O recém-lançado IDV (Instituto de Defesa do Varejo) traz à luz do debate nacional cenário mapeado no Grande ABC sob uma de suas faces mais obscuras. Enquanto as 30 maiores cadeias varejistas do País decidiram lançar-se numa cruzada contra a informalidade, o Observatório Econômico de Santo André revelou que o comércio da região concentra a maior parte dos 44,5% dos trabalhadores que estão às margens da legislação trabalhista. As iniciativas parecem apenas complementares, mas se entrecruzam no emaranhado de números e estatísticas para mostrar que a informalidade no Grande ABC carrega, além das causas endêmicas, do excesso de burocracia e de carga tributária, os rescaldos do recente histórico de empobrecimento econômico regional.
A grita do varejo que paga imposto e registra empregados — como se autodefine o IDV — tem nuanças regionais com cores bem mais desbotadas do que os 40% a mais de competitividade que o Instituto computa aos fora da lei.
Qualquer análise macroeconômica transportada para o Grande ABC tem de levar em conta os reveses provocados primeiro pela desindustrialização e depois pela visão equivocada dos governantes públicos de que a conversão da atividade industrial para a de serviços se daria sem prejuízo para a população ou para os cofres públicos. “A informalidade no comércio da região não é surpresa e boa parte foi alimentada nos últimos anos pelo trabalhador que perdeu o emprego e vislumbrou a atividade como a primeira alternativa de sobrevivência. Por isso, o rastreamento da mão-de-obra que está fora do mercado formal ajuda a dimensionar o quadro” — diz o coordenador do Observatório Econômico, Antônio Carlos Schifino.
Parte dos problemas
A pesquisa do Observatório levou em conta microdados do censo econômico do IBGE de 2000 e da Pesquisa de Emprego e Desemprego de 2003 da Fundação Seade para desvendar apenas parte de problema crônico que, segundo especialistas, impede o PIB brasileiro de alcançar necessários 7% de crescimento ao ano.
Mesmo assim, o diagnóstico obtido no microcosmo regional é elucidativo o suficiente para sinalizar os estragos, cuja proporção nacional atinge mais de oito milhões de empreendimentos, segundo contas do Sebrae. A pesquisa do Observatório Econômico não estima o número de empresas ilegais estabelecidas no Grande ABC, mas traz a clara informação de que a maioria está no setor terciário. Somente o comércio de Santo André concentra 24% da mão-de-obra informal. Quando o estudo avança em nove subgrupos do setor de serviços, o índice sobe a 84%. Depois do comércio, são os serviços domésticos e a construção civil que ostentam os maiores índices, com 11% cada.
Os números são seguramente subnotificados e têm causas que vão além da alta carga tributária e da via crucis burocrática para abrir, fechar e manter em dia as obrigações fiscais e contábeis dos negócios. Os dois problemas são apontados por especialistas e por estudos internacionais como os grandes vilões da formalidade, mas no Grande ABC esse buraco é ainda mais fundo. “A informalidade regional é espiral que também se retroalimenta da precarização de negócios e do aumento da mortalidade de empresas, o que eleva a curva de exclusão social” — analisa o professor da Fundação Santo André e técnico do Observatório, Vladimir Cipriano Camilo. “Realmente, muitos demitidos da indústria tentam tornar-se comerciantes mas, sem experiência no ramo, canibalizam o setor ao montar negócios com poucas condições de competitividade” — simplifica o diretor operacional do Sindicato dos Empregados do Comércio de Santo André, Antonio Marsicano de Miranda.
Grandes redes dominam
O sindicalista tem participado de diversos fóruns internacionais sobre o assunto e integra grupo oficial que recentemente realizou espécie de blitz em 100 empresas de Santo André para detectar funcionários sem registro. O Sindicato dos Comerciários abrange as sete cidades e estima em 90 mil o contingente de trabalhadores da categoria. Desse total, 40% estão nas grandes redes, onde, segundo Antonio de Miranda, é sempre mais difícil burlar as regras trabalhistas.
Os números finais da sindicância ainda não foram computados, mas a experiência do dia-a-dia permite observação aparentemente óbvia: a maioria dos problemas foi encontrada justamente nas pequenas e microempresas. Estudo da Fundação Getúlio Vargas realizado em março deste ano em 50 mil negócios que ocupam até cinco funcionários em todo o País concluiu o mesmo que o Sindicato percebeu na prática: do total estudado, apenas 15% pagam tributos, 12,3% possuem CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) e 21,1% são constituídos judicialmente.
Fosso perigoso
A comprovação estatística de que a informalidade prolifera entre micro e pequenas empresas aumenta o fosso do problema no Grande ABC. O universo de empreendimentos na ilegalidade também agrava a fragilidade dos governos locais diante da dificuldade histórica de manter banco de dados atualizado sobre o movimento econômico regional. “Somente com fiscais na rua 24 horas seria possível listar o abre e fecha de comércios” — dimensiona o também coordenador do Observatório Econômico, Marcos Cesar Lopes Barros.
