A mídia impressa e os tentáculos digitais sob sua guarda, que ainda não conseguem se sustentar financeiramente, são os principais derrotados nestas eleições presidenciais e o serão ainda mais no futuro. Salvam-se alguns endereços, mas quem se meteu na enrascada de fugir do compromisso do equilíbrio nas informações e análises está comendo o pão que o diabo amassou num redemoinho de credibilidade que dá dó.
A providencial e bem-vinda polarização entre esquerda e direita colocou a nu publicações tradicionais, jornalistas e articulistas convidados, os quais na maioria das situações se acomodavam numa disputa quase amistosa entre cúpulas da esquerda petista e da centro-esquerda tucana. A militância jornalística foi abatida pelos fatos.
A ideia de desclassificar o eleitorado ao estigmatizar os chamados fake news colou até determinado contexto e circunstâncias de represamento do ímpeto popular. Quando os representantes da chamada mídia tradicional mostraram garras de partidarismo sem pudores e sem limites nesta temporada de rompimento dos acordos tácitos ou informais de mandachuvas e mandachuvinhas federais, principalmente, o mundo desabou. Mas ainda não caiu a ficha de espectros que tratam os leitores como um conjunto de imbecis facilmente domesticáveis.
Engrenagem conhecida
Com dezenas de anos de carreira e observador da produção jornalística (á foi ombudsman oficial do Diário do Grande ABC em dois períodos e também ombudsman não autorizado durante longo tempo), conheço bem as engrenagens do mecanismo quase intocável de dilapidação da democracia no sentido mais abrangente do termo, paradoxalmente sob o manto de preservação de liberdades. E a sociedade cada vez mais esperta começou a detectar e denunciar mandraquismos travestidos de linha editorial.
Os marqueteiros dos jornais e revistas, principalmente, vão ter de se virar para superar a dinamitação do prestígio que as publicações imaginam ostentar.
Antes da abertura da temporada de votos a mídia tradicional foi a campo e preparou manifestação oficial contra fake news. Tratou-se de esperteza evidente: era preciso manter-se a salvo de desconfiança no tratamento do noticiário e das opiniões que viriam, atribuindo-se aos usuários de redes sociais e aplicativos toda a carga de pecados capitais da enxurrada de informações.
Fake news seriam passivo exclusivo e abusivo dos eleitores metidos a narradores populares. Jornais e revistas, principalmente, mas outros veículos de comunicação, também, contariam com o salvo-conduto de profissionais do ramo. E profissionais não errariam – ou não seriam vítimas fáceis de terceiros.
É dispensável dar exemplos de como a mídia tradicional queimou o próprio filme nos últimos meses. São tantos os casos de contradições, de tratamentos protetivos, de tratamentos discriminatórios, de falsificação dos fatos, de especulação sobre inverdades, enfim, de tudo que de nocivo se poderia imaginar no pior dos mundos da comunicação, que qualquer pesquisa a identificar o grau de desconfiança dos leitores causaria estragos.
Limpeza automática
Tenho experiência pessoal muito recente de acompanhamento de redes sociais e aplicativos. Acho que acertei na mosca ao adiar por tanto tempo um mergulho no espaço digital. O processo de depuração aguçada de mensagens está estabelecido e não tem volta. Ainda há muito lixo a ser banido dos celulares, mas já foi muito pior. Os próprios usuários começam a entender que mesmo em circunstâncias especiais como uma disputa presidencial radicalizada não vale a pena o auto descredenciamento como fonte repassadora ou criadora de notícias abusivas à inteligência.
Esse é apenas um dos pontos da multiplicidade de conclusões a que se pode chegar. Os leitores e eleitores estão cada vez mais atentos mesmo. E a cidadania, mesmo num mar ainda revolto de bobagens, está ganhando.
As mídias tradicionais acumulam cada vez mais perdas. A identificação de esquisitices editoriais já não é mais segredo indevassável. O coletivo contribui para desvendar o que o isolamento individual dificilmente alcançaria.
