Valeu o esforço da Mercedes-Benz para implantar técnicas de produção enxuta na linha de eixos de São Bernardo. Com aumento de 43% na produtividade e ganho de 30% no espaço físico para novas atividades, a fábrica entra no terceiro milênio com presença garantida no mapa da globalização da DaimlerChrysler, segunda maior indústria automobilística do planeta. Começa a produzir no próximo ano motores pesados e eixos para caminhões leves que serão feitos única e exclusivamente em São Bernardo para abastecer veículos manufaturados nas linhas do grupo no mundo inteiro. Um terceiro produto mundial, também exclusivo de São Bernardo, está em fase de estudos e deve ser aprovado em setembro. Especula-se que é o câmbio da van Sprinter, produzido na Argentina e que perdeu competitividade após o Real valorizado.
"Estamos felizes porque cumprimos a missão de garantir sobrevivência da fábrica no Grande ABC no conceito de produção mundial integrada da Mercedes-Benz" -- festeja o diretor da Divisão de Eixos, Luiz Tavares de Carvalho. A transformação que promoveu na fábrica de eixos rendeu à Mercedes o título de Destaque do Ano de LivreMercado, case que agora concorre aos Melhores do Ano do Prêmio Desempenho Empresarial. O resultado do enxugamento da produção é que o antigo estoque de mais de dois mil eixos, que ficava ao lado da linha de montagem, hoje se restringe a apenas duas unidades que atendem de imediato às necessidades da manufatura. Além de ganhar espaço, a fábrica faz economia de armazenagem de US$ 130 milhões/ano.
O investimento nos dois produtos mundiais já confirmados por Luiz de Carvalho é de US$ 600 milhões no triênio 1999/2001. O terceiro produto, que por enquanto é segredo guardado a sete chaves, terá aporte de mais dólares. A próxima meta da Mercedes brasileira é entrar na disputa pela exclusividade de produzir algum modelo da nova família de caminhões e ônibus mundiais da marca que será lançada entre 2001 e 2003. "A fusão da companhia alemã com a norte-americana Chrysler faz com que seja repensada toda a estrutura mundial da corporação. O novo conceito é integração. Por isso, teremos mais novidades" -- diz Luiz de Carvalho. No espaço conquistado com produção racionalizada a fábrica de São Bernardo faz atualmente os eixos e 70% da estamparia do Classe A, cuja montagem final é realizada em Juiz de Fora (MG). No mesmo local são produzidos os eixos que equipam o utilitário Sprinter, montado na Argentina.
Exemplo -- "A Mercedes está dando ao Grande ABC exemplo de que é possível modernizar e readequar às novas exigências de produção uma mão-de-obra que aprendeu a montar veículos pelo ultrapassado sistema taylorista" -- afirma o consultor José Roberto Ferro, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e um dos maiores especialistas brasileiros em indústria automobilística. Ele coordenou seminário que a Mercedes promoveu no mês passado sobre produções enxutas, o Lean Summit 99, com seu case como um dos pioneiros no País. O consultor não arrisca palpite sobre o futuro da indústria automotiva na região. Mas repete discurso habitual dos executivos das montadoras, no sentido de que tudo vai depender do mercado e da produtividade das fábricas.
José Roberto Ferro diz que hoje é mais fácil para uma montadora construir complexo novo e treinar mão-de-obra jovem para operar processos com elevado índice de automação. "Não é por acaso que o Brasil abriga alguns dos projetos mais avançados da indústria automobilística mundial, como as futuras fábricas da General Motors no Rio Grande do Sul e da Ford na Bahia" -- destaca. "O jovem aprende rápido os novos conceitos. Além disso, o brasileiro aceita mais facilmente as mudanças" -- enfatiza.
É justamente por causa dessa flexibilidade que o consultor prevê possibilidade de montadoras instaladas no Brasil se reposicionarem caso o mercado não responda logo com aumento das vendas de veículos. Nesse caso o Grande ABC vai sofrer mais, pois mantém métodos de fabricação que requerem investimentos elevados para serem modernizados.
A polêmica sobre possível concentração de toda a produção da Ford na Bahia, como insinua o governador de São Paulo, Mário Covas, é indício de movimentação nesse sentido. Não é demais lembrar que a fábrica da Volkswagen/Audi no Paraná tem espaço para mais produtos e que a futura planta da General Motors no Sul servirá de modelo à produção de carros pequenos nos Estados Unidos.
José Roberto Ferro enfatiza o acerto da Mercedes-Benz brasileira de ter reestruturado e inserido a fábrica de São Bernardo no mapa globalizado do grupo DaimlerChrysler: "A administração da montadora estava consciente da necessidade de racionalizar produção e a comunidade de funcionários mostrou disposição em participar. A Mercedes seguiu caminho certo ao automatizar só o necessário e flexibilizar a mão-de-obra para ligar fornecedores às células de manufatura". O diretor Luiz de Carvalho diz que a companhia só apelou para robôs em fases da produção que são insalubres ou de grande dificuldade para o trabalho humano.
