Economia

A volta dos
que não foram

DANIEL LIMA e RAFAEL GUELTA - 05/03/2000

O que está acontecendo com a indústria automobilística que, num passe de mágica, voltou a valorizar investimentos no Grande ABC? As respostas estão muito além da candura de teorizar que a região é o suprassumo da atividade, num movimento oposto e igualmente perigoso de considerar que a debandada da última década significaria o fim da estrada. É preciso muito mais que simplificar os fatos para se entender por que o Grande ABC voltou a ser atrativo às montadoras que lhe deram suporte para o desenvolvimento socioeconômico.

O Grande ABC está vivendo a terceira onda da indústria automobilística e confundi-la com as anteriores é bobagem. A primeira foi a própria instalação das empresas, a partir da década de 50. A segunda, a descentralização da produção de novas marcas e modelos para regiões de sindicalismo menos hostil, de mão-de-obra mais barata, de vantagens fiscais e de qualidade de vida superior. A terceira, a que está chegando, decorre dos efeitos de políticas econômicas nacional e internacional. A ordem é alcançar o máximo de produtividade, logística e qualidade para competir num mercado sem fronteiras abarrotado de concorrentes.

A Ford efetivará no segundo semestre projeto anunciado em meados de 1999 de transferir para a unidade do Bairro Taboão a fábrica de caminhões do Ipiranga, bairro densamente povoado em São Paulo. A Ford incomoda o Ipiranga. Cada manobra de um cegonheiro é um transtorno. A logística é dispendiosa. "Vamos concentrar a produção paulista em São Bernardo e fazer outra fábrica fora do Estado, na Bahia" -- disse recentemente o presidente da multinacional, Antonio Maciel Neto. Nada mais lógica a opção pelo Grande ABC, porque a planta tem vastos espaços ociosos. 

A fábrica da Ford em São Bernardo produz 500 unidades/dia do Fiesta, Ka e Courier. É menos da metade da capacidade instalada. Por isso mesmo voltará a produzir o Escort station wagon também no segundo semestre, transferido da fábrica de Pacheco, na Argentina. Só durante o governo Mário Covas a Ford investiu US$ 2,5 bilhões nas unidades paulistas e outros US$ 500 milhões estão previstos para até o final deste ano. O recuo da produção de uma empresa que chegou a deter 25% do mercado nacional e hoje não chega a 10% está expresso no quadro de 1.080 funcionários remunerados que continuam em casa, em regime de lay-off. 


Especialização -- A Mercedes-Benz anunciou no mês passado a transferência até outubro da linha de montagem de plataformas de ônibus, sediada em Campinas. Nada mais sintomático também para a redução da desocupação física da fábrica de São Bernardo, atingida por anos seguidos de demissões, e também porque está ali toda a artilharia tecnológica que abastecia Campinas e que tem a unidade de eixos como carro-chefe, além de motor e câmbio. Sinergia e otimização são palavras-chave dos técnicos da multinacional. Também nesse caso o que vale é a especialidade, irmã siamesa da produtividade, porque a MBB passará a concentrar em São Bernardo toda a produção nacional de veículos comerciais. O presidente da companhia, Ben van Schaik, anunciou no final do ano passado que vão ser investidos US$ 500 milhões entre 2000 e 2002 no Brasil, incluindo lançamentos de veículos comerciais. 

A General Motors de São Caetano repetiu a decisão da MBB e anunciou também em fevereiro que, além do Vectra e do Astra, vai passar a fabricar a versão três portas do Corsa. São José dos Campos perderá parte da montagem do popular da GM para dar lugar à centralização de planta voltada para caminhões, picapes e esportivos. A fábrica de Córdoba da caminhonete Silverado será desativada e transferida para o Vale do Paraíba. A Argentina sofre com o câmbio inexoravelmente preso ao dólar. Depois da desvalorização do real há pouco mais de um ano, não só a Argentina mas o próprio Mercosul entrou em parafuso. Os custos industriais argentinos se tornaram proibitivos como instrumentos de dinâmica comercial principalmente com os brasileiros, mercado que usufruíram para valer durante o período de quase intocabilidade do valor do real. 

A Volkswagen de São Bernardo completou a safra de boas notícias para o Grande ABC com anúncio requentado, mas sempre bem-vindo, de investimento de R$ 1,7 bilhão para produzir o projeto mundial PQ24 na fábrica Anchieta. A novidade mesmo é que boa parte desse montante será dos cofres do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), já que há vários anos a montadora alemã está praticamente reconstruindo a unidade de São Bernardo, que se tornou obsoleta internacionalmente durante o período de mercado fechado. Em vez de veículos nacionais, o que se fabrica no Brasil agora são produtos globais. E o excesso de produção mundial esquenta a concorrência. 


