Economia

Que ICMS mais
maluco é esse?

DANIEL LIMA - 05/09/1999

Uma histórica distorção na distribuição do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), tributo que devolve aos municípios um quarto dos recursos arrecadados pelo Estado, está contribuindo para transformar em barris de pólvora cidades e regiões mais densamente habitadas, além de favorecer o recrudescimento da guerra fiscal. Maior fonte de receitas da quase totalidade das prefeituras do País, o ICMS tem escandalosa deformação estrutural. O imposto premia municípios seletivamente industrializados, por isso de baixa população. Enquanto isso, penaliza municípios em processo de esvaziamento industrial e que precisam atender a população muito mais volumosa, atraída ao longo dos anos pela fartura de empregos que estão sumindo com a evasão de fábricas e introdução de novas tecnologias e processos. 

Santo André e Paulínia são exemplos extremos do quanto a legislação do ICMS precisa de reparo para permitir reequilíbrio no atendimento social dos contribuintes. De acordo com índices do Diário Oficial do Estado e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), cada morador de Paulínia, complexo químico/petroquímico na região de Campinas, receberá este ano R$ 2.249,17 em forma de repasse de ICMS para ser aplicado pela Prefeitura em salários do funcionalismo, obras, educação, transporte e outras atividades típicas do Poder Público. Pequena cidade com apenas 44.431 habitantes, Paulínia somará este ano repasse de R$ 99,933 milhões. Já Santo André, com 625.564 habitantes e repasse de R$ 101,349 milhões, contará com recursos equivalentes a R$ 162,01 para cada morador. Uma diferença superior a 1200% per capita em favor de Paulínia. 

São Paulo, Capital do Estado, também é atingida em cheio pelo descasamento entre o método de distribuição do ICMS e a realidade de violência e baixa qualidade de vida que permeia as regiões de características metropolitanas. Cada paulistano terá este ano disponibilidade de apenas R$ 159,60 no orçamento da Prefeitura, contra média de R$ 170,96 do Estado.  

Guerra fiscal -- A grade que define a transferência de recursos do ICMS para os mais de 500 municípios paulistas favorece a disputa por investimentos industriais mesmo que beneficiados por isenção parcial ou até total de impostos municipais, além das costumeiras vantagens de terrenos e infra-estrutura gratuitos. Afinal, o peso do Valor Adicionado na composição do ICMS a ser repassado a cada Município é de 76%, contra apenas 16% relativo à população. Essa disparidade significa o contínuo agravamento dos problemas sociais nas grandes cidades, principalmente na Região Metropolitana de São Paulo, que há mais de uma década acusa célere debandada de indústrias sem redução do inchaço da população. Valor Adicionado é um indicador de atividade econômica que mede o quanto a tecnologia e o trabalho agregam valor a uma mercadoria -- a diferença entre a madeira e a cadeira, entre o granulado petroquímico e um farol de veículo. 

O desastre de Santo André no mapeamento da distribuição do ICMS é o mais contundente de São Paulo e expõe as fraturas das perdas de recursos orçamentários controlados pelo Estado. Em 1976, quando centralizava força econômica no setor industrial e seu Índice de Participação do ICMS atingia o pico de 4,71, Santo André contava com (em valores de hoje) R$ 274,7 milhões de receitas com o imposto, o que significava mais de 70% de todo o orçamento anual. Neste ano, por força de ter o Índice de Participação do ICMS reduzido a 1,6147, Santo André receberá apenas R$ 93,9 milhões de repasse do Estado. Uma queda de dois-terços, ou o equivalente a três vezes o montante que será aplicado este ano no setor de educação do Município.

A participação do ICMS no volume de receitas de Santo André caiu para 37% e o quadro orçamentário só não é catastrófico porque houve compensação parcial com o sensível aumento das receitas diretas, especialmente com o ISS (Imposto Sobre Serviços), IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e também com a criação do IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores), cuja arrecadação é estadual mas repassa 50% aos municípios, de acordo com o volume recolhido individualmente. Como se observa, além de os contribuintes perderem investimentos públicos com a queda dos repasses de ICMS, tiveram de enfiar a mão no bolso para recompor parte das receitas do Município.

O prefeito Celso Daniel, de Santo André, tem todos esses cálculos à mão, preparados pelo secretário de Finanças, Luiz Carlos Afonso, mas ainda não introduziu o assunto na pauta de debates do Consórcio Intermunicipal de Prefeitos e tampouco na Câmara Regional. É improvável que venha a propor reforma ao governo do Estado. O secretário Luiz Carlos Afonso afirma que a distorção é grave e cita nominalmente os extremos de Paulínia e Santo André. Só não chega a dizer que o problema é maior do que a guerra fiscal entre municípios e também entre Estados. "Os dois precisam ser resolvidos" -- garante. "A governabilidade dos grandes municípios está-se tornando cada vez mais difícil e problemática" -- ressalta. 

