grande ABC. O Paraná está se inserindo numa nova fase da economia globalizada. O Grande ABC tenta se transformar, porque seu modelo industrial se esgotou. Estamos atraindo unicamente profissionais capacitados, a chamada elite. Trabalhador sem capacitação que vier para o Paraná terá de ir embora depressa, porque não encontrará emprego” — acredita.
Jonel Chede fala com conhecimento de causa. Entre 1959 e 1960, quando trabalhava em indústria química de São Paulo — e o Grande ABC recebia os primeiros fluxos migratórios atraídos pela indústria automotiva –, várias vezes visitou empresas de São Caetano e viu de perto a transformação que começava a se processar no maior polo da indústria automotiva brasileira.
O cearense Generino de Oliveira, garçon do Hotel San Martin, no Centro de Curitiba, é um dos homens simples que estão apreensivos com o fluxo migratório. Morador na Capital do Paraná há quase 40 anos, depois de ter vivido período da juventude em Santo André na época em que existia a fábrica de tecidos Kowarick nas proximidades da Estação Ferroviária (transformada em supermercado da rede Pão de Açúcar), Generino de Oliveira diz que frequentemente depara nas ruas com gente do Grande ABC, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. “Basta dar uma caminhada pelo Centro de Curitiba para perceber que há muita gente chegando. Sem contar os estrangeiros trazidos pelas novas fábricas, porque é comum ouvir conversas em inglês, francês, alemão e espanhol” — diz o garçom. Generino acredita que a invasão de forasteiros só não é maior porque Curitiba tem clima frio e muitas chuvas, condições que arrefecem o espírito aventureiro.
O mito Curitiba
Aos olhos do visitante descompromissado, a Capital do Paraná faz jus a tudo o que se diz a respeito da qualidade de vida. O trânsito só congestiona um pouco nas primeiras horas da manhã, quando os moradores vão para o trabalho, e no fim da tarde, no retorno ao lar. O transporte coletivo tem aparência e conforto de Primeiro Mundo. É raro deparar com mendigos ou crianças abandonadas nas ruas. No calçadão do Centro da cidade — o primeiro boulevard do País, no qual se espelharam os de Santo André e Campinas — não há lojas fechadas ou outros sinais de decadência, e o comércio é típico de classe média.
Curitiba está entre as cidades brasileiras que mais valorizam o patrimônio artístico e cultural. Em que outra metrópole do País uma loja de CDs oferece poesia como brinde? Administrada três vezes pelo arquiteto Jayme Lerner (duas das quais durante a ditadura militar, época em que prefeitos das capitais eram nomeados), Curitiba utilizou habilmente intervenções urbanas para criar nos habitantes o orgulho de ser curitibano. Algo que o Grande ABC nunca soube fazer, e no qual Curitiba se especializou, é valorizar símbolos que criam raízes na comunidade. É o caso da antiga Estação Ferroviária, cujo prédio foi preservado externamente na estrutura original e que abriga moderno e supercolorido shopping center de diversão e lazer (o Shopping Estação, administrado pela iniciativa privada).
A Capital do Paraná tem vários símbolos do orgulho curitibano: Jardim Botânico, Ópera de Arame, Calçadão das Flores, Rua 24 Horas, Boca Maldita etc. Quais são os símbolos do orgulho do morador do Grande ABC?
Outra característica marcante da Capital do Paraná é a denominação que se dá a locais públicos. A sala onde o governador Jayme Lerner despacha no período da manhã, obra de arquitetura supermoderna no prédio da Copel (Companhia Paranaense de Eletricidade), é chamada Chapéu Pensador. Curitiba tem também a Rua da Cidadania e a Universidade Livre do Meio Ambiente, entre outras atrações que encantam os turistas que a visitam com frequência cada vez maior. “É certo que nossa economia está mudando, mas não vão mudar as nossas referências culturais, que constituem resíduo que não se desfaz, semeado com anos de trabalho de toda a comunidade” — observa o presidente da Associação Comercial, Jonel Chede.
O governador Jayme Lerner conta uma historinha que serve de exemplo de como Curitiba sabe construir e cultivar seu mito. “Era uma manhã e estava reunido com os franceses da Renault no Chapéu Pensador. Eles decidiam a instalação da fábrica no Paraná quando um colibri entrou pela janela e pousou na mesa. Os franceses ficaram maravilhados. Olhei para eles e disse: o Paraná é isso, qualidade de vida. Que tal chamar de Colibri o primeiro carro que vocês produzirem no Brasil?”.
Há quem defenda a tese de que Curitiba é a obra mais bem-sucedida do regime militar que se instalou no País em 1964, contrapondo-se a dívidas internacionais volumosas, aos fiascos da Transamazônica e da Ferrovia do Aço, por exemplo. Quando começou a se desenvolver na primeira gestão de Jayme Lerner, período em que recebeu polpudos investimentos federais para execução do Plano Diretor, o Paraná era governado pelo coronel de reserva Nei Braga, militar de fácil acesso e prestígio em todas as instâncias de Brasília. Recluso em sua casa, Nei Braga escreve um livro de memórias. No Paraná, o neísmo é uma facção política expressiva.
Capital da exclusão
Mas será que tudo é assim tão divino e maravilhoso nessa metrópole que respira ares europeus? A socióloga Maria Tarcisa da Silva Bega, coordenadora do grupo de estudos urbanos do Departamento de Estudos Sociais da Universidade Federal do Paraná, garante que não. E enfatiza que Curitiba também é hábil em esconder mazelas. “Para ter todas as qualidades que a transformaram numa cidade-modelo, Curitiba precisou se transformar, ao mesmo tempo, na Capital brasileira da exclusão social. A cidade esconde favelas na periferia e tem toda a área de mananciais ocupada por invasões” — dispara.
“A grande sacada de Jayme Lerner como prefeito foi ter captado com habilidade o anseio do homem médio. Tudo aqui no Paraná é novo. O Estado se emancipou politicamente de São Paulo em 1853. O projeto Curitiba deu certo porque se tornou o projeto de vida de seus habitantes de classe média. É coisa do inconsciente coletivo: o filho (Paraná) querendo superar o pai (São Paulo)” — argumenta a socióloga.
Maria Tarcisa da Silva Bega não descarta a possibilidade de a Região Metropolitana de Curitiba vir a enfrentar problemas sociais e estruturais até piores que os do Grande ABC. Tudo vai depender da forma como será controlado o inevitável fluxo migratório provocado pela industrialização. “Se a população aumentar ou até dobrar junto com melhoria das condições econômicas, não há problema; o espaço geográfico é amplo e comporta crescimento populacional. Mas se prevalecer o modelo brasileiro, que é o da Grande São Paulo, no qual o aumento da população atraída pela industrialização não é correspondido com incremento da economia, Curitiba poderá se transformar numa ilha de riqueza cercada de bolsões de miséria, o que influirá negativamente na qualidade de vida. O País vive situação tão crítica de desemprego que tenho medo de que os brasileiros pobres se transformem em kosovares, indesejados na sua própria terra” — analisa a professora da Universidade Federal do Paraná.
Trabalho realizado pelo Departamento de Estudos Sociais da universidade, apoiado em números do censo realizado em 1991 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), indica que Curitiba é proporcionalmente a Capital brasileira com menor concentração de famílias pobres (renda familiar igual ou inferior a dois salários mínimos). Apenas 12% dos habitantes da Capital do Paraná se incluem nessa categoria, contra 22% na cidade de São Paulo, 21% em Porto Alegre e 48% em Recife. De acordo com o estudo, Curitiba abriga 33,8% dos 62% de pobres que vivem na Região Metropolitana. Na Grande São Paulo, do total de pobres (63%), quase 60% vivem na cidade de São Paulo. Já na Grande Porto Alegre, onde os pobres constituem 43% da população total, 32,6% vivem na Capital do Rio Grande do Sul.
Repelir a pobreza faz parte do orgulho curitibano. A Capital do Paraná é uma das cidades mais policiadas do País. Chamados que denunciam invasões de terrenos ou suspeitas de presença de marginais em vias públicas são atendidos pela Polícia em poucos minutos, diz Maria Tarcisa da Silva Bega.
Os preços dos terrenos e residências são infinitamente mais caros em Curitiba do que no restante da Região Metropolitana. “O curitibano está culturalmente mobilizado para a importância de preservar a qualidade de vida a qualquer custo” — diz a socióloga. “Então ele faz a festa, porque sabe que quem vai enfrentar problemas com fluxo migratório atraído pelas indústrias automotivas são as cidades satélites.
Curitiba fica com o melhor da história, os executivos e ocupantes de altos cargos das empresas, que vêm morar e gastar na cidade. Os vizinhos que se virem com a pobreza”.
Arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal do Paraná, Fernanda Ester Sánches Garcia escreve no seu livro Cidade Espetáculo — Política, Planejamento e City Marketing, de 1998: “A migração à procura de emprego já se apresenta em ritmo intensificado (…) promovida pela propaganda oficial. Segundo a Fundação de Ação Social, chegam pela rodoferroviária de Curitiba mais de dois mil migrantes por mês. Numa política que, ao nosso ver, tem viés perverso, a Prefeitura Municipal, uma das responsáveis por esse marketing territorial motivador da vinda de trabalhadores, paga-lhes, em muitos casos, a passagem de volta para seus municípios de origem”.