Novo ambiente -- Resolver a equação tempo-espaço foi fundamental para enxugar a planta da Mercedes em São Bernardo e racionalizar sua produção. Quem percorre o interior da fábrica pela primeira vez não imagina o que foi o ambiente nos primórdios da indústria automobilística no Brasil, quando se trabalhavam seis dias por semana e quase sempre em três turnos diários. As máquinas ficavam tão próximas que quando uma quebrava era preciso desmontar a que ficava ao lado para realizar o conserto, interrompendo desnecessariamente parte ou etapa da produção. Espaço é o que não falta hoje. Na fábrica 2000, como a planta de São Bernardo é chamada pelos executivos, a ordem é trabalhar de forma enxuta para atender a quem de fato compete aprovar ou rejeitar qualquer tipo de produto -- o cliente.
O primeiro passo da Mercedes para operar mudança tão radical no processo de produção foi dado há dois anos e meio, com análise do perfil dos trabalhadores. O estudo indicou rumos para motivar funcionários à aceitação dos sistemas modernos. Vagas de chefias foram reduzidas em 34% porque a companhia constatou que 90% dos problemas que ocorrem dentro de uma empresa, e comprometem a produtividade, envolvem aspectos do comportamento humano, como opinião, competência e orgulho, frequentemente manifestados pelos ocupantes de escalões mais elevados. Também foi reduzido pela metade o número total de funcionários -- de 22 mil para 11 mil --, mas aí o motivo foi outro: adequação ao novo processo. Com chefes a menos, e trabalhadores reorganizados racionalmente em células de produção, a linha de montagem ganhou agilidade a mais.
Corre dentro da Mercedes a piada de que só foi possível mudar tanto uma fábrica, com tamanha liberdade na tomada de decisões, porque um oceano -- o Atlântico -- a separa da matriz, na Alemanha. Humor à parte, o fato é que a bem-sucedida experiência de São Bernardo está sendo repassada com sucesso para plantas do grupo DaimlerChrysler no mundo inteiro. A fábrica recém-inaugurada em Juiz de Fora (MG), a primeira da montadora a produzir automóveis fora da Alemanha, também bebe na fonte do Grande ABC. Até porque a meta em São Bernardo é reduzir de cinco para três dias o prazo de entrega das peças de estamparia do Classe A, o que significa obrigação de andar mais rápido na planta de Minas Gerais para não sobrar estoque.
José Roberto Ferro entende que a Mercedes adotou processo de manufatura mais ágil que o da fábrica de caminhões e ônibus da Volkswagen em Resende (RJ), que chegou a ser considerado revolucionário. A Volks monta veículos em consórcio modular com autopeças sistemistas, também chamadas submontadoras. Módulos de caminhões e ônibus são produzidos fora da fábrica e depois implantados nos veículos, já na linha de montagem, pelos próprios sistemistas. À Volkswagen compete gerenciar o processo, cuidar do design, controlar qualidade e fazer distribuição. Como a montadora não põe a mão diretamente na manufatura, sua marca nos veículos é uma grife. Da mesma forma que é grife a marca Nike nos tênis e roupas que têm produção terceirizada em várias partes do mundo.
A Mercedes, ao contrário, optou por modelo que a mantém estreitamente comprometida com todas as fases de produção de ônibus e caminhões. Com o ganho de espaço proporcionado pelo enxugamento, a montadora amplia a manufatura de componentes próprios e cria maior sinergia com a linha de montagem. Fornecedores estão ligados a células de manufatura que se unem a supermercados de peças e abastecem linhas de produção de conjuntos. Só quando se faz necessário é que os conjuntos são conduzidos à etapa final da construção do veículo, proporcionando ganho de tempo e escala. O sistema permite que seja atendida com mais agilidade a necessidade do cliente, cada vez mais exigente tanto em qualidade quanto em prazo de entrega da encomenda.
Ao comparar os dois processos, José Roberto Ferro analisa que a planta da Volkswagen se tornou um grande almoxarifado porque não agrega valor, enquanto a Mercedes atende a objetivos maiores ao se especializar na fabricação de componentes como eixos e motores. O consultor diz que o Brasil demorou muito tempo para descobrir as vantagens da produção enxuta porque não olhou com mais atenção para duas montadoras japonesas instaladas no País -- Honda, de motocicletas, e Toyota, de utilitários -- que sempre colheram bons resultados em qualidade e custos porque fabricam produtos por esse sistema. "Os conceitos de produção enxuta estão sendo mais disseminados agora pelos mais novos praticantes no Brasil, a Mercedes-Benz e a General Motors" -- afirma o consultor.
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