A alardeada primeiromundista São Caetano, referência obrigatória de oásis de qualidade de vida na selva de pedra e de criminalidade da Região Metropolitana de São Paulo, não é exatamente o que parece. A sistemática perda de indústrias combinada com a multiplicação de atividades de comércio e principalmente de serviços no embalo da guerra fiscal transformou o Município no supra-sumo regional do assalariamento precarizado. Traduzindo: São Caetano perde cada vez mais o viço herdado da pujança industrial que um dia já ostentou e deixa a Casa Grande dos salários mais elevados em direção à senzala do rebaixamento das carteiras profissionais.
De posse de estudos da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo, interpreto estatísticas do Ministério do Trabalho e do Emprego, em análise inédita a que me lanço para entender mais ainda as razões da choradeira de representantes de São Caetano nos encontros sociais que de vez em quando me dou ao desfrute. Surpreendentemente para quem coloca São Caetano no pedestal da renda regional, o que se tem de fato é o crescimento geométrico dos assalariados fragilizados.
Os estragos da fuga e do enxugamento industrial são evidentes: 82,21% da força de trabalho formal de São Caetano ganhava, em dezembro de 2000, até três salários mínimos. Um crescimento depreciativo de 152,25% em relação a dezembro de 1997, que registrava 32,59%. Poucos entre os mais expressivos municípios paulistas emparelham o jogo da precarização com São Caetano.
Um caso é a industrial Americana, que reúne 82,4% de empregados com até três salários mínimos, sempre em dezembro de 2000. Também Americana passou pela turbulência da abertura econômica desregrada no setor têxtil e só recentemente vem dando mostras de recuperação. A modernização do parque industrial de teares cortou muitos postos de trabalho e o setor de serviços e comércio avançou relativamente. Como se sabe, são atividades que geram empregos de baixo salário.
Também a mais recentemente industrializada Hortolândia integra o grupo de municípios comprometidos pelo assalariamento terceiromundista, com 86,52% de trabalhadores colhendo ao final de cada mês até três salários mínimos de hoje — R$ 600. O caso dessa cidade da Região Metropolitana de Campinas é diferente tanto da esvaziada São Caetano quanto da reconstruída Americana. Hortolândia é um pólo químico/farmacológico mais recentemente descoberto pelos empreendedores e já foi enquadrado num compartimento salarial comprimido pela globalização e pela guerra fiscal.
Embora não tenha conseguido reunir dados de empregos formais relativos ao mesmo período de precarização da mão-de-obra, movo-me pelo bom senso de referências de empregos formais de períodos mais recentes para sustentar os argumentos. O fato é que, de maneira geral, como a economia paulista vem perdendo espaço no confronto nacional porque reagiu mal e tardiamente à guerra fiscal e foi a vítima preferencial da política macroeconômica do governo federal, a debilidade salarial é compulsória.
A realidade de que os empregadores de São Caetano pagam mais de três salários mínimos a apenas 17,79% dos funcionários — quando em 1997, três anos antes, o contingente acima de três salários mínimos era de 67,41% — expõe com clareza o tamanho do rombo das políticas econômicas que estamos cansados de mostrar.
Se as razões que nocauteiam o emprego com qualidade em São Caetano parecem imbatíveis, o que dizer então da industrial Diadema que, no mesmo período, passou de 19,18% para 71,74% de empregados com vencimentos de até três salários mínimos? Em termos relativos, a precarização em Diadema cresceu 274,03%, contra 152,25% em São Caetano.
Por que Diadema mudou tanto? Como pode Diadema derrapar de 80,82% de trabalhadores com rendimento superior a R$ 600 para apenas 28,26% em apenas três anos? O nome do jogo é enxugamento de pessoal, rotatividade combinada com rebaixamento salarial e, também, multiplicação de pequenos negócios de empregos de subsistência. Não se pode esquecer que Diadema é predominantemente formada por pequenas e médias empresas metalúrgicas, químicas e cosméticas, suscetíveis demais às travessuras econômicas governamentais.