O que é narrado no livro aconteceu a centenas dos 3,5 mil operários da construção civil que ergueram a fábrica da Volkswagen/Audi em São José dos Pinhais. Vindos principalmente do interior do Nordeste, eles procuraram a Prefeitura de Curitiba para obter dinheiro para a passagem de volta. A maioria, contudo, permanece no Paraná e torce para que o fluxo migratório abra novas frentes de trabalho.
Senhor da guerra
É fundamental reconhecer que a qualidade de vida de Curitiba foi apenas um detalhe — positivo, obviamente — na atração dos investimentos de US$ 4,3 bilhões que geraram o segundo maior polo automotivo do País. Boa para os trabalhadores que desfrutam de vida melhor e ficam motivados a produzir mais, a qualidade de vida de Curitiba de nada teria valido se o Paraná não se dispusesse a enfrentar e vencer acirrada guerra fiscal que transformou fábricas em objetos de leilões entre as unidades da Federação. O Estado investiu pesado em infraestrutura e saiu-se como o senhor de uma guerra que até o Grande ABC — cercado de problemas estruturais por todos os lados — desejou disputar. No caso da vinda da francesa Renault, carro-chefe do polo automotivo, o Paraná exagerou e entrou de sócio no negócio, com participação de US$ 250 milhões numa fábrica que custou US$ 1 bilhão.
As montadoras que se instalaram na Região Metropolitana de Curitiba ganharam os terrenos onde estão erguidas as fábricas e, entre outras vantagens, se beneficiam do programa de incentivos fiscais criado pelo governo em 1996, que retarda por 48 meses, parcial ou totalmente, o recolhimento do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Renault, Volkswagen/Audi e Chrysler só começam a recolher o imposto dentro de quatro anos. Como fazem automóveis, produtos que não tinham similares no Paraná, gozam do direito de poder retardar totalmente as parcelas devidas. O governador Jayme Lerner garante que o Estado não perde nada com isso. “Deixamos de recolher o ICMS por 48 meses, é verdade, mas as montadoras geram impostos em atividades paralelas que farão o Paraná crescer do mesmo jeito. Concedemos o benefício porque também levamos vantagem” — analisa.
Outra arma poderosa do Paraná para atrair as montadoras foi a coesão entre governo, entidades empresariais e universidades. Junto com doações de terrenos e benefícios fiscais, as automobilísticas podem contar com um dos centros de treinamento mais modernos do mundo mantido pelo Senai — instalado no prédio da Fiep (Federação das Indústrias do Estado do Paraná). Jovens obrigatoriamente formados no Ensino Médio aprendem ofícios em minúsculas linhas de montagem doadas pelas próprias montadoras, que investiram US$ 100 milhões.
Milhares de jovens que estão nas fábricas da Renault, Volkswagen/Audi e Chrysler passaram por esse centro, frequentemente visitado por executivos de montadoras instaladas em outras regiões do País, inclusive Grande ABC. “Somos o único Estado do Brasil onde a Federação das Indústrias montou um centro de treinamento automotivo. Nosso Senai é o único que possui certificação ISO” — diz José Carlos Gomes Carvalho, presidente da Fiep.
A Universidade Federal do Paraná criou curso de pós-graduação de Especialização em Indústria Automotiva, com 392 horas de duração em 11 meses e mais três meses de prazo para apresentação de monografia. As aulas são ministradas por engenheiros das montadoras já instaladas no Estado e têm o complemento de palestras feitas por profissionais de montadoras de outras regiões do País, como General Motors, Ford e Fiat. Ao custo total de R$ 3 mil, o curso é pago geralmente pelas indústrias, a título de bolsa concedida a profissionais de primeira linha que se interessam em ampliar conhecimentos, com vistas a futuros saltos na carreira profissional.
Primeiro Mundo
A desvalorização do real, que encarece a importação e torna o produto brasileiro mais competitivo no mercado internacional, é o impulso que faltava para o polo automotivo do Paraná atrair mais investimentos e acelerar a nacionalização de produtos. Diferente do polo automotivo do Grande ABC, que nos últimos anos desnacionalizou grande quantidade do fornecimento e produz veículos quase que exclusivamente para o mercado interno e países do Terceiro Mundo, o da Grande Curitiba já fabrica e vai exportar para o Primeiro Mundo automóveis e utilitários mundiais do porte e da excelência do Audi, Golf, Scénic, Clio 2 (a partir de outubro) e Dakota. Não só veículos seguirão em navios e voos charters, mas também motores, chassis e outros tipos de autopeças fabricados por fornecedores globais.
Está em curso uma operação conjunta das montadoras com governo do Estado e entidades empresariais para promover fusões e joint-ventures de fabricantes internacionais de autopeças com indústrias do Paraná. A Volkswagen/Audi cuida dos contatos na Alemanha. Renault e Chrysler realizam missão idêntica em seus países de origem: França e Estados Unidos. Governo e entidades como a Fiep e Sindimetal (Sindicato das Indústrias Metalúrgicas do Paraná) intermedeiam negociações com empresas brasileiras interessadas em se globalizar, oferecendo benefícios fiscais. A operação pode ganhar mais amplitude se for levada adiante proposta de o Paraná criar certificação de qualidade para o setor automotivo nos moldes da QS 9000, desenvolvida nos Estados Unidos por General Motors, Ford e Chrysler. “Já estamos desenvolvendo estudos para criar a certificação” — diz Élcio Rimi, presidente do Sindimetal.
O pontapé inicial dessa operação foi dado pela francesa Renault, que produz o Scénic com índice de 50% de nacionalização e quer atingir 80% até outubro, quando lança o Clio 2. Preocupada com o custo elevado da importação de autopeças — e também vislumbrando lucro com exportação, inclusive para abastecer as concorrentes Peugeot e Citröen –, a montadora lançou em abril pedra fundamental de uma fábrica de motores que custará US$ 120 milhões e produzirá 250 mil unidades/ano a partir de janeiro de 2000.
A nova planta, anexa à fábrica de automóveis no Complexo Ayrton Senna, em São José dos Pinhais, vai gerar 400 empregos diretos e receberá peças e componentes de 60 fornecedores (21 já instalados na Grande Curitiba). Na fase inicial, peças usinadas como cabeçotes, blocos e virabrequins virão das unidades da Renault na França e Espanha. Mas o presidente da montadora para o Mercosul, Luc-Alexandre Ménard, garante que a meta é nacionalizar o mais rápido possível, porque a Renault quer exportar metade da produção. “A desvalorização do real torna os produtos brasileiros competitivos em qualquer lugar do mundo” — afirma o executivo.
Também a convite da Renault, o Paraná conquistou recentemente a primeira filial da francesa SNR Roulements fora da Europa. Fabricante de rolamentos, a empresa promete investir US$ 25 milhões e gerar 75 empregos diretos em Fazenda Rio Grande, Município da Grande Curitiba. Fundada em 1946, a SNR conta com cinco unidades de produção na França, é um dos 10 maiores grupos mundiais no segmento e teve faturamento global de US$ 480 milhões no ano passado. Na Europa, a empresa também fornece para Audi, Citröen, Fiat, Mercedes-Benz, Opel, Peugeot, Rover e Volkswagen.
Apoio ao fornecedor
Com meta de chegar a 200 carros/dia até o fim do ano, a Volkswagen/Audi também se movimenta no sentido de nacionalizar ao máximo peças e componentes, já que o índice atual está em torno de 50%. Nikolaus Feil, presidente da Audi do Brasil e diretor da fábrica de São José dos Pinhais, anunciou em abril investimento de US$ 100 milhões em nova unidade de estamparia.
A montadora quer resolver dois problemas imediatos: custo elevado da importação e prejuízo causado por estragos nas peças durante o transporte em contêineres. Nikolaus Feil avisa, porém, que há espaço para mais autopeças, inclusive de estamparia. “Temos 13 fornecedores instalados no parque industrial de São José dos Pinhais, mas queremos mais. Estamos dispostos a dar todo apoio a quem quiser se juntar a nós” — promete.
Primeira montadora a se instalar no Paraná, há 21 anos, na Cidade Industrial de Curitiba, a sueca Volvo considera que a criação do segundo maior polo automotivo do País foi mais do que providencial. Dependente durante anos de fornecedores fixados na maioria em São Paulo — principalmente no Grande ABC –, a fabricante de caminhões pesados iniciou negociações para se beneficiar das autopeças que construíram unidades no Paraná para abastecer Volkswagen/Audi, Renault e Chrysler. Em contrapartida, a Volvo já conseguiu levar para o Estado 32 fornecedores globais da marca, presente em 100 países. Todos estão animados com a demanda criada pelas montadoras de automóveis. “Fomos os pioneiros e agora vamos nos beneficiar com o aumento do parque industrial” — diz Ulf Selvin, presidente da Volvo.
