Não tenho a menor ideia de até quando vai a série que recupera a história do melhor jornalismo regional do País, exercido durante duas décadas pela revista LivreMercado e mantido de forma agudamente autoral com CapitalSocial. Dei uma verificada na lista de matérias que estão na fila, publicadas em 1998, portanto há 20 anos, e cheguei a um número cujo esgotamento invadirá a próxima temporada. São 69 textos escritos por diversos jornalistas que formaram com poucas alterações o elenco editorial de LivreMercado.
Nos próximos dias vai se completar o décimo ano em que LivreMercado em formato impresso deixou o mercado editorial brasileiro. Em dezembro de 2008 a publicação, não o acervo editorial que segue sob meu controle, passou às mãos de um empresário do ramo de recuperação de impostos.
Talvez tenha sido um dos dias mais felizes de minha vida quando um motoboy buzinou em frente à minha residência e me entregou uma cópia do contrato lavrado em cartório. O sentimento de alívio deu lugar na última década a uma qualidade de vida muito superior ao que vivi durante várias décadas em outros veículos de comunicação. Minha produtividade jornalística aumentou consideravelmente.
Não vou entrar em detalhes sobre os motivos que me levaram às alturas naquela alforria. Fui o último dos moicanos da direção da publicação que decidiu abandonou o barco. Os demais deram no pé correndo. Detinha apenas 20% das ações até um ano antes. Assumi o controle da editora já em situação financeira complicada. Segurei as pontas até onde foi possível e só o fiz porque era idiota o suficiente para não deixar os leitores na mão. Achava que meu compromisso social não tinha limites. Quem me conhece sabe que não estou a cultivar autobajulação.
Mercado cadente
Também não vou aprofundar detalhes sobre aquela operação que nem poderia ser chamada de venda, porque LivreMercado foi repassada em troca das dívidas. Uma merreca de dívida ante a importância que LivreMercado representava. Mas ali já chegara à conclusão que seguir com o projeto seria dar murro na ponta de faca. A região já dava provas consolidadas de que não absorveria uma publicação daquele nível, embora custasse menos que uma editoria do Diário do Grande ABC. Ou seja: a editoria de Economia do Diário do Grande ABC, que supostamente concorreria com LivreMercado, reunia mais profissionais e mais custos salariais que a redação inteira de LivreMercado, cujo espectro editorial abrangia outras áreas.
Acho que perdi o foco. Não pretendia falar de LivreMercado fora das quatro linhas editoriais. Aquelas duas décadas quase completas da revista ansiosamente aguardada a cada 30 dias mostraram uma região que nenhuma outra publicação chegou aos pés. Faço um desafio aos leitores. Devassem os acervos das demais publicações da região. Comparem. É covardia. Essa é a razão principal de transformar o produto editorial impresso de LivreMercado em patrimônio digital de CapitalSocial.
Longo aprendizado
Não é por nada não e tampouco o que vou dizer em seguida tem o sentido de humilhar quem quer que seja, mas quem teve o cuidado de acompanhar a trajetória de LivreMercado sabe que os demais veículos de comunicação da região, de ontem e nem se diga de hoje, não resistem a qualquer ângulo de embate. Na maioria dos casos os “concorrentes” avalizam as forças de pressão e os mandachuvas da região.
LivreMercado cometeu equívocos por acreditar demais nas lideranças políticas, principalmente, mas sempre salvou a reputação de confiança e credibilidade com contrapontos. CapitalSocial é melhor nesse sentido porque basicamente é uma publicação cética, desconfiada, atrevida e desafiadora. Essa é uma das vantagens de não depender do departamento de publicidade nos padrões convencionais.
Nossa equipe era porreta. LivreMercado mantinha personalidade editorial incomum no jornalismo brasileiro. Da primeira à última página a impressão que se passava era de que um único jornalista escrevera todas as matérias. Havia, portanto, uma personalização de estilo que se refinou a cada dia, a cada edição.
Mais que inspiração
Nosso referencial sempre foi a revista Exame. Mas fomos mais inovadores editorialmente. Não nos fixamos exclusivamente em economia. A sociedade como um todo, inclusive as chamadas Madres Terezas, mulheres que atuavam nas periferias da região em proteção aos excluídos, constavam prioritariamente da agenda. Tanto que ganharam espaço especial no Prêmio Desempenho, o maior evento socioeconômico que uma região já produziu. Foram 15 temporadas seguidas e 1.718 troféus entregues. Tudo com auditoria independente externa. Nada a ver, portanto, com premiações encomendadas, ao gosto do financiador.
É por isso e também por tantas outras coisas que me sinto na obrigação de repassar o legado de LivreMercado às páginas digitais de CapitalSocial. A sociedade desorganizada local tem um referencial singular no jornalismo regional brasileiro. LivreMercado era diferenciada no tratamento a qualquer informação.
Aliás, informação era apenas a matéria-prima do que se leria nas páginas, em forma de análise, de provocação, de contestação, de sugestão, de encantamento, de desesperança. “Leitura o mês inteiro”, primeiro mote com o qual procurei sintetizar a linha editorial de LivreMercado, combinava com o papel mais robusto utilizado desde a primeira edição, em março de 1990. O papel jornal que poderia imprimir cada edição, iria para o lixo no dia seguinte. Não combinava com o conteúdo.
Ritmo necessário
Não é por outra razão senão o compromisso em reavivar um passado de jornalismo regional inigualável que me dedico à incorporação do acervo de LivreMercado ao banco de textos de CapitalSocial. Consumir os arquivos de LivreMercado é uma sugestão que passo a todos os eleitores.
Diria que é impossível entender a região destes tempos sem atentar para o repasse diário de matérias publicadas na LivreMercado. Um repasse do qual cuido pessoalmente ao selecionar as matérias mais importantes em cada tomo da coleção e encaminhar à editoração de uma profissional sensível à proposta.
Ao restarem 69 textos da temporada de 1998 fico com a impressão de que estou indo devagar demais na série que expõe o passado da região sob a ótica criteriosa de LivreMercado. Poderia acelerar os passos, claro, mas entendo que no ritmo que vamos, de um ou duas matérias a cada dia, fornecemos aos leitores a possibilidade de consumir os textos com suficiente fôlego interpretativo e analítico. Os insumos de LivreMercado devem ser consumidos com vagar, sem a pressa compulsória destes tempos de mídias sociais.
Oportunidade única
Não é pedantismo repetir sempre que LivreMercado tornou-se a única publicação da região com uma característica incomum, ou seja, de metabolizar informações em forma de compreensão e articulação mais aguda dos fatos. Quem não teve a oportunidade de acompanhar em tempo real, mensal, aquelas páginas, não pode perder a oportunidade de mergulhar nos textos que chamamos à leitura a cada dia.
Espero continuar a levar com absoluta fidelidade a reconstituição de uma obra que é o maior orgulho de minha vida profissional, juntamente com CapitalSocial que veio na sequência. Todos os demais produtos de que participei (Estadão, Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, O Repórter, Radio Luz, Rádio ABC, Gazeta da Mooca, entre outros) tornaram-se importantes à minha carreira, mas foram carros usados. LivreMercado e CapitalSocial são fabricação própria.
Total de 1884 matérias | Página 1
13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)