Rua Catequese 715, Santo André. Esse endereço tem história. Há exato meio século abriga um negócio que se mantém pela tradição e resiste aos conceitos de modernidade. A fachada é a mesma há mais de 30 anos. Clientes tradicionais hoje são pais e avós de gerações que optaram por manter fidelidade ao comércio que funciona ali. O dono é um japonês que os vizinhos chamam de Joaquim. O nome do negócio -- Lavanderia Gaucha (assim mesmo, sem acento) -- soa estranho para quem vê atrás do balcão o sorridente e sempre disposto proprietário de rosto oriental disparar um simpático bom dia.
Mas tudo se explica com naturalidade. Tsutomu Kitaura, o dono do negócio, é conhecido como Joaquim porque até pouco mais da metade do século era hábito aportuguesar nomes de imigrantes japoneses que vieram do outro lado do mundo tentar a sorte na decadente lavoura do café. A lavanderia se chama Gaucha porque Tsutomu se envolveu com a cultura e as belezas dos Pampas num período da juventude em que trabalhou como motorista de caminhão na transportadora Expresso Rio Grande do Sul.
É certo que o sucesso do imigrante japonês contou intuitivamente com providencial simpatia gerada pelo apelido brasileiro e a homenagem que prestou aos gaúchos, povo da terra que o acolheu. Mas naquela época o mundo dos negócios era território virgem para o Marketing. A lavanderia teria o mesmo êxito e gerado idêntica credibilidade se todos chamassem Tsutomu pelo nome verdadeiro e o estabelecimento fosse denominado Lavanderia Otaru, em homenagem à cidade japonesa da Província de Hokaido onde o comerciante nasceu há 74 anos. Para um negócio prosperar valiam duas regras básicas: desejo de empreender e esforço físico. Tsutomu soube conjugá-las com inteligência e suor. Foi esse o mote.
O cenário ao redor da Rua Catequese era diferente do que se vê hoje, quando o imigrante e a mulher Tomiko -- cujo nome foi aportuguesado para Tereza -- abriram as portas da Lavanderia Gaucha, em janeiro de 1950. Eles haviam se casado poucos dias antes, em 24 de dezembro de 1949. Abrir negócio próprio para iniciar a nova vida era o principal plano dos tempos de namoro e noivado. "Até a véspera do casamento eu dirigia ônibus. Fazia uma linha do Centro de Santo André até Capuava" -- lembra Tsutomu. A Rua Catequese era de terra e tinha poucas moradias. A via calçada mais próxima era a Avenida XV de Novembro, na época coberta com paralelepípedos. Santo André, a exemplo dos demais Municípios do Grande ABC, começava a se industrializar. Havia no ar um misto de romantismo e agitação. Prenúncio de mudanças radicais que iriam transformar o cenário.
Desafio ao tempo -- Quem vai pela primeira vez à lavanderia de Tsutomu pode ficar com a impressão de que o negócio está com os dias contados. A aparência é mesmo de estabelecimento que não se modernizou -- do balcão às mesas de passar e aos varais onde ficam penduradas roupas prontas para entrega. Respira-se ar do passado. O imigrante japonês admite que a Gaucha foi mais próspera. Entre os anos 60 e 80 teve frota de quatro peruas Kombi para fazer entregas em domicílio e empregou até 15 funcionários. Foi um período em que a produção chegou a 300 peças de roupas lavadas por dia. "Tínhamos grandes clientes na indústria, como Pirelli, General Motors e Volkswagen" -- recorda Tsutomu. Hoje a produção é de 30 peças lavadas por dia. A lavanderia não tem mais frota de veículos. Funcionários foram substituídos por netos do proprietário e a limpeza que vigora no ambiente de trabalho produtivo fez desaparecer a clientela industrial.
Será que isso significa o fim do negócio? Tsutomu garante que não. "Ainda vamos durar muito" -- afirma. E aposta todas as fichas na tradição. "Lavanderias modernas e rápidas que proliferam hoje não mantêm padrão de qualidade idêntico ao nosso. Muitas nem passam as roupas. Fazem apenas lavagem a seco, que não tira diversos tipos de manchas. Nós fazemos primeiro a lavagem a seco e depois, sempre que necessário, lavamos também com água. Temos cuidado redobrado porque essa é nossa cultura. Não há mancha que resista. As peças são passadas com muito zelo porque é preciso preservar e garantir a qualidade do tecido. Temos o espírito do artesão" -- enfatiza o imigrante. Não há computador na Lavanderia Gaucha. O controle de clientes e prazos de entregas é feito por fichas, processo superado pela tecnologia, mas não obsoleto sob o ponto de vista da eficiência.