Mas não são apenas as montadoras que atraem fornecedores para o polo do Paraná. São exemplares os casos da Detroit, fabricante de motores diesel, ex-subsidiária da General Motors, e da Dana, que faz a entrega do chassi completo, como fornecedoras da Chrysler. A Detroit só decidiu se instalar na Grande Curitiba porque seu principal fornecedor, a Robert Bosch, também integra o polo do Paraná. “Fomos convidados pela Chrysler, mas a presença da Bosch foi decisiva” — diz Marc Forest, presidente da Detroit. A Dana, por sua vez, compra de 62 fornecedores globais — alguns do Exterior, pagos em dólar — e tem interesse em levar a maioria para o Paraná. “Dividimos riscos com as montadoras porque ativos milionários precisam ser reduzidos” — afirma Paulo Nunes, diretor da companhia.
Novos modelos
O polo automotivo do Paraná tem para o morador do Grande ABC o efeito da visão de um sonho que realiza a perfeita simbiose da natureza com a máquina. Do lado de fora das fábricas, instaladas em grandes áreas territoriais, observam-se fileiras de pinheirais, propriedades rurais, estradas e avenidas largas, edifícios ao longe, horizonte a perder de vista.
Dentro das linhas de montagem existe o que há de mais moderno e avançado em tecnologia e automação. O ambiente de trabalho é tão claro e asséptico — e sem graxa — que torna possível uma indústria determinar que todos os operários devam vestir unicamente branco, como se fossem médicos. Funcionários espalham-se em imensos pavilhões e não parecem corresponder ao número de postos de trabalho anunciados oficialmente pelas montadoras. Até porque expressivo contingente de trabalhadores do polo automotivo do Paraná não é gente de carne e osso — são máquinas automatizadas em larga escala.
Nem bem iniciaram produção, Renault, Volkswagen/Audi e Chrysler já estudam a possibilidade de montar novos modelos de veículos na Grande Curitiba. Há expectativa de que a Renault venha a produzir carros da japonesa Nissan — com a qual se associou para tornar-se a quarta maior montadora do mundo, com participação de 9,1% no mercado global. Luc-Alexandre Ménard, presidente da montadora francesa, confirma que está prevista a criação de uma empresa que una as duas companhias na América do Sul. Na Volkswagen/Audi, há espaço para novos modelos na linha de montagem e o presidente Nikolaus Feil confirma estudos nesse sentido. O sedan médio Bora e o New Beetle (sucessor do velho Fusca), produzidos no México, têm grande possibilidade de ser introduzidos no Brasil pela fábrica de São José dos Pinhais.
Dennis Kelly, presidente da Chrysler do Brasil, não confirma nem descarta a possibilidade de a montadora vir a fabricar o jeep Grand Cherokee na planta de Campo Largo. “Nosso lema é produzir veículos que os consumidores queiram comprar e gostem de dirigir” — afirma o executivo. Das montadoras instaladas na Grande Curitiba, a Chrysler é a que emprega menos gente (400 funcionários) e a única que periodicamente interrompe a produção por causa da queda de vendas no Mercosul. A meta da empresa norte-americana é exportar 25% da produção da fábrica paranaense para mercados do Primeiro Mundo. Esse percentual é, justamente, o que indica a participação da Volvo no mercado latino-americano de caminhões pesados e ônibus. Mãe do polo automotivo do Paraná e séria pretendente à aquisição da Scania, a Volvo também tem planos para futuro breve: produzir caminhões médios.
Sindicalismo
De um problema o polo automotivo do Paraná está livre: o sindicalismo extremado, questão crucial para as montadoras instaladas no Grande ABC. Greve é palavra que não existe no vocabulário dos trabalhadores que acabam de ingressar nas linhas de montagem da Volkswagen/Audi, Renault e Chrysler. Na Volvo, que está há mais de duas décadas no Paraná, é proferida com muita reserva.
O momento do trabalhador, na Grande Curitiba, é de manter ou ampliar o campo do emprego. Comissão de fábrica existe só na Volvo, com atuação voltada para problemas trabalhistas e pouca influência na política estratégica da empresa. Na Volkswagen/Audi, Renault e Chrysler a discussão é sobre o banco de horas. O Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba, filiado à moderada Força Sindical, tenta sem sucesso instituir comissões de trabalhadores também nessas fábricas.
O sindicalismo do Paraná considerado mais radical é exercido pelos bancários, cuja categoria optou pela filiação à CUT (Central Única dos Trabalhadores). O sindicato dos metalúrgicos paranaense, apesar de receber elogios de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, presidente da CUT, que o considera combativo, não consegue se desvencilhar da imagem de que não possui poder político para influir nas decisões das montadoras.
Enquanto no Grande ABC toda negociação que envolve vinda, ampliação e reestruturação de empresas passa obrigatoriamente por diálogo e negociações com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na Grande Curitiba a representação dos trabalhadores não é chamada à mesa das decisões. Quando uma indústria do segmento demonstra interesse em se instalar no Paraná, a negociação é feita exclusivamente no âmbito institucional, com governo do Estado e Federação das Indústrias.
Sérgio Butka, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba, não quis dar entrevista. Sua assessoria informou que ele está com todas as horas tomadas por negociações com as novas montadoras que chegaram ao Paraná.
Guerra fiscal não seduz Campinas
Campinas ignora a guerra fiscal. Às novas empresas oferece o mínimo: isenção total do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) por três ou cinco anos. No primeiro caso, se for preciso apenas alugar o imóvel; no segundo, se o investidor tiver de construí-lo. O empreendimento também pode contar com isenção total do ISS (Imposto Sobre Serviços) que seria cobrado exclusivamente pela construção.
Para corporações multinacionais de grande porte, que mais se expõem a leilão na guerra fiscal, esses benefícios — se é que assim podem ser chamados — significam nada. Campinas não doa terreno porque não tem áreas públicas disponíveis, não faz terraplenagem e muito menos reduz ou dá desconto na sua participação no ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Mesmo assim, atraiu nos últimos três anos investimentos de US$ 1,2 bilhão, que geraram mais de 20 mil empregos diretos e indiretos. E está na mira de 13 novas empresas, entre as quais oito de telecomunicações e informática e três de autopeças.
O que faz essa cidade cuja macrorregião responde por 9% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro ser tão atrativa para novos investimentos é uma conjunção de qualidades. Da localização estratégica à infraestrutura, tudo é embalado por conhecimento, produto ainda raro no Brasil e pinçado como se fosse ouro no mundo globalizado. Campinas responde por quase 30% da produção científica e tecnológica brasileira e ganha até quando é derrotada na guerra fiscal. Três montadoras que chegaram a sondar o Município, mas acabaram se instalando na Grande Curitiba, no Paraná, têm no quadro de funcionários centenas de cérebros que se formaram na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). As automobilísticas do Grande ABC servem-se frequentemente de estudos e pesquisas elaborados pela fina flor da inteligência da Engenharia da universidade estadual.
Caso exemplar é o da norte-americana Dell Computer, uma das gigantes da informática. A empresa sondou Campinas para instalar unidade no Brasil. Venceu a guerra fiscal Alvorada, na Grande Porto Alegre, que ofereceu pacote de benefícios mais atraente. A cidade mais rica e populosa do Interior de São Paulo perdeu polpudo investimento, é verdade, mas a Dell Computer teve de se render e importou boa parte da mão-de-obra da Faculdade de Engenharia Elétrica da Unicamp. É assim que funciona o mundo globalizado, que não enxerga limites territoriais: quem detém conhecimento está presente em todos os lugares. Empresas de telecomunicações e informática instaladas no Brasil precisarão recorrer cada vez mais às pesquisas avançadas desenvolvidas em Campinas. Quem imaginaria que a riqueza que começou a ser acumulada no século passado pelos barões do café e da cana-de-açúcar daria salto tão qualitativo?
Contra a guerra
A história da Dell Computer é contada com pitada de ironia pelo secretário municipal de Cooperação Internacional, Manuel Carlos Cardoso. O nome da Pasta responsável pela atração de investimentos indica que a cidade está plenamente inserida no espírito da globalização. Do fundo do baú do secretário é possível extrair outra história curiosa e relevante — a da Detroit Diesel. Trata-se da fabricante de motores que também observou atentamente Campinas mas acabou seduzida pelos benefícios fiscais do Paraná, onde é fornecedora da Chrysler, instalada em Campo Largo. “Avisei que o clima quente e ameno de Campinas é melhor para a regulagem dos motores, mas eles optaram pela Grande Curitiba, onde o clima é frio e desfavorável, porque o governo bancou metade do investimento” — desabafa.
Manuel Cardoso é inimigo da guerra fiscal. Professa o conceito de que a comunidade não deve ceder para beneficiar empreendimentos; os empreendedores é que devem se integrar e beneficiar a comunidade. “Ouvi esse conceito do pessoal do consulado do Canadá, quando consultaram Campinas para instalação da filial brasileira da Nothern. Têm uma visão diferente. Não pediram incentivos fiscais” — afirma. Só em casos extremos como o do Vale do Ribeira, região mais pobre do Estado de São Paulo e da qual as empresas parecem querer distância, Manuel Cardoso é favorável à concessão de benefícios fiscais. “O governo deveria criar urgentemente vantagens fiscais para que empresas se instalem no Vale do Ribeira. Nesse caso faz sentido oferecer benefícios: é ação social importante que beneficia o Estado como um todo” — analisa.