Sem surpresa -- Para o professor, economista e consultor Glauco Arbix, um dos maiores especialistas do País em indústria automobilística, nada do que está acontecendo é surpresa. "Faz pouco mais de um ano que as montadoras voltaram a olhar com carinho o Grande ABC, mas isso só se tornou explícito nos últimos meses. Não existe localidade no País que tenha a mesma vocação industrial e empresarial. Além disso, as montadoras possuem ativos na região que não podem ser simplesmente desativados" -- considera o professor da USP (Universidade de São Paulo). 

O que Glauco Arbix quer dizer, e diz, é que a cultura automotiva está impregnada no Grande ABC. Além disso, o abrandamento sindical por força não só de maturidade de novas lideranças trabalhistas, mas também do quadro de desemprego crescente, pesou muito na atratividade readquirida. O especialista avalia que acabou a disputa incrementada com a guerra fiscal e que colocou em xeque a permanência da indústria automobilística na região. "O trabalhador do Grande ABC pensa em tecnologia. É o mais qualificado do País. Essa cultura não pode e nem será desperdiçada" -- afirma. 

A consultoria internacional AT Kearney prefere observar a situação por ângulo diferente e nada confortável. A empresa critica especificamente as montadoras veteranas -- todas sediadas no Grande ABC -- pela política de reajustar preços em tempos de concorrência acirrada. Edgard Viana, responsável pela pesquisa da consultoria, garante que a ameaça às quatro grandes marcas está nas novas fábricas que conseguem produzir com preços mais competitivos, porque têm linhas de montagens mais enxutas. Enquanto o Grande ABC tem ociosidade, as demais estão no exato compasso de produção e vendas. As chamadas novas montadoras dobraram no ano passado a participação em vendas no mercado, de 7% para 14%. 

O acerto de contas das automobilísticas sediadas na região com as plantas industriais que pioneiramente instalaram no Brasil se deve muito à cultura produtiva operária que, conforme afirma Glauco Arbix, não se encontra em outros pólos do setor espalhados pelo País. Não se deve confundir, porém, vocação fabril com qualidade técnica da mão-de-obra. São pontos distintos. Quando começou a grande revolução com o fim da reserva de mercado no início dos anos 90, a mão-de-obra do Grande ABC era a mais vocacionada para a atividade devido ao passado histórico de recepcionar as primeiras fábricas. Além disso, já trazia uma herança operária de outras matrizes fabris que se instalaram na região a partir do início do século XX.  Entretanto, a qualidade da mão-de-obra automotiva era frágil para a competição internacional. Sobravam analfabetos, semi-analfabetos e trabalhadores que mal haviam terminado o Ensino Fundamental, antigo Primário. 


Precariedade -- A Volkswagen Anchieta é exemplo da precariedade educacional que manchava o perfil de produtividade. Em março do ano passado, o vice-presidente de Recursos Humanos, Fernando Tadeu Perez, dava números aos fatos em Reportagem de Capa de LivreMercado. O índice de escolaridade da fábrica de São Bernardo dera salto nos últimos anos, rebaixando de 40% para 20% o total de trabalhadores sem Ensino Fundamental. Na outra ponta, 13% dos horistas já ostentavam curso universitário. Em Taubaté, fábrica menos antiga mas construída à imagem de São Bernardo, os números eram parecidos: 16% ainda não haviam concluído o Ensino Fundamental e 21% tinham nível universitário. As unidades de Resende (RJ) e de São José dos Pinhais, no Paraná, se espelham na fábrica de motores de São Carlos, Interior de São Paulo, onde 91% já terminaram o Segundo Grau e 7% concluíram o Ensino Superior. 

Os dados divulgados por Fernando Tadeu Perez já reuniam resultados divulgados em Reportagem de Capa de LivreMercado em setembro de 1997 por Clébio Ribeiro, então gerente de Desenvolvimento de Pessoal. Para se ter idéia das transformações, a fábrica Anchieta triplicou em 1997 o treinamento em relação a 1994. Foram 1,2 milhão de horas/treino, cerca de 50 horas per capita. "Era capacitar o quadro ou perder a competitividade" -- resumia o executivo. À época, metade dos horistas sequer havia completado o antigo Primário. 

A Mercedes-Benz radicalizou na busca de melhor qualificação. Além de custear supletivo de Primeiro e Segundo Graus para os quadro semi-alfabetizados e cursos técnicos de Segundo Grau em dobradinha com o Senai, achou uma forma diferenciada de preparar futuros profissionais -- revelava a Reportagem de Capa -- para o mercado e para si própria: vai até as escolas, sobretudo de Ensino Superior, mostrar o que há de mais moderno em processo produtivo e como lidar com essas evoluções. 

