Jornalismo sem juízo de valor é jornalismo incipiente, inodoro, invertebrado. A responsabilidade pelo uso de juízo de valor deveria ser seriamente debatida, sem sujeitar-se ao tirano de plantão nas redações a obedecer ordens de acionistas mercantilistas, como está se tornando praxe na Imprensa cada vez mais negócio e menos função social.
Juízo de valor é introduzir agregado de informações que ajustem peças à realidade factual e histórica. A morte do senador Antonio Carlos Magalhães dividiu-se entre o doce mel dos lustradores de botas e hipócritas e o fel de profundidade de uma CartaCapital, de sinceridade cortante e elucidativa.
Os jornais de maneira geral trombeteiam distanciamento entre as páginas de opinião e as páginas de noticiário. Regozijam-se com o critério de suposta isenção dessa separação, como se juízo de valor não fosse atributo intrínseco de todos os espaços editoriais. Posso estabelecer juízo de valor numa reportagem sem corromper um milímetro o conceito de isenção. Se cometer pecados, devo pagar em forma de credibilidade dos leitores ou nos tribunais.
Escrevo este artigo a propósito de um editorial da edição de domingo do Estadão. Sob o título “A murdoquização do WSJ”, o jornal paulistano repete antiga cantilena de separação entre informação e opinião. O artigo do Estadão alerta para o que chama de providencial barreira que deveria separar em nome da ética e do respeito público o “Estado” (os interesses negociais das empresas editoras e os de seus anunciantes) e a “Igreja” (os critérios estritamente jornalísticos na abordagem dos fatos.
Nos parágrafos subsequentes do articulista que criticou duramente o controle acionário do Wall Street Journal pelo magnata predador Rupert Murdoch, lê-se exatamente o seguinte:
No Journal, a compartimentalização entre a página editorial e as páginas do noticiário é sagrada. Por exemplo, nenhum grande jornal americano o superou em matéria de apoio irrestrito à aventura iraquiana no governo Bush. Nem por isso, no entanto, o seu corpo de profissionais deixou de noticiar e publicar artigos contundentes e bem fundamentados sobre os resultados catastróficos dessa aventura.
O estranhamento do Estadão tem significado especial, porque não costuma agir assim. O Estadão é useiro e vezeiro em transformar páginas de opinião em pelotão de fuzilaria de forças políticas das quais discorda por razões que vão muito além da imaginação. E também torna inócua a pregação antieditorialização dos textos informativos, geralmente contaminados por preceitos opinativos.
No caso de domingo, por exemplo, a máscara caiu logo adiante das páginas de notas e informações. Sob o título auto-explicativo de contraditória editorialização (”Lula esquece passado e vê ameaça à democracia em crítica ao governo”), o Estadão avança o sinal que hipocritamente tenta parecer respeitar:
A democracia está em xeque, acusou na semana passada o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao irritar-se com apupos de pequenos grupos em Cuiabá e Campo Grande. “Com a democracia não se brinca”, ameaçou Lula, “porque o que vem depois dela é muito pior”. A reação não combina com o tom duríssimo com que, durante 24 anos, ele vergastou governos e personagens a quem fazia uma oposição implacável” — escreveu Carlos Marchi.
Cabem algumas ponderações que vão além da própria contradição do Estadão de defender páginas informativas sem flerte com o conceito de juízo de valor quando o texto parcialmente reproduzido aqui e tantos outros de todas as edições daquele jornal são uma sequência que ultrapassa o limite da informação pura e virginal (postura, repito, da qual divirjo completamente, entre outras razões porque é pura balela para enganar o distinto público).
O texto de Carlos Marchi é uma meia-verdade, modalidade preferida do Estadão para série de questões não só relativas ao governo petista. Aliás, outros jornais também são falsos puritanos.
A verdade da informação é que Lula da Silva, de fato, e os irmãos siameses do PT nas áreas sindical, social, acadêmica, econômica e tantas outras exerceram duríssima oposição aos governos de plantão durante as duas últimas décadas. Equivocaram-se em vários momentos, inclusive nas restrições sem fundamentação ao lançamento do Plano Real, enciumados com a avalanche de votos à candidatura de Fernando Henrique Cardoso.
A enganação da informação é a interpretação dada às declarações do presidente Lula da Silva. Lula e os petistas não se opuseram às vaias que se iniciaram de fato na cerimônia de abertura dos Jogos Pan-americanos. A grita petista é que o “Cansei”, movimento dito de reconfiguração ética deste País, foi manipulado por políticos e auxiliares afortunados de políticos na tentativa de vender gato de politização por lebre de indignação social.
E dessa operação o Estadão participou ativamente, omitindo dos leitores a origem da iniciativa, no escritório do almofadinha João Dória Jr, cuja especialidade, entre outras, é promover concurso de moda de cachorros de madame em Comandatuba. Além, é claro, de escorar projetos empresariais em manjadíssimos políticos de fichas nada lisonjeiras.
O movimento teria legitimidade caso fosse defendido às claras, como o fizeram no passado os barulhentos esquerdistas sob inspiração ou não de Lula da Silva. A tentativa de driblar a verdade do DNA da mobilização e a decisão do golpe político de explorar apressadamente a comoção nacional provocada pela queda do vôo da TAM sustentaram a resposta do presidente da República. Afinal, democracia dispensa mobilizações obscuras. Exceto se seus idealizadores se sentem constrangidos em defender bandeiras que jamais honraram — quer pela omissão, quer pela ação — e que, portanto, jamais poderiam empunhá-las sem ser colhidos em flagrante delito e evidente desmoralização.
De maneira geral, a mídia nacional é tão hipócrita quanto a maioria dos políticos. Isso é juízo de valor.
Total de 1894 matérias | Página 1
10/12/2024 UMA GOLEADA MAIS QUE FRUSTRANTE