O secretário está atento à transformação no ambiente de trabalho e diz que Campinas recusa investimento que provoque poluição. “Nossa região está se beneficiando de plantas novas e modernas, que possuem altíssimo índice de humanização. Hoje as fábricas se interessam em mostrar aos clientes que tratam bem os funcionários” — afirma. Manuel Cardoso cita como edificação supermoderna a fábrica da francesa Valeo, produtora de radiadores, que emprega tecnologia aeronáutica no vão de cinco mil metros quadrados de sua planta.
Universitários
Com renda per capita de US$ 9,8 mil, Campinas dissemina o conhecimento gerado por três universidades que abrigam mais de 40 mil estudantes de diversas partes do País. O contingente de universitários equivale a quase 5% da população total do Município, de 908 mil habitantes.
Reconhecida no Primeiro Mundo pela excelência de cursos, principalmente nas áreas de Engenharia e novas tecnologias, a estatal Unicamp tem 80% dos mais de dois mil professores com titulação mínima em doutorado. Citada em currículo, a universidade garante mão-de-obra altamente qualificada. A PucCamp (Pontifícia Universidade Católica de Campinas), mantida pela Igreja Católica, é outra gigante do ensino universitário no País e mantém um dos maiores hospitais-escola do Interior do Estado. Menor das três, a USF (Universidade São Francisco), que pertence à iniciativa privada, começa a despontar no cenário estadual. A cidade possui 407 escolas de Ensino Fundamental e Médio, 12 de Ensino Técnico e 102 bibliotecas. A cultura se expande por 15 museus, 13 teatros, 16 cinemas, quatro emissoras de televisão comercial e uma a cabo. A Orquestra Sinfônica de Campinas tem expressão internacional.
Sede de região metropolitana ainda não oficial, constituída por 22 municípios da região Sudoeste do Estado, Campinas abriga 13 centros de pesquisa que transferem novos produtos e conhecimentos para a iniciativa privada. O morador do Grande ABC que vai às feiras e hipermercados comprar alimentos precisa saber que praticamente todos os produtos agrícolas plantados e colhidos no País foram desenvolvidos ou melhorados no IAC (Instituto Agronômico de Campinas), que o imperador D. Pedro II fundou em 1887. O CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento), criado pela extinta Telebrás, é o maior em pesquisa de telecomunicações da América Latina. E há também o Laboratório Nacional de Luz Síncotron, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, único no Hemisfério Sul que desenvolveu fonte de luz síncotron para pesquisar, em níveis atômico e molecular, estruturas de materiais da natureza.
Campinas não é apenas formação de inteligência e pesquisa. Tanto quanto em qualquer outra região próspera, também põe a mão na massa. Terceiro maior polo industrial do País, com quase cinco mil estabelecimentos, entre os quais filiais de 50 das 500 maiores companhias mundiais, a Grande Campinas responde por 25% da produção química, 19% de máquinas e equipamentos, 27% da produção de couro, papel e papelão, 21% da produção têxtil e 17% da produção agroindustrial do Estado. Entre empresas comerciais e de serviços, são quase 35 mil estabelecimentos. A Grande Campinas é o primeiro polo brasileiro em mecanização agrícola e uso de sementes de alta qualidade — produz 25% da laranja colhida em São Paulo, 33% do café beneficiado, 28% do açúcar e 46% de aves para corte.
Metropolização
Um quarto dos investimentos realizados nos últimos anos no Estado de São Paulo, calculados em quase US$ 30 bilhões, foi feito na Grande Campinas. A região se tornou polo de produção automobilística. A conquista das fábricas da Honda e Toyota por Indaiatuba e Sumaré se somou à linha de montagem de carrocerias da Mercedes-Benz em Campinas. Jaguariúna, conhecida por produzir papel e celulose, beneficiou-se da proximidade com universidades e centros de pesquisa para abrigar a filial brasileira da Compaq, gigante norte-americana da informática. De quebra, para refrescar, conquistou também fábrica da cervejaria Antárctica, agora associada à Brahma na AmBev. Americana voltou a ser centro de expressão da indústria têxtil depois de suas fábricas terem virado sucata em anos recentes, ao se exporem à concorrência de tecidos e confecções contrabandeados da China, Coréia e Taiwan.
Considerada a cidade mais poluída da Grande Campinas, Paulínia fornece energia para a economia regional. Paulínia é sede da Replan, maior refinaria da Petrobras, e de unidades produtoras da Shell, Texaco e Esso. Neste exato momento ambientalistas da região questionam a construção no polo petroquímico de uma usina termoelétrica abastecida pelo gasoduto Brasil-Bolívia. O temor é que se eleve o índice de má qualidade do ar. Também fica em Paulínia o Centro de Pesquisas da Rhodia Química, unidade que comanda a fábrica da corporação francesa em Santo André.
Sem poluição, há remédio para quase tudo em Hortolândia, cidade vizinha a Sumaré que experimenta crescimento sem precedentes e recentemente tirou do Grande ABC a ampliação do laboratório EMS, popularmente conhecido pela fabricação do isotônico Energil-C. Hortolândia deixou de ser lugarejo e conquistou investimentos de porte da BS Continental, do Grupo Bosch, e da Magnetti Marelli, do Grupo Fiat. Em Mogi-Mirim fica a principal unidade brasileira do grupo alemão Mahle, associado à Magnetti Marelli na Cofap.
Imenso cinturão verde envolve toda essa riqueza econômica. A começar por faixa de canavial que começa em Campinas e se estende até Ribeirão Preto. Para não dizerem que não se fala das flores existe Holambra, a mais bem-sucedida cooperativa agropecuária em solo brasileiro. Criada por holandeses e até hoje comandada por descendentes, a cooperativa virou cidade e não esconde a origem dos fundadores na arquitetura das construções, na lista telefônica, nos nomes de ruas e no cardápio dos restaurantes. Holambra é conhecida no Brasil e no Exterior, principalmente Europa, pela qualidade das flores que produz e exporta. Mas é tão ou mais forte na pecuária de suínos e derivados de mel.
Também cercadas e embelezadas pelo verde, Valinhos, Vinhedo e Amparo constituem polos turísticos. Valinhos é reduto e refúgio de executivos de grandes empresas instaladas em São Paulo. Amparo é porta de entrada para o circuito das águas do Interior de São Paulo, que inclui estâncias como Serra Negra, Águas de Lindóia e Monte Alegre do Sul.
Bem e mal
Nada menos que 70% do PIB brasileiro estão concentrados em região que tem Campinas como centro e diâmetro de mil quilômetros. Nessa vasta área se localizam as capitais Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Curitiba (PR) e Florianópolis (SC). Campinas fica a 99 quilômetros de São Paulo, 511 do Rio de Janeiro, 476 de Curitiba e 921 de Brasília. A cidade não tem porto — é preciso rodar 165 quilômetros para chegar a Santos, o mais próximo — mas é beneficiada pelo maior aeroporto em volume de cargas do País. Viracopos propicia às indústrias da região just-in-time por via aérea. Quatro rodovias privatizadas — Bandeirantes, Anhanguera, D. Pedro I e Santos Dumont — são os principais canais de escoamento da produção industrial e agropecuária.
Estrategicamente tão ou mais relevante é o fato de Campinas ficar a apenas 60 quilômetros de Conchas, por onde passa a hidrovia Tietê-Paraná, rota fluvial de 2,4 mil quilômetros que interliga o Estado de São Paulo ao Mercosul. Com navegação intensificada em toda extensão desde janeiro do ano passado, quando foi inaugurada a eclusa de Jupiá, em São Paulo, a hidrovia é considerada relevante por empresas que vislumbram no caminho das águas o barateamento dos custos de transporte. Por enquanto as embarcações concentram-se principalmente no transporte de produtos rurais, como grãos e farelo de soja, além de fertilizantes e materiais de construção. Já foi realizado um transporte de álcool combustível e há perspectiva de que em futuro breve os 19 terminais ao longo da hidrovia comecem a abastecer mercados do Mercosul com outros tipos de produtos brasileiros, como máquinas e equipamentos.
Como nada no mundo é perfeito, Campinas também está às voltas com o drama social provocado pelos bolsões de miséria que geram violência. A cidade tem déficit habitacional de pelo menos 70 mil moradias e índice de desemprego em torno de 8%. Favelas proliferam na periferia e se espalham pelos municípios vizinhos à medida que a industrialização se expande.
O avanço do tráfico de drogas preocupa a Polícia que, no início da década, detectou na cidade a existência de ramificações do Comando Vermelho, originário das favelas do Rio de Janeiro. Nas margens da Rodovia Santos Dumont localiza-se há dois anos a maior invasão de sem-terras na região, onde estão precariamente instaladas oito mil famílias. Os índices de criminalidade são altos e preocupantes. Não faz muito tempo ocorreram dois sequestros relâmpago no campus da Unicamp. Em resposta, a universidade criou serviço de escolta para professores, funcionários e alunos que, ao se sentirem ameaçados por estranhos, acionam alerta telefônico.