O processo de mudanças na região foi terrível. A base de 200 mil metalúrgicos emagreceu quase à metade com os milhares de trabalhadores demitidos. Os que ficaram passaram por maratonas de reciclagem e preparação para lidar com máquinas, equipamentos e processos que passaram a substituir cacarecos de desperdício incentivados pelo mercado fechado. Quem se debruçar sobre o tempo de preparação de operários e executivos de alto coturno para o enfrentamento da globalização correrá o risco de não conseguir decifrar os numerais. São milhões de horas de treinamento que, contrariamente ao que se imagina, continuam. O nível escolar dos metalúrgicos que sobraram nas montadoras do Grande ABC ainda não se equilibra ao de outras fábricas instaladas no Brasil, cuja exigência mínima é de Segundo Grau completo, mas a diferença foi rebaixada consideravelmente. Como a chamada vocação automotiva é elemento decisivo à produção, o Grande ABC já não disputa investimentos secundários e enfileirou-se à linha de frente das atenções. 


Situação diferente -- Hoje se pode afirmar sem mistificar que a mão-de-obra automobilística do Grande ABC está em franco processo de qualificação para a competição interna e também internacional, considerando-se seu custo/hora nesse período de real em baixa, porque as montadoras aplicaram bilhões de dólares para tornarem-se players globais. 

O especialista Glauco Arbix não chega a fazer essa incursão teórica. Prefere dizer que a possibilidade de o mercado nacional vender três milhões de veículos na virada do milênio fez com que as montadoras locais saíssem em busca de plantas mais modernas e relegassem a segundo plano a importância dos ativos no Grande ABC. "Posso garantir que mesmo que tivessem de tomar uma decisão extrema, como sair da região, as empresas iriam pensar entre 10 e 20 vezes. Indústrias automobilísticas são baseadas em estruturas de conhecimento e precisam estar presente em regiões onde o conhecimento flui. As fábricas instaladas no Paraná (Volkswagen, Chrysler e Renault) e Rio de Janeiro (Volkswagen Caminhões e Peugeot) enfrentam problemas com a falta de qualidade da mão-de-obra. O Grande ABC continuará a ser o principal pólo da indústria automotiva no País" -- confia o economista. 

Glauco Arbix não acredita que o mercado brasileiro de veículos venha a sofrer mudanças substanciais em curto prazo de tempo. As montadoras produziram no ano passado 1,3 milhão de veículos e não há previsão de que o volume aumente significativamente este ano. Exceto se for implantado o acordo de renovação da frota que a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) negocia com o governo federal. Seriam 200 mil unidades de acréscimo. O melhor seria se a distribuição de renda do País fosse outra e se o carro popular não custasse hoje o dobro dos tempos do ex-presidente Itamar Franco. Mas aí é sonhar demais, porque o real mantinha-se paritário ao dólar ao custo de importações financiadas pelo comprometimento ainda maior da dívida pública externa. 

O economista da USP anuncia que acabou de concluir pesquisa encomendada pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), na qual compara desenvolvimento e índices econômicos do Grande ABC e da Grande Porto Alegre (RS). Os números não podem ser divulgados porque ainda não tiveram aprovação da entidade que tem sede em Zurique, na Suíça. Arbix antecipa que o Grande ABC leva vantagem disparada frente aos gaúchos metropolitanos. "Entrevistei dezenas de empresas, de montadoras e autopeças, e todos levam em conta uma questão básica: o Grande ABC concentra inteligência. A região tem hoje sociedade extremamente bem organizada na Câmara do Grande ABC, no Pólo Petroquímico e nos movimentos ambientalistas, para citar alguns exemplos. A globalização traz embutida a idéia de regionalização com especialidades e conhecimentos acumulados" -- afirma. 


Concentração -- O centro de inteligência a que se refere o professor da USP pode ser dimensionado nos fatos de que o Classe A produzido pela Mercedes-Benz em Juiz de Fora (MG) é totalmente comandado pela matriz brasileira em São Bernardo. A situação se repete com a Volkswagen Anchieta em relação à fábrica do Golf e do Audi em São José dos Pinhais, na Grande Curitiba (PR), e a Scania Latin América de São Bernardo com as filiais da Argentina e do México. A matriz brasileira da General Motors fica em São Caetano, onde se decide quantos veículos serão produzidos por dia na planta de São José dos Campos. Já a fábrica da Ford em São Bernardo abriga o grupo de trabalho que cuida da instalação da filial que será construída ainda este ano no Pólo Petroquímico de Camaçari, na Bahia. 

Parafraseando Gilberto Gil na música Aquele Abraço, o Grande ABC continua vivo, o Grande ABC continua sendo. A diferença é que seu contingente de emprego industrial será cada vez menor. O consolo é que, à medida que emagrecer, será proporcionalmente mais qualificado. Essa é uma traumática realidade iniciada há 10 anos, tempo das carroças coloridas.  


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