A observação pode ser facilmente remetida à realidade prática, já que os dados que a Prefeitura de Santo André dispõe não seriam confiáveis para referenciar novos investimentos. Assim, se alguém estivesse interessado em abrir novo negócio em Santo André, e batesse às portas da municipalidade em busca de informações ou orientações, correria risco iminente.
O próprio exemplo de Antônio Carlos Schifino é emblemático. Ele conta que empreendedor interessado em montar uma pizzaria foi aconselhado pela própria Prefeitura a não confiar redondamente no cadastro municipal e a percorrer a região onde pretendia montar o estabelecimento. Enquanto os dados oficiais apontavam quatro pizzarias, o rastreamento in loco revelou mais de 15 estabelecimentos do gênero.
Sem qualquer proteção
As dimensões nacionais da informalidade reveladas no estudo Eliminando as Barreiras ao Crescimento Econômico e à Economia Formal no Brasil, do Mckinsey Global Institute, também utiliza a mão-de-obra informal para mostrar que a ilegalidade é generalizada no varejo brasileiro. O estudo detectou 54% de trabalhadores sem proteção trabalhista no setor varejista e afirma que a evasão de tributos pode mais do que triplicar a renda líquida da empresa. O relatório reitera também que a distorção tributária brasileira contribui para a predominância do varejista informal.
O relatório inclui todas as atividades lícitas praticadas de forma irregular, o que exclui tráfico de drogas, jogo e prostituição. Dentro do universo legal, porém, o estudo separa as empresas que burlam planejadamente a lei daquelas que enxergam na informalidade a última opção de sobrevivência. Essa separação é importante porque coloca sob holofotes distintos problemas que não podem ter tratamento generalizado pelos governantes.
De um lado, está a reserva de trabalhadores sem condições de serem absorvidos pelo mercado de trabalho. Do outro, a baixa capacidade das autoridades em aplicar obrigações legais, tanto sob forma de penalidades quanto de fiscalização. “O varejo é o setor no qual a informalidade mostra a cara” — é enfático o presidente do IDV (Instituto de Defesa do Varejo), Flávio Rocha. A entidade decidiu mobilizar-se em torno da legalidade na tentativa de amadurecer a representatividade de um setor que sempre teve dificuldades de encontrar denominador comum, devido à diversidade.
Legalidade versus ilegalidade
O executivo, vice-presidente da Riachuelo, faz questão de ressaltar que não se trata de organizar os grandes contra os pequenos, mas de posicionar claramente os legais contra os ilegais. Flávio Rocha é incisivo e critica duramente o que chama de visão romântica do governo sobre a ilegalidade. Ele reconhece a necessidade de implantação de políticas públicas para evitar que o pai de família desempregado seja empurrado à sub-ocupação e perpetue a precarização de negócios de sobrevivência.
Por isso, pretende questionar de maneira insistente a apatia governamental diante de estruturas organizadas comprovadamente ligadas ao contrabando, lavagem de dinheiro e crime organizado. “Na vida real, a ilegalidade econômica é uma rede lucrativa com tentáculos muito poderosos” — insiste Flávio Rocha.
Por isso, o IDV prepara documento centrado em propostas para diminuir o custo do empregado com carteira assinada. A entidade planeja atuar mais efetivamente nas programadas discussões sobre reforma trabalhista no Congresso e utiliza como subsídios números para lá de expressivos.
O Instituto estima que cada emprego formal no varejo significa cinco na indústria de transformação e que a abertura das grandes redes aos domingos assegura 15% de vagas. O próprio presidente Lula da Silva admitiu que a discussão sobre informalidade precisa estar conectada à questão trabalhista.
O IDV estima ainda que o varejo brasileiro concentra mais de um milhão de estabelecimentos e 4,8 milhões de empregos formais. O grupo dos 30 maiores reunido no Instituto representam 28% do faturamento total do varejo. São 5,8 mil lojas e mais de 160 mil empregos diretos que retroalimentam perto de 1,3 milhão de vagas na indústria. “São números que não podem mais ser desprezados nos debates” — reforça o presidente do IDV.
Flávio Rocha, no entanto, não concorda com o fato de que a concentração do grande varejo, principalmente nas regiões metropolitanas, asfixia os pequenos negócios. Ele prefere amenizar a polêmica para ressaltar que a eficiência é pré-requisito natural para se manter no mercado. Por isso, não entra na complicada seara do poder de negociação que permite aos grandes varejistas, entre outras prerrogativas, impor preços à própria indústria. Em várias cidades européias, a instalação de hipermercados só é permitida após a avaliação do impacto do empreendimento nos negócios locais. No Grande ABC, a chegada das grandes redes iniciada pelo então Shopping Mappin ABC, no final da década de 80, varreu do mapa milhares de estabelecimentos familiares e de pequeno porte.
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