Vale não vive sob asas da Embraer
Engenheiros do LIT (Laboratório de Integração e Testes), mantido pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), não se incomodam quando alguém diz que vivem com a cabeça no espaço. São eles que monitoram e repassam para a indústria de componentes eletrônicos resultados de testes realizados pelo SCD-1, primeiro e único satélite brasileiro de coleta de dados ambientais em órbita ao redor da Terra. Toda a eletrônica embarcada nos automóveis produzidos no Brasil que se relacione com preservação do meio ambiente é testada no LIT.
O satélite e o laboratório disponibilizam tecnologia exclusiva no Hemisfério Sul, mas não são os únicos motivos de orgulho para São José dos Campos, que coloca o Brasil no fechadíssimo grupo dos 10 países dotados de tecnologia para produzir foguetes e satélites. Muito além do sucesso dos aviões da Embraer no Primeiro Mundo, a marca Made in Brazil de maior visibilidade na Europa e Estados Unidos, a capital do Vale do Paraíba prepara-se para voo orbital ainda mais alto — vai representar o País, inclusive com astronauta e contribuição tecnológica, em estação espacial internacional concebida por países detentores do conhecimento aeroespacial.
É incrível que em cenário tão futurista, de pensamentos que voam sem medir distâncias, seja preciso fincar pés bem firmes no chão para sobreviver aos novos tempos da globalização. No topo do ranking dos novos investimentos no Estado de São Paulo nos últimos quatro anos e meio, com atração de US$ 4,3 bilhões segundo pesquisa da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados), São José dos Campos não pode se dar ao luxo de descansar um só minuto. “A globalização está virando tudo de cabeça para o ar. É preciso manter atenção máxima” — sentencia o engenheiro aeronáutico Ednardo José de Paula Santos, vice-prefeito e secretário municipal de Desenvolvimento Econômico.
Ednardo Santos está coberto de razão. Grandes corporações como a holandesa Philips, que mantém unidade em São José dos Campos e também no Grande ABC, estão fazendo o que no mundo dos negócios se chama acerto global. Cada planta industrial da gigante dos eletroeletrônicos, não importa em que país, região ou cidade se localize, passará a produzir um tipo específico de produto para o mundo inteiro. Levarão vantagem as cidades que conquistarem da Philips produtos que tenham mais tecnologia agregada — o que significa laboratórios de pesquisa de novos materiais e fornecedores sofisticados. Para chegar lá os municípios terão de cumprir exigências básicas que se resumem principalmente a mão-de-obra altamente capacitada e qualidade de vida.
“Não dá mais para pensar São José dos Campos apenas como São José dos Campos” — diz Ednardo Santos, que alia à visão de empreendedor a necessidade de estar antenado com tendências do Terceiro Milênio. “O Vale do Paraíba, composto por 39 municípios, tem de ser visto como um todo. Regiões precisam se desenvolver com sinergia e em sintonia com a globalização. O acerto global das grandes corporações escapa totalmente a qualquer tipo de indução ou controle por parte do Poder Público. Se houver uma única cidade com rede de esgoto ruim, fica comprometida toda a qualidade de vida da região. Isso significa que municípios de um mesmo bloco geográfico e econômico devem acabar com a competição entre si e criar políticas compatíveis. Essa é a única forma de abrir portas para novos investimentos” — enfatiza. No Vale do Paraíba, os quatro principais segmentos econômicos são as indústrias aeroespacial, automobilística, petroquímica e de telecomunicações.
Fórum e Agência
O Vale do Paraíba já se deu conta de que prosperidade econômica tem lado bom e lado ruim. Ao mesmo tempo em que é vitrine para novos investimentos, ambiente para desenvolvimento de tecnologia de ponta e horizonte para trabalhador qualificado, a região tem atraído frações do contingente de miseráveis que circulam pelo País em busca de oportunidades de sobrevivência. “Precisamos desde já traçar diretrizes para que venha para cá somente mão-de-obra de melhor qualidade. Acredito que nos próximos anos se deslocará mais mão-de-obra qualificada da Grande São Paulo para o Vale do Paraíba do que para a região de Campinas, que é outro polo em desenvolvimento” — afirma Ednardo Santos.
São José dos Campos convive com migração desordenada. O secretário atribui a culpa ao PT. “Quando ocupou a Prefeitura na gestão passada, o partido propagandeou ao País inteiro que aqui tem saúde e educação de graça, o que não é verdade” — protesta.
Está em curso no Vale do Paraíba projeto de desenvolvimento e integração ao mundo globalizado similar ao do Grande ABC. Em setembro será instalado em São José dos Campos o Fórum de Desenvolvimento Regional, que cria a Agência de Desenvolvimento Brasil Sudeste-Mercosul, dirigida por Ednardo Santos. O Codevap (Consórcio de Desenvolvimento do Vale do Paraíba) existe desde 1971, une todas as prefeituras da região e serviu de modelo para outros organismos do gênero, mas vai perder força. O objetivo do fórum e da agência é fazer com que o desenvolvimento econômico e tecnológico dependa cada vez menos de humores de prefeitos e vereadores ou de diferenças político-partidárias. “A tendência no próximo milênio é que se constituam autoridades com visão regional, capacitadas a desenvolver programas de cidadania e integrar a sociedade com suas fontes geradoras de riqueza” — diz o secretário de Desenvolvimento Econômico.
A exemplo do Fórum da Cidadania do Grande ABC, o similar do Vale do Paraíba quer disseminar o conceito de empresa cidadã. Apoiado em representações da sociedade civil, sindicatos e empreendedores, vai cobrar compromisso social das indústrias. “Hoje o foco das empresas também está na qualidade de vida do funcionário. Linhas de montagem recorrem à ergonometria para proporcionar conforto ao corpo dos trabalhadores. Companhias oferecem cursos técnicos, mas também promovem conteúdos culturais que fortalecem o espírito ou, ainda, direcionam atividades para familiares de funcionários. O ideal é que essa nova visão extrapole o portão da fábrica e sirva a toda a comunidade” — afirma Ednardo Santos.
Quanto à Agência de Desenvolvimento, o secretário diz que será fundamental à elaboração do banco de dados que induzirá novos investimentos no Vale do Paraíba a partir do próximo ano. Já está contratada pesquisa da Fipe/USP (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo) para traçar o perfil socioeconômico da região e esboçar diretrizes para os próximos 50 anos. A partir dos resultados, pretende-se indicar o rumo que cada um dos 39 municípios terá de tomar para que o desenvolvimento da região seja integrado. Enquanto a agência se incumbirá de levantar números e informações para direcionar ações político-administrativas, caberá ao fórum a responsabilidade de sensibilizar prefeitos e gerar sinergia. É assim que o Vale do Paraíba pretende resolver problemas regionais crônicos, como a poluição do Rio Paraíba.
Desinteresse
Ednardo Santos lamenta que a indústria aeroespacial, maior arrecadadora de impostos e principal exportadora do Vale do Paraíba, ainda não tenha se sensibilizado com o fórum e a agência. “Nem o CTA (Centro Técnico Aeroespacial) nem a Embraer estão participando” — queixa-se o secretário. “O CTA tem trabalho muito específico, voltado ao desenvolvimento tecnológico da Embraer. E a Embraer, por sua vez, não se envolve com a comunidade. Acho que é porque vende avião na Europa e nos Estados Unidos. Não tem consumidores no Vale do Paraíba” — desabafa em tom lacônico.
Indústria à beira da falência no início da década, com dívida de quase US$ 120 milhões, a Embraer foi privatizada em 1994. Registra recuperação financeira impressionante nos últimos cinco anos. Quarta maior fabricante de aviões do mundo, premiada recentemente como Empresa do Ano pela revista Exame, a companhia acabou de fechar a venda de 200 jatos para a suíça Crossair. O contrato de US$ 4,9 bilhões vai gerar três mil novos empregos. Muito possivelmente, com esse reforço a empresa fechará o exercício financeiro deste ano como maior exportadora do País.
Desinteressado ou não pela comunidade, o setor aeroespacial é motivo de orgulho do Vale do Paraíba. Graças ao parque de tecnologia, que dotou a região de benefícios como redes de fibras ópticas, grandes grupos de telecomunicações — como a Ericsson — investem em unidades industriais. Também é o caso das montadoras instaladas na região — General Motors, Volkswagen e Ford –, atentas aos novos produtos que saem dos laboratórios de pesquisa aeroespacial. GM e Volks produzem no Vale do Paraíba as linhas populares Corsa e Gol, respectivamente, que respondem por 60% das vendas do setor no País. A Ford produz os motores que equipam veículos da marca manufaturados no Brasil e na Argentina.
Linguição
Há forte identidade visual entre Vale do Paraíba e Grande ABC. Basta o acesso pelo caminho mais fácil e conhecido, a privatizada Rodovia Presidente Dutra, para constatar a conurbação entre Jacareí, São José dos Campos e Taubaté. A impressão é que se atravessa um espichado linguição de aproximadamente 110 quilômetros de extensão tomado por indústrias, hipermercados e empresas de serviço. Nas horas de rush o trânsito da estrada congestiona e atrapalha a operação just-in-time das montadoras e autopeças. A NovaDutra, concessionária da rodovia, já se comprometeu a resolver o problema com reforma e ampliação das pistas.
São José dos Campos, entretanto, não é o único gerador de riqueza econômica no Vale do Paraíba, onde vivem e trabalham quase dois milhões de pessoas. Taubaté e Jacareí também batem recordes de atração de novos investimentos. Estão classificados, respectivamente, em segundo e quarto lugares na mesma pesquisa da Fundação Seade que indica São José dos Campos como primeira do ranking estadual. Nos últimos quatro anos e meio Taubaté atraiu mais de US$ 1,9 bilhão. Jacareí conquistou US$ 1,5 bilhão.
Isoladamente, os municípios do Vale constituem pequenos polos industriais. Jacareí é reduto de produtos químicos. Taubaté se destaca pelas montadoras. Pindamonhangaba tem caldeiraria e processamento de alumínio. Guaratinguetá, para onde a Basf transferiu a fábrica de São Caetano, também faz químicos. Lorena tem produção diversificada e inaugurou neste ano a maior unidade da Yakult na América Latina, investimento que São Bernardo perdeu por causa da ação radical de grupos ambientalistas. Cruzeiro, na divisa com o Rio de Janeiro, é famosa pelas estruturas metálicas. Nos últimos quatro anos esses municípios reunidos receberam investimentos de US$ 9 bilhões, praticamente 30% do que foi aplicado no Estado de São Paulo.
Enquanto não se configura nova concepção regional, impulsionada por Fórum e pela Agência de Desenvolvimento, São José dos Campos mantém a Sala do Empreendedor, divisão da Secretaria de Desenvolvimento Econômico que abriga num único espaço funcionários de sete secretarias municipais que tiram dúvidas, protocolam e analisam processos de novos negócios. Estão integradas as pastas de Planejamento Urbano e Meio Ambiente, Obras e Habitação, Transportes, Assuntos Jurídicos, Administração e Fazenda.
Com 62,62% da área territorial destinada à preservação ambiental, São José tem pouco mais de 500 mil habitantes, reduzida taxa de analfabetismo (4%), 45% do esgoto tratado, 98% dos domicílios com água e 7,7 quilos de lixo reciclado per capita ao ano. Conta também com 14,44 terminais telefônicos para cada grupo de 100 habitantes, 31 quilômetros de redes de fibras ópticas, 38 quilômetros de gás natural canalizado e transporte ferroviário em torno de 4,2 milhões de toneladas/ano. Na área cultural, destaca-se na região por contar com quatro teatros e 19 salas de cinema. Lidera a arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) com aproximadamente R$ 6,5 bilhões de valor adicionado, o que a coloca em terceiro lugar no Estado, só atrás da Capital e de Guarulhos.
A localização entre São Paulo e Rio de Janeiro é uma das vantagens logísticas da capital do Vale do Paraíba. Além disso, fica a 160 quilômetros do Porto de Santos e a 111 quilômetros do Porto de São Sebastião. A 300 quilômetros de distância passa a Hidrovia Tietê-Paraná. São José empenha-se para internacionalizar o aeroporto do CTA (Centro Técnico Espacial). A expectativa é de operar ali transporte de cargas como o de Viracopos, em Campinas. Durante muito tempo o CTA serviu exclusivamente como base militar. Em 1998 registrou pouso e decolagem de 23,3 mil aeronaves e de passageiros. Também se destaca a Refinaria Henrique Laje, da Petrobras, que tem rede de gás natural para uso industrial.
Como indicadores de qualidade de vida o secretário Ednardo Santos destaca três parques, uma reserva ecológica e a proximidade com regiões montanhosas — Campos do Jordão e Pindamonhangaba –, além do Litoral Norte.
São Carlos aposta nos seus doutores
São Carlos, cidade do Interior de São Paulo que abriga expressiva bacia leiteira e outras atividades rurais, é um fenômeno. Conta com a maior concentração de doutores per capita do País — um para cada grupo de 230 dos 180 mil habitantes. E com todo conhecimento que transborda de duas universidades (USP e Universidade Federal), reconhecidos centros de excelência, gerou um parque de altíssima tecnologia, único do País distante das ricas e complexas regiões metropolitanas. Seus produtos, que há muito transpuseram fronteiras e são atrações em feiras internacionais como as de Frankfurt e Hannover, na Alemanha, chamam atenção para o espírito inventivo que paira sobre a cidade e atraem investimentos.
Diferente de Curitiba, que apostou em intervenções urbanas para tornar-se vitrine do Brasil no Primeiro Mundo e, graças a essa imagem, atrai indústrias, São Carlos investe na incubação e geração de pequenas EBTs (Empresas de Base Tecnológica), quase todas constituídas por doutores, professores e alunos das duas universidades. A principal realização nessa área é a ParqTec (Fundação Parque de Alta Tecnologia de São Carlos), criada em 1984 para transformar em produtos ideias concebidas nos bancos das faculdades.
A fundação administra incubadora que, sob o teto de velho galpão industrial reformado, próximo aos campi das universidades, abriga 12 empreendimentos com diversidade que abrange desde criadores de softwares a um instituto especializado em ecologia. Além disso, é sede de programas institucionais como Softnet, Genetec, Bolívar, Sae Brasil e Centro Cerâmico do Brasil. Ao todo, são quase 60 empresas associadas à ParqTec, com faturamento anual que supera US$ 100 milhões.
O sucesso de São Carlos, que trocou o vago e romântico título de Cidade Sorriso pelo mais adequado Capital da Tecnologia, não tem segredo. É resultado de mobilização e esforço conjunto das principais forças da sociedade, representadas pela Prefeitura e apoiadas pelo CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Universidade de São Paulo, Universidade Federal de São Carlos e Ciesp (Centro das Indústrias do Estado). “Criamos sinergia e trouxemos para São Carlos experiências internacionais bem sucedidas no campo da alta tecnologia. O Brasil só vai dar certo quando resolver investir em educação de qualidade para todos” — diz Sylvio Goulart Rosa Júnior, fundador e presidente da Fundação Parque de Alta Tecnologia e também ex-presidente do Sebrae-SP (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).
A fundação investe em dois novos laboratórios, nas áreas de prototipagem rápida e cerâmica, cujos equipamentos estão em início de operação e irão constituir o Centro de Modernização Empresarial de São Carlos, iniciativa conjunta com o Sebrae. A finalidade é que, a partir do próximo ano, empresas de qualquer parte do País tenham onde desenvolver novos produtos e processos com aporte tecnológico.
Science Park
O processo de incubação é avançado e bem sucedido. Tanto que a taxa de sobrevivência é de 80%, depois de três anos de maturação. Nesse período a empresa desenvolve produtos, equipes e qualificação gerencial. A Fundação ParqTec prepara São Carlos para salto ainda mais alto: a criação de um Science Park nos moldes do que a Universidade de Stanford montou nos Estados Unidos em 1949 e hoje é conhecido como Vale do Silício, um centro de excelência mundial na geração de produtos e subprodutos de informática. O terreno de 100 alqueires já foi doado pela Prefeitura. No momento a ParqTec mobiliza forças para obter US$ 10 milhões necessários à infraestrutura da área. No Science Park, que deverá receber os primeiros investimentos em 2005, as empresas serão construídas para, se possível, durar para sempre.
“Transformamos o Science Park no projeto da cidade” — diz Sylvio Goulart. “Para desenvolver essa iniciativa, São Carlos passa por transformações em todas as áreas que envolvem conhecimento e bem-estar da população. Estamos criando programas e metas nas áreas de Ensino Básico, saúde pública, infraestrutura e desenvolvimento social e econômico. Governos do Estado e do Município, entidades empresariais e representações da sociedade civil estão envolvidos. Precisamos romper com todo e qualquer tipo de miséria e garantir boa formação aos nossos filhos. São Carlos vai erradicar o analfabetismo, está investindo em escolas técnicas, bibliotecas, laboratórios e pesquisa. Precisamos reduzir a mortalidade infantil, tornar ainda mais amplas as coberturas das campanhas de vacinação, informar as mães sobre a importância do aleitamento materno e do exame pré-natal. Práticas sociais que envolvem a família são respaldo importante para que a cidade conquiste o Science Park” — afirma.
Sylvio Goulart considera decisivo ao Município para tocar projeto desse porte contar com classe dirigente ilustre. “Um idiota em cargo importante sempre atrasa tudo. Dirigentes têm de ter sensibilidade para saber interpretar o futuro” — afirma do alto da formação acadêmica em Física. O presidente da Fundação ParqTec garante que até a inauguração do Science Park as empresas de alta tecnologia terão dobrado a participação no PIB (Produto Interno Bruto) de São Carlos, que é de 20%. Para chegar a esse índice, a meta é elevar de 60 para 200 o número de Empresas de Base Tecnológica. “Precisamos criar uma empresa nova por mês. Para isso, devemos intensificar a geração de novos empresários por meio de treinamentos gerenciais, além de estimular investimentos em novas tecnologias” — diz.
Espírito criador
Autora do livro Estrutura de Polos Tecnológicos, sua dissertação de mestrado, a professora Ana Lúcia Vitale Torkomian é formada em Engenharia da Produção pela Universidade Federal. Ela garante que São Carlos é a única cidade do Estado de São Paulo que conta com duas universidades públicas e que o reconhecimento nacional ao avanço tecnológico deve-se a grupos de pesquisa de excelência e resultados que se transformaram em benefícios para a sociedade. “Aqui é permanente a interação da universidade com a empresa privada. Tanto que sou coordenadora do Núcleo de Extensão Universidade Federal de São Carlos/Empresa, criado recentemente para proporcionar o inverso do que aconteceu até agora: ser a porta de entrada da empresa na universidade” — diz Ana Lúcia.