A Mauá tão festejada ultimamente porque está conseguindo atrair indústrias ao Pólo de Sertãozinho e investimentos ao Pólo Petroquímico, principalmente, também está no olho do furacão da debilidade salarial. O índice de 80,86% de mão-de-obra com até três salários mínimos no ano 2000 é 250,8% maior que o de três anos antes, quando registrou 23,05%. De novo a comparação: em 1997, 76,95% dos trabalhadores de Mauá levavam para casa mais de três salários mínimos por mês, contra apenas 19,14% na virada do século passado. Principalmente as pequenas e médias autopeças nacionais estão na raiz dessa debacle. Esse segmento foi detonado pelo governo FHC, que o colocou na rua da amargura da competitividade internacional crua e nua e também às pressões das montadoras, protegidas pelas alfândegas.
Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra deram saltos menos explosivos que Mauá, São Caetano e Diadema, mas o desempenho também é comprometedor. Em 1997 Ribeirão Pires contava com 72,01% de trabalhadores que recebiam mais de três salários mínimos, contra 38,96% do ano 2000. Rio Grande da Serra saiu do patamar de apenas 29,09% de trabalhadores com vencimentos de até três mínimos para 79,08%.
O Município do Grande ABC que menos impacto sofreu com a queda da massa salarial foi Santo André. O índice de 27,56% registrado em 1997 saltou para 59,69% em 2000. Ou seja: em 1997, 72,44% dos trabalhadores ganhavam mais de três salários mínimos, contra 40,31% de três anos depois. Como se explica isso se Santo André é a cidade da região que mais sofreu as dores da evasão industrial? Primeiro porque os dados que compreendem os anos de 1997 a 2000 colhem Santo André em período de estabilização de perdas. Segundo porque o emprego formal de melhor qualidade de Santo André na área industrial prevalece nas médias e grandes indústrias. O crescimento relativo de 116,18% de assalariamento de até três mínimos é elevado para os padrões médios do Estado, mas está abaixo da média regional.
Completando o ciclo, encontramos São Bernardo das montadoras e das autopeças. O que teria acontecido? Ora bolas: se São Bernardo caiu do segundo para o quinto posto no ranking de distribuição do ICMS no Estado de São Paulo porque as montadoras promoveram lipoaspiração e demissão fluvial de trabalhadores e muitas autopeças dançaram feio com a globalização, o resultado só poderia ser catastrófico. E é: em 1997 São Bernardo contava com 83,54% de sua força de trabalho recebendo mais de R$ 600 a valores de hoje — três salários mínimos. Já no ano 2000 esse universo caiu para 42,75%. O emprego precarizado cresceu 247,81% no período.
É insofismável a correlação entre a persistente queda relativa e absoluta da economia do Grande ABC dentro do território paulista e a contração dos contracheques dos trabalhadores. Em 1997 o Grande ABC contabilizava 10,14% de participação no índice do ICMS do Estado, contra 8,83% do ano 2000 — queda de 1,31 ponto percentual ou de 13%. São Bernardo tinha 4,27% e caiu para 3,73%, Santo André tinha 1,73% e caiu para 1,61%, Mauá caiu de 1,26% para 1,10%, Diadema de 1,42% para 1,20%, São Caetano de 1,42% para 0,98%, Ribeirão Pires de 0,26% para 0,16% e Rio Grande da Serra manteve-se no residual 0,04%. Como se sabe, o ranking do ICMS é fortemente influenciado pela geração de riqueza da indústria de transformação.
Dos grandes e médios municípios paulistas, Sorocaba foi o que apresentou a menor variação do avanço do assalariamento de até três mínimos: era 34,94% em 1997 e chegou a 53,03% na virada do século. Ou seja: alta de 51,77%. Capital econômica do quarto pólo industrial mais poderoso do Estado, atrás da Grande São Paulo, da Região Metropolitana de Campinas e do Vale do Paraíba, Sorocaba saiu de 1,24% de participação no ranking do ICMS em 1997 para 1,36% no ano 2000.
São José dos Campos vem logo a seguir. Em 1997, 28,66% dos trabalhadores estavam na lista dos salários mais baixos, contra 47,47% do ano 2000. Variação de 65,63%. No mesmo período, a Capital do Vale do Paraíba saiu do quarto lugar para a vice-liderança do ICMS: de 2,82% para 3,48%.
Campinas também entra nesse bloco de resultados satisfatórios, comparativamente aos do Grande ABC: em 1997 seu contingente de assalariados com até três mínimos era de 25,85%, contra 41,57% do ano 2000, ou crescimento de 60,81%. Campinas também sofre perdas de indústrias que estão optando por seu entorno metropolitano. Tanto que em 1997 sua participação no bolo do ICMS era de 3,02%, contra 2,85% do ano 2000.