Quando um jornal força a barra com uma manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) sem consistência de provas, de testemunhos, ou seja, meramente especulativa, como se deu com a Folha de S. Paulo no caso da denúncia de uso supostamente abusivo do aplicativo Whatsapp na campanha do presidenciável Jair Bolsonaro, o questionamento agiganta-se. O leitor comum pode não entender de edição, como realmente não entende, mas compreende muito bem quando uma matéria elevada à exposição máxima de uma edição tem o objetivo estranho de partidarizar a cobertura eleitoral.
Lado obscuro
Talvez um dia deste prepare breve manual de como identificar a qualidade abrangente de um veículo impresso, sobretudo jornais e revistas de grande porte. Mas também de veículos regionais. Por mais que tenham evoluído no apontamento de fake news dos veículos tradicionais, os leitores e eleitores ainda têm muito a aprender. Eles só colhem frutos proibidos mais latentes, que lhes esfregam na cara manifestas tentações à manipulação.
A produção de jornalismo por profissionais temo selo de garantida de fidelidade aos fatos, mas não se pode descartar o lado obscuro, selvagem e interesseiro que supera em muito o senso de observação dos consumidores de informações, naturalmente menos versados nas especificidades que tornam uma mentira editorial bem trabalhada em algo que tem todo o formato e conteúdo de verdade absoluta.
Há diferentes formas de conduzir uma narrativa jornalística despida de ética e de compromisso com a verdade, submetendo-a, portanto, a interesses inconfessos. Os profissionais do ramo da mistificação não podem ser subestimados jamais. Como os maus marqueteiros das campanhas eleitorais, eles são especialistas em impactar algoritmos cognitivos, extraindo o máximo de vantagem. Nesse caso específico, vantagens por longo período.
Demonização das redes
Capturam-se mentes despreparadas no jogo de sedução. Usam velhos, estigmatizados ou glorificados clichês para dominar a mente dos leitores, ouvintes e telespectadores. São fake news ardilosamente impostas, as quais não têm parentesco algum com essa ferramenta das redes sociais, geralmente preparadas com entusiasmo, mas sem arte. Tanto que são mais facilmente denunciadas.
A demonização das redes sociais e dos aplicativos é o que resta à mídia tradicional em busca de salvação, mas é uma guerra perdida para muitos endereços tradicionais atropelados pelos fatos. Nada surpreendente, porque é notório mesmo a olhos pouco exigentes que a qualidade do produto chamado informação e também de algo de mais valor agregado, as análises, não guarda distância suficiente da desconfiança generalizada dos consumidores, aflorada nestes tempos eleitorais em que é indispensável menos palavras de ordem corporativas e mais capacidade de convencimento. Os leitores, ouvintes e telespectadores, mesmo com vieses em larga porção, tornaram-se também ombudsman. Trata-se de uma curadoria individual que se robustece e ganha força em forma de coletivismo nos canais digitais que vieram para ficar.
Palavra de quem reconhece e se preocupa também (e muito) com exageros dos novos agentes formadores de opinião, os quais, precisamente por se incomodaram com batalhões de oportunistas, tratam de processar medidas auto preservadoras do mundo digital como novo vértice de cidadania. Algo que mídias tradicionais ainda não se deram conta de realizar. Pior que isso: preferem fazer uso de marqueteiros em peças publicitárias desclassificatórias, endereçadas ao adversário da vez. Estão perdendo uma grande oportunidade de se reciclarem sob bases mais consistentes.
Quando essa nova onda se cristalizar nos municípios e regiões como a Província do Grande ABC, a museologia da comunicação abrirá espaço aos barrados do baile da transparência e responsabilidade. Chega de mandachuva e mandachuvinhas no entorno das publicações, submetendo-as a seus caprichos, interesses e malversação do dinheiro público.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)