A Universidade Federal de São Carlos dá provas de que assimilou a experiência de professores, doutores e alunos com o parque de alta tecnologia: está introduzindo nos cursos de Engenharia matérias que buscam garantir não apenas formação técnica, mas também conhecimentos gerenciais que possibilitem aos alunos administrar um negócio. “Estamos preparando os alunos para o mundo sem emprego formal, que é o futuro. Não basta mais ser técnico. É preciso ser empreendedor” — afirma a professora. Também a Fundação ParqTec mantém permanentemente cursos de capacitação gerencial, em associação com as universidades, e oferece aos empreendedores associados vários tipos de assessorias, inclusive jurídica.
Para divulgar a marca do parque tecnológico, São Carlos realiza série de eventos anualmente. O principal é a Oktobertech, em outubro, quando a cidade também festeja aniversário. O evento traduz-se num saudável porre de tecnologia para milhares de visitantes, que tomam contato com atrações nas áreas científica, empresarial e cultural. São Carlos promove também a Fealtec, primeira feira de tecnologia instituída no Brasil, e a Mostra de Transferência de Tecnologia, na qual produtos desenvolvidos pelas universidades buscam repasse ao setor produtivo. Outra iniciativa é a outorga do Prêmio Peão da Tecnologia a pessoas ou grupos que tenham contribuído com inovações que aumentem produção, qualidade e competitividade.
Para se instalar na incubadora da Fundação Parque de Alta Tecnologia de São Carlos a empresa não pode ser poluente e precisa desenvolver produto ou serviço de base tecnológica inovador ou substituto de importado. Além disso, precisa apresentar minucioso estudo no qual expõe todos os aspectos do negócio e a viabilidade econômica do projeto.
Foi cumprindo esse trajeto que a Industra, empresa de mecânica fina, desenvolveu os aparelhos Liposonic e Dermasonic, utilizados para lipoaspiração e eliminação de gordura localizada sem cirurgia. Os equipamentos são utilizados por médicos do Peru, Cuba, Chile e Colômbia. Em abril do ano passado a Keramus, do segmento de cerâmicas especiais, detectou novos mercados internacionais na Polônia, Suécia e Hungria depois de expor produtos na Feira de Hannover, na Alemanha. Até então, exportava unicamente para Argentina e Colômbia.
Outro grande sucesso internacional, provavelmente o maior de São Carlos, é a Opto. É a primeira empresa incubada do Município e única da América do Sul especializada na fabricação de medidores a laser para aplicação industrial e também primeira fabricante brasileira de filme anti-reflexo para lentes de óculos, além de fornecedora de mais da metade dos espelhos especiais para consultórios dentários no mundo inteiro. A Sensis, outra pequena organização, desenvolve sistema de monitoramento do processo de fabricação por emissão acústica, dirigido à indústria de autopeças. Já a Digimotor, fundada em 1985 por professores e alunos da USP-São Carlos, fornece máquinas bobinadoras CNC (Comandos Numéricos Computadorizados) para fios de cobre para a Visteon, empresa do grupo Ford.
No ano passado, o Prêmio Peão da Tecnologia foi conquistado por dois pesquisadores da USP-São Carlos, os professores-doutores Osvaldo Novais de Oliveira Júnior e Maria das Graças Volpes Nunes, do Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional. Eles desenvolveram um software com revisor gramatical — denominado ReGra — que corrige, ensina regras gramaticais e de ortografia e auxilia na produção de textos em português. Disponível no mercado, o programa integra o editor de textos Redator, da Itautec-Philco, e é compatível com o Word for Windows, da Microsoft.
São Carlos é mercado tão promissor que até o Grande ABC está de olho no seu potencial. A Cosnal — Cozinha Nacional, de Santo André, acaba de contratar assessoria especializada para conquistar clientes entre 56 novas empresas que se instalaram na cidade, 35 delas com início de operações previsto para este ano. Atuando há mais de cinco anos no Interior de São Paulo — em Limeira, Porto Feliz, Cerquilho, Jundiaí e Rio Claro — a Cosnal está no mercado há 24 anos, é a primeira do seu segmento certificada com a ISO 9002 e serve diariamente média de 41 mil refeições.
Bahia tem muito mais que encantos
A Bahia extrapolou para conquistar investimento de US$ 1,3 bilhão na maior e mais moderna fábrica da Ford, complexo que além da montadora abrigará 16 fabricantes de autopeças. Foi mais que guerra fiscal. A Ford foi seduzida com a mesma intensidade com que a terra de João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Amado encanta cidadãos do mundo inteiro com paisagens afrodisíacas, cultura e comidas ricas e exuberantes. Nenhum outro Estado brasileiro teria condições imediatas de oferecer tanto. Sem contar o providencial empurrãozinho do governo federal, que pediu à montadora que fizesse opção pelo Nordeste.
São tantos os benefícios territoriais, estratégicos e fiscais concedidos em pacote único pelo governo baiano que lideranças políticas, sindicais e da sociedade civil do Grande ABC devem acionar o alerta máximo. A fábrica de caminhões do Ipiranga já está com os dias contados, por isso trabalhadores da Ford e sindicatos de metalúrgicos da região e São Paulo discutiam no final de julho formas de pressão para exigir que a montadora compense vantagens fiscais do governo aos baianos com a manutenção dos atuais empregos nas plantas do Estado de São Paulo. Até o governador Mário Covas entrou na disputa, aparentemente em rota de colisão com o presidente Fernando Henrique, de seu partido, o PSDB. Ele está do lado dos sindicalistas e entende que a anunciada transferência da fábrica de caminhões para espaços ociosos da planta de São Bernardo seria apenas uma transação para a completa evasão da Ford rumo à Bahia.
O presidente da Ford, Antonio Maciel, descarta qualquer possibilidade de saída da montadora do Grande ABC. Cita os elevados investimentos nos últimos anos — cerca de US$ 2,5 bilhões — para atualização da planta. Outros executivos da montadora reconhecem que a fábrica de São Bernardo precisa, a médio prazo, atingir maiores índices de produtividade, competitividade e lucratividade. A meta no complexo do compacto Amazon na Bahia é atingir a marca do novo milênio: 100 carros/homem por ano. No Grande ABC, a produtividade não chega a 30 carros/homem ao ano.
A Ford tenta se reposicionar no Brasil. Detentora de 20% do mercado nacional no passado e de 8,8% nos primeiros cinco meses deste ano, quer e precisa recuperar urgentemente grandes perdas que se avolumam desde 1994, quando foi extinta a holding Autolatina, na qual era associada à Volkswagen. Martin Inglis, vice-presidente mundial e presidente da Ford na América do Sul, diz que a fábrica na Bahia representa novo horizonte.
Sob medida
A brisa baiana sopra tão a favor da Ford que já neste mês a companhia norte-americana deve iniciar a construção do parque industrial em Camaçari. Será um conjunto de edifícios que abrigará 17 empresas em terreno de mais de cinco milhões de metros quadrados. O complexo que une montadora e autopeças, modelo que a Volks/Anchieta também pretende utilizar nos próximos anos, fica a 35 quilômetros do Aeroporto Internacional Deputado Luiz Eduardo Magalhães, a 45 quilômetros do Porto de Aratu e a apenas dois quilômetros de malha ferroviária.
A Ford não terá sequer o trabalho de fazer terraplenagem no terreno. A área está pronta para receber a construção. Trata-se do mesmo local que seria cedido para a coreana Asia-Motors, castigada pela crise asiática e que desistiu de instalar-se na Bahia. Infraestrutura é outro problema resolvido. A montadora vai dispor de recursos, inclusive de preservação ambiental, que existem há 20 anos a serviço do Polo Petroquímico de Camaçari.
A carga de eletricidade, cerca de 25000 kW, será fornecida por subestação localizada a apenas quatro quilômetros da área. A Barragem Santa Helena, que abastece de água todo o polo, tem produção suficiente para fornecer os 100 mil metros cúbicos/mês que a Ford necessita. A Bahia também tem gás natural de sobra. De 2,6 milhões de metros cúbicos/dia disponíveis, o complexo industrial precisará de apenas 650 mil metros cúbicos/mês. Com a vantagem de que as dutovias do gás natural passam a apenas 1,5 quilômetro de distância do terreno.
A Ford não terá o menor problema para instalar rede de telecomunicações e se integrar à matriz em Detroit (EUA) e subsidiárias do grupo no mundo inteiro. Na entrada do terreno passa a rede de distribuição telefônica que disponibilizará 50 troncos de fibra ótica exigidos pelo complexo industrial. Outro ganho de tempo é que a montadora não precisará esperar seis meses para obter o EIA/Rima (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental). A área possui autorização para instalação de indústria há 20 anos. Nem mesmo a destinação dos resíduos industriais preocupará a Ford. A montadora irá se servir de aterro industrial e incinerador de resíduos sólidos do Polo de Camaçari.