Finalmente, para que se tenha desenho de corpo inteiro das mudanças que atingiram o bolso dos trabalhadores no período pesquisado, São Paulo apresenta crescimento de 201,28% nos empregos formais de até três salários mínimos: eram 24,16% em 1997 e passaram para 72,79% no ano 2000. A Capital continua atacada pelo vírus da desindustrialização e, como se observa, apesar de todo o glamour de atividades que o Grande ABC inveja no setor de serviços de valor agregado, não consegue estancar a derrocada salarial explícita nos números. Uma situação que também o ranking do ICMS da Capital explica, já que de 26,91% de participação em 1997 caiu para 26,07% no ano 2000.
A associação sistêmica desses dados e de tantos outros que permanentemente dissecamos cristaliza o veredito sobre a perniciosidade dos anos FHC para a economia do Grande ABC. Abordamos tantos ângulos econômicos e sociais convergentemente voltados à constatação de uma tragédia coletiva que não conseguimos suportar a letargia institucional da região. Estamos atravessando momentos delicadíssimos enquanto algumas prima-donas que se intitulam lideranças da sociedade especializam-se em picuinhas provincianas.
A pauta de prioridades do Grande ABC precisa ser completamente alterada. O que, por exemplo, os deputados estaduais apresentam como emendas ao presidente da Assembléia Legislativa não passa de, na maioria dos casos, esparadrapos sociais. Um olhar prospectivo sobre os macroproblemas da região requer, antes de tudo, capacidade coletiva de enquadramento nas lentes da objetividade.
São tão extraordinariamente preocupantes os números sobre a precarização do mercado de trabalho formal na região e no Estado de São Paulo (e no Brasil também) que não resisti: entrei em contato hoje de manhã, de meu escritório domiciliar, com um dos assessores técnicos da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do Município de São Paulo. Queria confirmar aqueles números que constam do estudo “Pobreza, Violência e Investimento Econômico no Estado de São Paulo”. Desconfiava que talvez pudesse haver algum equívoco. Qual nada! Solícito, Thiago Fonseca Ribeiro não só confirmou o enunciado que lhe transmiti resumidamente como complementou: “Estamos verificando permanentemente os dados do Caged (do Ministério do Trabalho) e apenas os empregos formais de até três salários mínimos apresentam resultados positivos, de crescimento. A rotatividade e o rebaixamento de salários são evidentes” — disse o especialista, sem deixar de questionar: “Como se vive com até três salários mínimos?”.
Duvido que o ministro do Trabalho e Emprego do governo Fernando Henrique Cardoso, Paulo Jobim, consiga responder sem cair no ufanismo. Em recente artigo que escreveu para a Folha de S. Paulo, o ministro deitou e rolou em triunfalismo. Disse que o Brasil tem a quinta maior PEA (População Economicamente Ativa) do mundo. Garantiu que os países europeus apresentam forças de trabalho muito menores. Sustentou que a força de trabalho ocupada nas seis maiores regiões metropolitanas do País passou de cerca de 15,1 milhões de pessoas em 1991 para 17,2 milhões de pessoas em 2001. Disse também que gerar postos de trabalho é fundamental e que a economia tem conseguido proporcionar mais oportunidades para o trabalhador brasileiro. Articulou também que o Ministério do Trabalho tem registrado, através da Rais, que o emprego formal cresceu de 23,7 milhões, em 1994, para aproximadamente 26,8 milhões, em 2001.
O ministro Paulo Jobim — e também todos os candidatos que disputaram a Presidência da República — nem de leve tocou na questão da qualidade, da precarização e da rotatividade do emprego formal. E muito menos no paiol do universo de trabalhadores informais que dobrou entre 1991 e 2000, segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Contra os 2,11 milhões de empregos formais (depreciados na maioria dos casos em termos salariais) criados entre 1991 e 2001, surgiram 2,43 milhões de postos informais, saindo de 6,17 milhões para 8,6 milhões.
Resumo de toda essa ópera: o Brasil precisa de desenvolvimento econômico sustentável e de imprescindíveis mudanças na legislação trabalhista, retirando do Estado os custos excessivos, transferindo os recursos para o bolso dos trabalhadores e para o capital de giro das empresas.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES