Economia

Rua 24 horas mal
resiste à luz do dia

WILSON MOÇO e RAFAEL GUELTA - 05/03/2000

Inaugurado em 26 de fevereiro de 1999 como primeira ação voltada para recuperar o poder de atração dos centros comerciais de São Caetano, ameaçados pelos shoppings, o Espaço 24 Horas Renzo Bettini, na Avenida Francisco Matarazzo, no Bairro Fundação, é um verdadeiro malogro. Alardeado pela Aciscs (Associação Comercial e Industrial) como a primeira rua comercial 24 horas do Grande ABC, o projeto custou R$ 1,4 milhão ao Poder Público e não passa de cópia mal feita de iniciativa de sucesso em Curitiba (PR). A ironia do projeto, que se traduz num embelezamento visual sem efeitos econômicos, é que a sobrevivência dos negócios não está garantida sequer durante o dia, embora levantamento da Target Pesquisas e Serviços de Marketing coloque a cidade em quarto lugar no ranking nacional de potencial de consumo, com US$ 5.354,29 por habitante neste 2000.

Para se ter idéia do pouco sucesso da iniciativa, apenas a Drogaria FarMais teve a ousadia de manter portas abertas 24 horas durante nove meses. O proprietário Sérgio Athanasio se rendeu às evidências e hoje o estabelecimento só funciona até as 23h. A drogaria tem a companhia da Tieta Lanchonete, que às sextas-feiras e sábados avança o horário até por volta de 2h30, mas aos domingos sequer abre as portas.

À época da inauguração, o presidente da Aciscs, Ivan Cavassani, afirmava em entrevista ao Diário do Grande ABC, em matéria publicada na edição de 25 de fevereiro de 1999: "Os consumidores das classes A e B irão frequentar a Rua 24 horas porque será semelhante a um shopping center. Eles estarão abrigados do sol e da chuva e possuirão segurança". À LIVRE MERCADO de julho o dirigente chegou a anunciar que tinha como expectativa intensificar o consumo da população vizinha da Capital, que pelos dados da Aciscs responde por 50% das compras em lojas do Centro de São Caetano. Apenas dois pontos sustentam a comparação com shoppings: a segurança, elogiada pelos comerciantes, e a cobertura de policarbonato. No mais, a Rua 24 Horas não oferece serviço capaz de garantir frequência ininterrupta. A começar pela falta de estacionamento. Quem ficar sem dinheiro no meio da madrugada e não tiver talão de cheques, também está em apuros -- não há cabines de bancos 24 horas na Rua 24 horas de São Caetano.

A afirmação de Cavassani de que a transformação de trecho da Avenida Francisco Matarazzo em Rua 24 horas seria capaz de atrair consumidores das classes A e B não resiste a rápida avaliação do mix de lojas. Passado um ano da inauguração, o que se vê nos 100 metros do calçadão são empreendimentos que concorrem entre si, sem poder de seduzir o público acostumado a frequentar shoppings e muito menos os habitués da noite. Os 14 estabelecimentos em atividade concentram três pastelarias, duas lojas de doces, biscoitos e outras guloseimas, duas drogarias e uma perfumaria, além de açougue, loja de calçados e loja com preços a partir de R$ 1,99.

O equívoco de conceber suposta rua comercial 24 horas está exatamente em não se atentar para o mix de varejo e o próprio local. O proprietário da FarMais sempre desconfiou do êxito do projeto, embora tenha insistido durante nove meses. "É difícil fazer uma Rua 24 horas aqui, principalmente porque o local é predominantemente de passagem para a estação ferroviária. Quem depende de condução sempre passa rápido porque tem pressa de chegar em casa. Além disso, o que temos aqui está fora do perfil de uma Rua 24 horas. Ninguém vai a açougue ou a uma loja de doces de madrugada" -- analisa Sérgio Athanasio.

Se a tentativa de implementar o comércio à noite é um fracasso, o proprietário da FarMais teme pelo futuro do calçadão mesmo durante o dia. "Alguma coisa precisa ser feita. Várias lojas fecharam e outras podem ter o mesmo destino" -- avalia, ao apontar estabelecimento onde funcionava a loja de lingerie Sonhos & Delírios, fechada recentemente. Outros pontos sequer abriram as portas após a implementação do projeto pela Prefeitura, como a Casas Bahia e a Dominó Móveis, sem contar outros três espaços menores. Também está desativado prédio de três andares onde há três anos estava instalado um outlet.

É consenso entre comerciantes que o investimento da Prefeitura tornou o endereço mais atraente, mas entendem que é preciso mais ações para tentar melhorar o movimento comercial, como preços mais baixos e eventos. A prometida reabertura da loja da Casas Bahia e a instalação de uma agência bancária no espaço deixado pela Dominó Móveis, além de atração de fast-food como McDonalds ou Habibs, são vistos como chamariz para revitalizar o comércio da Francisco Matarazzo. Há dúvidas, porém, sobre o poder de fogo de nomes cintilantes como esses transformarem em espécie de shopping o que nasceu e se sustentou durante décadas como comércio de rua.

