Que o governo Lula da Silva tem o olhar mais candidamente voltado para os interesses do funcionalismo público, além dos pobres que recebem o Bolsa Família, ninguém pode negar, sob pena de requerer internação psiquiátrica.
Que o governo Lula da Silva não esconde interesses de fortalecimento do Estado, também não se discute — como sugere o avanço sobre o setor petroquímico.
Que o governo Lula da Silva carrega DNA típico do socialismo petista mais moderado, embora, como até mesmo ele reconheça, namore sem cerimônia com o baronato financeiro, é melhor nem discutir.
Tudo isso é tão verdadeiro quanto respirar, porque as circunstâncias fazem o governo.
Agora, o que fez a Folha de S. Paulo na manchete principal de primeira página da edição desta segunda-feira, não é o que se deve praticar como jornalismo pluralista, preciso e inatacável. “Elite do serviço público tem até 80% de aumento” foi a manchete da Folha, que remete à matéria assinada por Gustavo Patu, da sucursal de Brasília.
A reportagem constaria tranquilamente de uma segunda edição do livro “Meias Verdades”, que lancei sintomaticamente em 1º de abril de 2003, diante de 800 convidados, cujo escopo é a estrada da perdição do jornalismo diário, pressionado por fontes de informação, por excesso de trabalho, pela arrogância, pela carência de pesquisa, pela rentabilidade cada vez mais estreita, entre outras anomalias.
Primeiro reproduzo os parágrafos principais da matéria da Folha de S. Paulo:
Um ano depois de um pacote de reajustes salariais que até hoje mantém os gastos com pessoal da União em alta, a elite do funcionalismo público federal acumula ganhos acima da inflação, superiores aos padrões da iniciativa privada. Nas dez carreiras mais valorizadas do Executivo federal, todas de nível superior e quase todas exclusivas do Estado, o aumento real dos vencimentos desde o primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva varia de 15% a 80%, segundo levantamento da Folha. É mais que o suficiente para incluir os servidores, uma das bases políticas mais tradicionais do PT, entre os setores do mercado de trabalho mais bem-sucedidos dos últimos quatro anos — e para levar, neste ano, os gastos com pessoal acima do patamar de 5% do PIB pela primeira vez sob Lula. O menor ganho desse contingente no período, concedido aos pesquisadores em ciência e tecnologia com doutorado, corresponde ao maior percentual apurado pelas pesquisas do Datafolha entre empresas privadas da Grande São Paulo — nesse caso, a liderança fica com ocupações de nível básico ligadas à produção, que reúne, entre outros, mestres-de-obras, carpinteiros e eletricistas.
Segue a matéria da Folha de S. Paulo até que, nos últimos parágrafos, afirma exatamente o seguinte:
Das dez carreiras mais bem pagas hoje, só três tiveram ganhos reais entre 1998 e 2002. Mas os números desmentem o congelamento dos salários alegado pelos sindicatos.
Vamos, então, aos retoques necessários:
a) O estreitamento da contagem de aumento real de salários dos servidores federais ao período do governo Lula da Silva transmite a idéia de que a matéria só teria importância se não se desgrudasse dessa prerrogativa — porque assim poderia atingir o governo petista.
b) Ao dar elasticidade aos números, recorrendo-se a 1998 como ano-base, quase que integralmente o muro de sustentação de aumento real de salário foi ao chão.
c) Se houvesse preocupação em recuar ainda mais no tempo, recorrendo-se ao período de lançamento do Plano Real, mais que certamente estaria consumada não só a informação dos sindicatos dos funcionários federais — de congelamentos salariais — como, provavelmente, de recuo dos valores em termos reais, descontada a inflação do período. Como se sabe, o governo FHC amordaçou os salários do funcionalismo em níveis de perdas inflacionárias que determinaram, entre outras complicações, o apressamento de pedidos de aposentadorias como, também, de migração de técnicos especializados rumo à livre-iniciativa.
d) A matéria também não informa qual foi o nível de comprometimento dos gastos com pessoal dos governos anteriores. Refere-se apenas ao governo Lula da Silva, que ultrapassou a 5% do PIB (Produto Interno Bruto), sem indicar se os anteriores apresentaram desempenho superior ou não.
e) Ao selecionar apenas as 10 carreiras mais valorizadas, omitindo-se sobre as demais, a Folha transmite a idéia de que é possível analisar a saúde de um paciente em check-up restrito a exames cardiológicos, urológicos e de alergia a produtos químicos. Aliás, ao enunciar o fato de que são as carreiras de elite, apenas as carreiras de elite, a Folha praticamente concebe ao governo Lula da Silva uma carta de referência de cuidados com os recursos humanos, sempre tendo como base de comparação e análise as desídias do governo que o antecedeu, autor do mais vigoroso processo de esfacelamento dos quadros públicos do País — não bastasse a destruição de um terço da riqueza do Grande ABC.
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10/12/2024 UMA GOLEADA MAIS QUE FRUSTRANTE