As vantagens em infraestrutura são tantas que a Ford vai economizar pelo menos um ano na construção do complexo industrial. É ganho de tempo considerável, que permitirá manter o cronograma caso a fábrica tivesse sido construída no Rio Grande do Sul, Estado do qual desistiu depois de fracassarem as negociações com o governador petista Olívio Dutra. A expectativa é de que em 2001 a Ford comece a produzir carros na Bahia. E mais: o projeto Amazon, que previa a manufatura de 150 mil carros/ano no Rio Grande do Sul, foi reprojetado para 250 mil carros/ano na Grande Salvador, em decorrência dos novos benefícios.
FHC + ACM
O governo da Bahia não agiu sozinho para conquistar o megainvestimento da Ford. Além do empurrãozinho do presidente Fernando Henrique Cardoso, que pediu à montadora opção pelo Nordeste, contou com o reforço de peso da ação do senador Antonio Carlos Magalhães, presidente do Congresso Nacional.
ACM fez barba e cabelo. Intermediou empréstimo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a Ford, no valor de US$ 700 milhões e, para pressionar o presidente a conceder vantagens fiscais, articulou no Congresso aprovação relâmpago do projeto de conversão da Medida Provisória 1740/32, de 1996, para permitir habilitação de montadoras ao Regime Automotivo Especial do Norte, Nordeste e Centro-Oeste até 31 de dezembro deste ano. Originalmente esse prazo se esgotara em 31 de maio de 1997.
Fernando Henrique Cardoso enfrentou uma das maiores saias-justas do seu governo. A conversão da Medida Provisória concedia tantas vantagens fiscais à Ford, com renúncia de R$ 700 milhões anuais em arrecadação de impostos federais, que a Argentina ameaçou não reconhecer como produtos do Mercosul automóveis feitos na Bahia. Concorrentes da Ford instalados no Brasil consideraram absurdos os benefícios concedidos pela MP. E Antonio Carlos Magalhães permaneceu no Estado por 17 dias seguidos, como forma de pressionar o presidente a dizer sim ao projeto aprovado às pressas.
A solução encontrada por Fernando Henrique agradou a todos. No fim de julho o presidente editou Medida Provisória dirigida a toda montadora que quiser se instalar nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que reduz drasticamente a renúncia fiscal para R$ 180 milhões. Chegou-se a esse número com a instituição de um único incentivo: corte de 32% nas alíquotas do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). ACM bateu palmas. Antonio Maciel, novo presidente da Ford Brasil, se disse satisfeito. “Estamos felizes em poder contribuir com o desenvolvimento regional do Nordeste” — afirmou. Quem saiu chamuscado foi o economista Pio Borges: ele perdeu a presidência do BNDES por ter desagradado o presidente ao garantir empréstimo à montadora antes que o governo definisse os benefícios fiscais.
Para o governador da Bahia, César Borges, mais importante do que questionar vantagens fiscais é debater a importância da instalação de montadora do porte da Ford no Nordeste brasileiro. “Com essa fábrica, estamos inaugurando novo polo da indústria automobilística” — empolga-se. César Borges não desistiu de ter a Asia-Motors na Bahia e diz que está em contato com a Hyundai, que comprou a fabricante de vans coreana. “Temos mais espaços para fábricas em Camaçari, com o mesmo porte e benefícios oferecidos à Ford. A Bahia inicia agora um novo ciclo econômico, o da industrialização” — enfatiza o governador.
O consultor José Roberto Ferro, professor da Fundação Getúlio Vargas e um dos maiores especialistas brasileiros em indústria automobilísticas, acredita que a Bahia constituirá novo polo. “O modelo de fábrica que Ford instalará em Camaçari reúne num mesmo parque industrial praticamente toda a cadeia de produção, inclusive com boa parte da matéria-prima. Nem a distância dos grandes centros de distribuição será problema. Os benefícios fiscais vão compensar” — diz.
O que é difícil explicar é o cálculo do governo sobre empregos diretos e indiretos que serão gerados pelo complexo da Ford em Camaçari. A propaganda oficial da Bahia garante que serão 55 mil e que em 10 anos o PIB (Produto Interno Bruto) do Estado vai crescer dos atuais US$ 36 bilhões (pouco mais que os US$ 28 bilhões do Grande ABC) para US$ 80 bilhões. É evidente que há exagero nesses números. A Ford anuncia que sua fábrica vai gerar entre 2,5 mil e três mil empregos diretos. Das 16 autopeças que compõem o parque, nenhuma terá mil empregos — até porque contingente de trabalhadores desse porte só é visto hoje em autopeças de grande envergadura, como a Arteb de São Bernardo.
Para tirar dúvidas, basta comparar números baianos com os do polo automotivo da Grande Curitiba, o segundo do País em concentração de montadoras. Volkswagen/Audi, Renault e Chrysler, que acabam de iniciar produção no Paraná, mais um grupo de quase 40 autopeças, geraram pouco mais de 10 mil empregos diretos e indiretos até agora. Nunca é demais lembrar que fábricas novas são automatizadas em larga escala e demandam volume bastante reduzido de mão-de-obra humana. E que as antigas, como as sediadas no Grande ABC, recorrem cada vez mais à atualização tecnológica que, por sua vez, provoca desemprego.
BahiaPlast
Não é somente a Ford que faz ferver o caldeirão de novos investimentos no Estado. Por conta do Polo Petroquímico de Camaçari, o governo baiano mantém o programa BahiaPlast, que acaba de atrair empreendimento inédito: a primeira fábrica de componentes de calçados em fibra sintética do País. Em parceria com quatro fabricantes de calçados brasileiros — Azaléia, Paquetá, Reshetr e Shmitt –, a italiana Sisa se instala no Centro Industrial de Aratu em janeiro do próximo ano para manufaturar material semelhante ao couro e vários tipos de forrações a partir de um derivado do petróleo, o poliuretano. O investimento é de US$ 33 milhões, com geração de 100 empregos diretos e garantia de fornecimento para 26 indústrias calçadistas que desenvolvem atividades no Estado.
Também com matéria-prima fornecida pelo polo petroquímico, e beneficiada pelo BahiaPlast, a Tigre do Nordeste investe R$ 25,2 milhões em Camaçari, na ampliação e diversificação da produção de tubos, conexões e outros produtos em PVC. Mais dois empreendimentos estão prestes a se transferir para a Grande Salvador: um fabricante de termoplásticos de Santa Catarina, que pretende produzir embalagens com matéria-prima do polo petroquímico, e uma empresa gaúcha especializada em fazer cera utilizada na conservação de frutas para exportação.
Em Ilhéus o governo baiano desenvolve o BahiaTec, polo de indústrias de informática. O carro-chefe do setor no Estado é a Semp Toshiba, que se transferiu de São Paulo para Salvador e projeta dois novos investimentos no valor total de US$ 25 milhões. Um dos projetos prevê produção mensal de 500 servidores de rede da linha Magnia Toshiba. Mas a principal novidade é um novo computador de mesa cujo preço para o consumidor ficará abaixo de R$ 1,1 mil. A Semp Toshiba produz em Ilhéus 1,5 mil notebooks, quatro mil computadores de mesa, 30 mil telefones sem fio e 550 aparelhos de DVD (Digital Vídeo Disc) por mês. Para atender ao fabricante de equipamentos de informática, a Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração da Bahia tenta atrair indústria de gabinetes para computadores e carcaças de telefones com incentivos fiscais do BahiaPlast.
Dois outros segmentos da economia estão próximos de se tornar programas com incentivos para investimentos na Bahia. Um é a indústria de transformação do cobre, para a qual está sendo criado o Pró-Cobre. O governo quer processar no próprio Estado 195 mil toneladas do metal que produz anualmente e são vendidas para o Rio de Janeiro e São Paulo, além do Exterior. Na outra ponta está o setor de vestuário, para o qual o governo baiano criará condomínio industrial para abrigar 19 empresas de micro, pequeno e médio portes em Salvador. A expectativa nesse empreendimento é gerar dois mil empregos diretos e oito mil indiretos.
Números da Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração dão conta de que a Bahia cresceu 5% nos primeiros cinco meses deste ano na captação de novos investimentos, com abertura de 12.662 empresas. Os setores campeões em gerar empreendimentos são comércio varejista, com 6.318 novas portas, e serviços, com 3.302. A indústria de transformação instalou 737 novas unidades, superando comércio atacadista (514), construção civil (405), transportes (307) e ensino (215). Quase 42% dos novos investimentos aportaram na Grande Salvador.
Para não perder o embalo, o governo baiano acaba de criar em parceria com Sebrae, Banco do Nordeste e Universidade Federal da Bahia o Programa Jovem Empresário. Já estão disponíveis duas linhas de crédito: R$ 50 mil para áreas de comércio e serviços e R$ 150 mil para geração de pequenas indústrias. O empreendedor tem de cumprir duas exigências: criar pelo menos um emprego e participar de curso de formação em gestão empresarial mantido pela Fundação Luiz Eduardo Magalhães. O objetivo vai além da intenção de gerar novos negócios. A Bahia quer disseminar a cultura do empreendedorismo.
LUCRO$ & PERDA$
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24/10/2024 UFABC fracassa de novo. Novos prefeitos reagirão?