Enquanto São Caetano vê naufragar o projeto da Rua 24 Horas, outros dois municípios do Grande ABC se movimentam para revitalizar o comércio de rua. O mais adiantado é Santo André, que promete inaugurar em 8 de abril -- aniversário da cidade -- o novo Calçadão Oliveira Lima. O espaço ganhou cobertura de vidro em 200 metros de extensão entre o Largo da Estátua e a Rua Albuquerque Lins, piso modelado pelo artista plástico Luiz Sacilotto, chafariz e novo paisagismo. Representantes da Prefeitura e dos comerciantes se reuniram no final de fevereiro para discutir a possibilidade de a reforma se estender para os outros 300 metros da Oliveira Lima. Na verdade, a questão só depende de alguns acertos, já que vários empreendedores estão dispostos a custear a obra por conta própria.

Em São Bernardo, a Associação dos Lojistas da Rua Jurubatuba voltou a negociar com a Prefeitura o projeto de cobertura de três quarteirões, ou 600 metros onde se concentra a maior parte das lojas de móveis da cidade. Além da cobertura, o projeto prevê instalação de sistema de iluminação que permita a abertura do comércio à noite, já que a associação discute a possibilidade de passar a funcionar das 10h às 22h. O presidente da entidade, Mohamede Jarouche, diz que a obra está estimada em R$ 600 mil, que seriam assumidos pelos associados.  

Inspirada nos conceitos europeus de bulevar e centro de convivência, a Rua 24 Horas é atração turística e vantagem competitiva para atrair investimentos em Curitiba (PR), a Capital padrão-Primeiro Mundo que inventou o espaço no Brasil, em 1991. Mais que área física de 120 metros de extensão coberta com vidro aplicado a estruturas metálicas em arco -- e com imenso relógio colorido na entrada informando que o local nunca fecha (e não fecha mesmo!) --, a rua integra o mito Curitiba, onde o lema número um é qualidade de vida. Diariamente é visitada por cerca de três mil pessoas, contingente que dobra e esporadicamente triplica nos fins de semana.

Jayme Lerner, governador-urbanista que criou a Rua 24 Horas na sua terceira e mais recente gestão como prefeito de Curitiba, gosta de alimentar o mito. Ele conta a políticos e empresários convidados a visitar a Capital paranaense que foi numa das mesas que se espalham pela rua que nunca fecha, bebendo chope gelado com amigos e jogando conversa fora, que teve a idéia de construir a Ópera de Arame. Lerner diz que desenhou a estrutura da casa de espetáculos num guardanapo de papel, utilizando caneta hidrográfica. Que interlocutor não se encanta com essa história, principalmente se estiver diante do cartão postal da cidade que estampa a maravilhosa Ópera de Arame? Ao contá-la, Lerner projeta à Rua 24 Horas áura de cultura e pólo gerador de idéias.

Em palestra que fez no ano passado a executivos e funcionários graduados de montadoras e autopeças que instalaram o segundo maior pólo automobilístico do País na Grande Curitiba, Lerner lembrou que muitas decisões empresariais foram tomadas durante animados bate-papos na Rua 24 Horas. Executivos e engenheiros de grandes empresas formam ao lado de professores, políticos, intelectuais e artistas o público que frequenta o espaço durante a noite e a madrugada com maior assiduidade. O espírito boêmio de Curitiba é de intelectual-europeu, diferente da malandragem que durante décadas imperou na mais típica boemia brasileira, no Rio de Janeiro.

Outros dois tipos de frequentadores assíduos foram detectados pela Prefeitura de Curitiba na Rua 24 Horas. No período da manhã a área é tomada principalmente por estudantes que frequentam escolas, universidades e cursinhos das imediações. Enquanto os jovens conversam, lêem, matam aula ou produzem trabalhos escolares nas mesas dos bares, executivos, comerciários e escriturários passam rapidamente, mas não se poupam de uma parada para o cafezinho. Durante a tarde é a vez de o espaço ser tomado por turistas, brasileiros e estrangeiros. Ônibus param nas proximidades e despejam visitantes ávidos por saber das razões que fazem de Curitiba a Capital brasileira da qualidade de vida. No período da tarde são as lojas de lembranças que mais faturam.

Galeria comercial coberta que une as ruas Visconde do Rio Branco e Visconde de Nácar, no Centro de Curitiba, a Rua 24 Horas foi inaugurada oficialmente em setembro de 1991. Administrada pela URBS (Urbanização de Curitiba), empresa de economia mista que também gerencia o transporte coletivo e outros equipamentos públicos da Capital paranaense, a rua é dividida em 45 módulos alugados pela Prefeitura a permissionários. Os comerciantes pagam taxa mensal de condomínio revertida em serviços de manutenção, conservação e limpeza. A URBS mantém permanentemente na Rua 24 Horas um administrador, três fiscais e 14 serventes, inclusive durante a madrugada.

Praticamente um terço dos módulos alugados a permissionários é de lojas de alimentação. Nove módulos são ocupados por supermercado que funciona também como loja de conveniência. Outras atividades comerciais presentes na Rua 24 Horas de Curitiba são lojas de vestuário, presentes, artigos esportivos, papelaria, floricultura, salão de cabeleireiro, banca de revista, cafés e joalheria. Têm destaque especial a Leve Curitiba, loja de lembranças da cidade, e um posto do Paraná Turismo, empresa pública que coordena a atividade turística no Estado. A rua conta também com núcleo permanente da Polícia Militar.



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