Cinquenta anos mudaram muito pouco o sistema de trabalho da Lavanderia Gaucha. Máquinas da época da inauguração foram trocadas por similares modernas que executam as mesmas tarefas: lavagem a seco e com água. O quartinho antes utilizado como estufa -- roupas ficavam penduradas em varais enquanto caixas com carvão em brasa aqueciam o ambiente -- foi substituído também por máquina, mas o processo é o mesmo. Ferros de passar dos anos 50 foram trocados porque os de hoje soltam vapor e simplificam o serviço. Antes, para deixar roupas sem rugas e com vincos bem firmes, o tintureiro tinha de polvilhar água no tecido com ajuda de uma escova ou, em alguns casos, colocar pano úmido entre a peça de roupa e o ferro. "Qualidade só se garante com o processo antigo de lavagem. E meu negócio é, acima de tudo, qualidade" -- assegura Tsutomu, convicto de que os modernos processos de lavagem ainda têm muito a evoluir.
Os olhos do imigrante japonês brilham quando recorda de clientes tradicionais que fizeram a Gaucha prosperar e durar 50 anos. Um deles foi o ex-prefeito Fioravante Zampol, que morava próximo à Rua Catequese e fazia questão de ter roupas lavadas ali. Benedito Gonzaga, contador que em 1950 tinha escritório na Avenida Portugal, também em Santo André, foi oficialmente o primeiro cliente. "Ele cuidou da papelada para abertura da firma e fez questão de estrear as máquinas" -- conta Tsutomu. O alfaiate Antonio Rocha Pio é outra prova de fidelidade: há 35 anos deixa suas roupas aos cuidados da lavanderia. "O padrão de qualidade é inigualável. Confio plenamente no serviço" -- diz o profissional da costura.
Vestido de noiva é a roupa que dá mais trabalho para ser lavada. Tsutomu diz que o processo tem de ser extremamente artesanal para preservar a qualidade de bordados e pequenos apliques. Cuidados especiais são reservados às jaquetas de couro. "Muitas vezes não é couro legítimo e a lavagem a seco deixa a pele sintética dura, estragando o material" -- ensina o comerciante. Lavar fantasia de escola de samba é serviço que a Gaucha rejeita. Tsutomu diz que é impossível realizar trabalho artesanal devido à quantidade de peças. "Se colocar na máquina, os enfeites se desprendem do tecido" -- alerta.
Vocação acidental -- O mundo da juventude de Tsutomu era mesmo outro. Quem consegue imaginar nos dias de hoje um jovem com formação escolar precária tornar-se empreendedor bem-sucedido a ponto de garantir aposentadoria e velhice tranquilas? Pois foi justamente a falta de uma profissão -- além da de motorista, que o fazia ser empregado e não patrão -- que levou o imigrante japonês a optar pela lavagem de roupas aos 24 anos de idade. "Não foi difícil aprender. Minha mulher ajudou muito. Agora espero que os netos continuem firmes no negócio" -- afirma Tsutomu. Edson Taniguchi, um dos netos do comerciante, trabalha em tempo integral na lavanderia. É um faz-tudo. Atende no balcão, aciona máquinas para lavagem e passa roupas.
Tsutomu tinha seis anos de idade quando a família desembarcou no Brasil, vinda no navio Manira Maru. O ano era 1932 e, apesar de decadente, a cultura do café ainda se constituía no pilar econômico do País. "Meus pais imigraram para trabalhar nos cafezais. Primeiro tentaram a sorte nas lavouras de Ribeirão Preto. Depois passaram por fazendas de Taubaté e Jundiaí. A família chegou em Santo André no início da década de 40" -- recorda o comerciante. Como só sabia cuidar de plantações, a família Kitaura instalou-se na Fazenda Oratório, atual Parque das Nações, para plantar principalmente batata, milho e repolho. Naquela época, praticamente todo o 2º Subdistrito de Santo André era zona rural. Durante algum tempo Tsutomu trabalhou com os pais na lavoura, até arrumar emprego de motorista de caminhão.
O imigrante nascido na Província de Hokaido mantém hábitos da cultura japonesa. Não dispensa algas, sushis e tofu na alimentação. Frequenta em Santo André a Associação Cultural ABC e a Associação de Sumô que funciona no Parque Regional Duque de Caxias. Mas faz jus ao nome brasileiro Joaquim quando devora uma feijoada ou assiste festivamente a um jogo de futebol. Tsutomu apenas fala japonês. Não lê e nem escreve na linguagem dos ideogramas. Em compensação, não apenas se expressa bem em português, como lê e escreve com fluência o idioma da terra que o acolheu. Considera-se brasileiro, apesar de nascido no Japão.
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