Galvão Bueno, narrador esportivo da TV Globo, faz parte da cultura nacional, para o bem e para o mal. É manipulador, é arrebatador, é hipócrita, é sensacional, é nacionalista exacerbado, é tudo isso e muito mais. Principalmente o muito mais.
O que mais me intriga em Galvão Bueno é a idéia de que todos que o assistem sejam estúpidos, porque esse é o padrão de entendimento da Globo com relação aos telespectadores que lhe dão liderança de audiência há décadas, como ficou evidenciado numa polêmica que teve no comandante do Jornal Nacional, William Bonner, protagonista principal.
Durante a transmissão da final do Mundial de Clubes, domingo, vencida pelo Milan, Galvão Bueno anunciou pelo menos meia dúzia de vezes o que parecia um favor da Fifa ao Corinthians: a entidade internacional que rege o futebol finalmente reconhecera o título mundial do alvinegro, conquistado no Brasil na final contra o Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, em janeiro de 2000.
Como se sabe, oito equipes representantes de todos os continentes participaram da disputa. Galvão Bueno deu a notícia com aquele tom de conforto aos corintianos, cuja equipe foi rebaixada à Série B do Campeonato Brasileiro neste ano. Seria um presente de fim de ano. Uma média requentada, coisas de quem é extremamente hábil com as palavras.
Mais que dar a notícia óbvia de que o Corinthians fora mesmo campeão do mundo, Galvão Bueno esticou o anúncio ao proclamar no tom ufanista de sempre que, título reconhecido, o Brasil contava agora com nove campeões mundiais de clubes, relacionando os vencedores e suas respectivas conquistas. Mais tarde, mesmo a contragosto, não deixou de lembrar que também os argentinos têm nove títulos.
Acompanhei a narrativa de Galvão Bueno sem me emocionar porque, repito, o título de 2000 só é mesmo contestado por torcedores adversários, o que é um direito legítimo do código de relacionamento próprio de quem dá preferência a determinadas cores. Faz parte da opereta do futebol, na disputa de bastidores de torcedores famosos e anônimos, de conversas de botequim, esse tipo de contestação. Se fosse tudo preto no branco, perderia a graça.
Também durante a transmissão Galvão Bueno não escondeu mais uma vez antipatia aos argentinos, para fazer o jogo da audiência que lhe interessa porque todos sabem que brasileiros e portenhos não são exatamente hermanos.
Há uma disputa histórica que vai muito além dos campos de futebol. Não suportamos a idéia de que os argentinos sejam melhores culturalmente, que tenham mais refinamento, que sejam socialmente menos desiguais, que prefiram o tango ao samba. É por essas e outras que os achamos arrogantes. Nada diferente, entretanto, dos relacionamentos entre brasileiros. Os ricos querem que a classe média se dane. Os classe média querem que os pobres se lixem. É assim em todo o mundo, porque o mundo é feito de gente, e gente é assim mesmo.
O tom moralista das narrativas de Galvão Bueno engana apenas os incautos, porque no fundo no fundo ele pratica o jogo de conveniências sempre plugado no Ibope. Irritado, o narrador global elevou o tom quando criticou a geradora de imagens da final do Mundial por não repetir lances supostamente duvidosos, como, por exemplo, as emissoras brasileiras o fazem à exaustão. Galvão Bueno criticou reiteradamente o que chama de censura da Fifa.
Acordo no dia seguinte à decisão no Japão e eis o que leio estampado nos jornais, de forma discreta, é verdade, estupidamente escondidinha, é verdade, vergonhosamente burocrática, é verdade, sob as manchetes do Milan tetracampeão: a Fifa do presidente Blatter decidiu acabar com a polêmica sobre os verdadeiros campeões mundiais e reconhece que são apenas quatro, ou seja, o Corinthians em 2000, o primeiro, portanto, o São Paulo em 2005, o Internacional em 2006 e o Milan em 2007.
Como é possível que, conhecendo a declaração do presidente da Fifa, anunciada antes da final do Mundial, Galvão Bueno ocupa uma emissora poderosíssima e simplesmente manipula as informações?
A decisão é simples e direta: o Corinthians é o primeiro campeão mundial interclubes porque os títulos anteriores não tiveram a chancela da entidade internacional. Esta é a notícia que Galvão Bueno deveria ter dado aos telespectadores.
Poderia e mesmo deveria, se assim o entendesse, criticar a decisão, por considerar que se trata de uma afronta à história do futebol mundial, mas omitir o conjunto de dados é um desatino ético que ajuda a explicar a manipulação do painel eletrônico de votação do Senado, o mensalão que começou com os tucanos e tantas outras delinquências ferozmente denunciadas neste País. O jeitinho brasileiro de enganar o distinto público tem em Galvão Bueno um dos principais arautos.
Galvão Bueno e tantos outros cronistas esportivos deveriam tratar o futebol com mais responsabilidade porque a atividade é algo tão entranhada no brasileiro em geral, é uma manifestação tão intestinamente reveladora do caráter, que as trambicagens em nome do bom-mocismo, do politicamente correto, do fanatismo ou de qualquer outra razão são intuitivamente repassadas à vida cotidiana.
É por essas e outras que também no âmbito regional sou frequentemente obrigado a lidar com Galvões Bueno da mídia impressa, gente sem escrúpulos e sem compromisso com a verdade dos fatos. Gente que quer muito mais que estar de bem com o Ibope.
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10/12/2024 UMA GOLEADA MAIS QUE FRUSTRANTE