A explicação para Santo André não tomar a iniciativa de propor mudanças na grade de cálculos do repasse do ICMS está na unidade do Consórcio e da Câmara. Basta observar a tabela de distribuição do imposto ao Grande ABC para verificar que dois dos sete municípios aparentemente não teriam interesse em engrossar o coro por mudanças: São Caetano recebe R$ 487,62 per capita e São Bernardo, que vem logo a seguir, tem devolvidos R$ 378,02 por habitante. A situação de Diadema e de Mauá é de certa proximidade de valores em relação à média do Estado: Diadema recebe R$ 256,43 per capita e Mauá R$ 215,14. Santo André (R$ 162,01), Ribeirão Pires (R$ 155,48) e Rio Grande da Serra (R$ 68,01) estão na linha de baixo da média estadual.

Embora São Caetano e São Bernardo estejam bem à frente dos demais municípios da região, eventual mudança de peso -- com aumento do valor relativo da população e redução do Valor Adicionado -- não colidiria frontalmente com os interesses dos prefeitos Luiz Tortorello e Maurício Soares. A situação de São Caetano não é tão fácil de ser resolvida em nome da integração regional, mas estudos detalhados podem comprovar que São Bernardo praticamente não perderia nada. É até possível que São Bernardo venha a ganhar, porque o que cederia com a necessária redução do peso do Valor Adicionado acabaria por ser favorecido pelo indispensável aumento do peso da população. Os 660.396 habitantes de São Bernardo, só inferiores às populações da Capital, de Guarulhos e de Campinas em todo o Estado, oferecem a possibilidade dessa recomposição sem transtornos. Já a São Caetano de 140 mil habitantes e duas vacas sagradas de arrecadação -- a General Motors do Brasil e o terminal de produtos da Petrobras -- poderia opor resistência. 

Discreto e preocupado com a repercussão política e institucional do assunto, à primeira vista explosivo no território regional e complexo para o governo do Estado, o secretário de Finanças de Santo André, Luiz Carlos Afonso, torce para que os debates sobre a reforma tributária no Congresso Nacional alcancem também a essência de parte do desarranjo socioeconômico dos grandes municípios provocado pelo tortuoso repasse do ICMS. Espera o executivo público que os legisladores federais, independente de eventual ação de deputados estaduais, lancem olhos de preocupação sobre a insuportável combinação de refluxo de tributos industriais e aumentos populacionais.

"Fomos o Município mais atingido no Estado de São Paulo nos últimos 20 anos. Outros estão sofrendo o mesmo problema de forma mais gradual, mas irreversível. Quem achar que está livre e não se preocupar com a situação vai demorar para acusar as dores que estamos sentindo, mas não escapará" -- projeta Luiz Carlos Afonso. 

Reforma tributária -- Ary Silveira, diretor da ASPR, empresa especialista em consultoria tributária e financeira com sede em Santo André, afirma que a discrepância nos pesos relativos entre população e Valor Adicionado para definir a distribuição do ICMS é falha que precisa ser corrigida para que os problemas nas grandes cidades sejam minimizados. Ele lembra que o atual projeto de reforma tributária, que tem como relator o deputado Mussa Demes, prevê a extinção do ISS e a criação do IVV (Imposto sobre Vendas a Varejo). "Se instituído, o IVV incidirá sobre vendas a varejo ou sobre prestação de serviços efetuados a não contribuintes do novo ICMS. No início, e portanto por algum tempo, a alíquota máxima do IVV seria de 3%. A criação do IVV seguiria o que é praticado nos Estados Unidos" -- afirma.

Para o consultor, são muitas as dificuldades para implantação do IVV. Ele lista algumas dessas questões: 

 O modelo é o norte-americano, mas estamos no Brasil e com isso as diferenças econômicas, culturais, políticas e principalmente de fiscalização são muitas. 

 Ainda quanto à fiscalização, imagine fiscalizar os mais de 5,5 mil municípios brasileiros?

 A lei que instituirá a regulamentação será municipal, como hoje ocorre com o ISS, portanto brutalmente onerosa para o acompanhamento das mudanças.

 Para a alíquota inicial de 3%, há previsão de que poderá ser alterada. Portanto, a guerra fiscal estará institucionalizada e com poder de fogo muito aumentado, pois o ISS é expressivo para pouquíssimos municípios brasileiros e com o possível IVV todos terão de instituí-lo e cobrá-lo, sob pena de quebrar financeiramente. Os prefeitos têm motivos de sobra para estar extremamente preocupados. 

"Portanto -- diz Ary Silveira -- se hoje existe o fator mencionado de desequilíbrio e de injustiça com a distribuição do ICMS aos municípios e de alteração impensável neste momento, pode ficar ainda muito pior" -- antecipa. 



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