Instinto de sobrevivência também vale para fábricas. É assim que se explica a revolução tecnológica e produtiva operada nos últimos três anos, em meio a um turbilhão de adversidades, na planta da Ford Motor Company Brasil no Bairro do Taboão, em São Bernardo. Em dezembro de 1999 a fábrica obteve da matriz, em Detroit (EUA), a única certificação de qualidade QS 9000 entre as 33 plantas da companhia nas três Américas. A conquista inédita, que coloca a subsidiária brasileira à frente das demais em qualidade, produtividade e competitividade, tem valor de renascimento para a terceira maior indústria automobilística do planeta. A operação da gigante norte-americana esteve ameaçada de sucumbir no Brasil depois da fracassada associação com a alemã Volkswagen na extinta holding Autolatina, entre 1986 e 1995. E passou por outro mau momento no Natal de 1998, quando foram demitidos quase 40% dos funcionários de São Bernardo.
A importância do QS 9000 é maior na medida em que se mergulha na recente história da Ford no Brasil. Acionista minoritária na associação de 11 anos com a Volkswagen, a Ford saiu da Autolatina em desvantagem, sem produtos competitivos para disputar a preferência do consumidor brasileiro. Enquanto a ex-parceira se fortaleceu e manteve-se líder no mercado, a Ford perdeu mais da metade da participação, que chegou a ser de 25% na fase áurea anterior à holding. Coincidiu ainda com a traumática separação o fato de o Brasil ingressar na economia globalizada. Agilidade para vencer a concorrência e redução de custos passaram a ser metas perseguidas a toda velocidade pelo setor automobilístico a partir de 1995. A reação da Ford ocorreu na forma de investimentos -- inicialmente US$ 2,5 bilhões em três anos --, modernização de gestão e linhas de produção, o projeto global Ford 2000 e demissão em massa.
Não é difícil imaginar a situação em que fica uma empresa depois do insucesso de uma megafusão na qual é acionista minoritária. A Ford perdeu cultura e personalidade. Mais que isso: saiu da Autolatina com tecnologia defasada, que o mercado calcula em 15 anos. Os conceitos que vigoravam na gestão e na manufatura da Autolatina eram heranças da ex-parceira alemã. Temerosa de que a Volkswagen conhecesse seus projetos estratégicos de âmbito mundial -- pois a holding valia apenas para as 14 plantas industriais das duas montadoras no Brasil e na Argentina --, a Ford brasileira praticamente perdeu contato com a matriz. Recuperar o negócio implicou em reconstruir a cultura perdida à custa de treinamentos intensivos que ocuparam milhares de horas e consumiram milhões de reais. Também foram acelerados os investimentos em modernização física e novas tecnologias. Mais de uma centena de robôs operam hoje na planta do Grande ABC.
Paralelamente, foi preciso reaproximar a filial brasileira de Detroit. Para restabelecer contato permanente com a matriz, a Ford criou no Brasil a figura do chairman, cargo ocupado obrigatoriamente por um vice-presidente mundial que fala sem intermediários com o presidente Jack Nasser. James Padilla, executivo norte-americano que salvou da falência a Jaguar, subsidiária inglesa da Ford, foi o primeiro ocupante do posto. Quem está em seu lugar é Terry de Jonckheere, que assumiu em 6 de janeiro. É famoso o episódio que narra a primeira visita de James Padilla ao então escritório da Ford no Centro Empresarial, em São Paulo. "Onde está a fábrica?" -- perguntou Padilla ao aproximar-se da janela. Menos de um ano depois, todos os executivos da montadora voltaram a dar expediente em São Bernardo e a empresa economizou mais de meio milhão de dólares mensais em despesa de aluguel.
Com produtos pouco atraentes para o típico consumidor brasileiro de baixo poder aquisitivo -- casos do Del Rey e Versailles, automóveis sofisticados fabricados nos anos 80 e início dos 90 --, a montadora do Bairro do Taboão enfrentou dificuldades para inserir-se na era do carro popular, que representa hoje quase 70% do mercado nacional. Volkswagen, General Motors e Fiat contavam com veículos criados para esse mercado que, em maior ou menor proporção, caíram no gosto do consumidor. A Ford saiu do zero. Primeiro teve de improvisar. Criou versão 1.0 do Escort, o Hobby, que não emplacou. Só em 1996, a partir do lançamento do Fiesta, veículo mundial manufaturado dentro dos conceitos de globalização, a companhia deu provas de que estava disposta a retomar seu naco perdido no Brasil. Mas foi o pioneirismo do lançamento do primeiro carro subcompacto fabricado no País, o inovador Ka, em 1997, que fez a marca saltar novamente aos olhos do consumidor.
Demissão em massa -- Teria sido maravilhoso se a recuperação da Ford brasileira dependesse apenas do lançamento de novos produtos e da injeção de recursos financeiros. Ao mesmo tempo que encantava os olhos do consumidor com veículos de design europeu, a marca promoveu verdadeira hecatombe no fim de 1998. Numa só tacada fez o que as concorrentes realizavam em menor escala, ou até em conta-gotas -- demitiu 3,6 mil funcionários, praticamente 40% de toda a mão-de-obra da fábrica de São Bernardo. Pela primeira vez na história a indústria automobilística brasileira deparava com fato de tamanha dimensão. A demissão em massa, que provocou greve e reacendeu temporariamente a chama da resistência sindical no Grande ABC, estava prevista desde 1997. Na festa de lançamento do Ka, naquele ano, o então presidente da companhia no Brasil, Ivan Fonseca e Silva, afirmara que a planta do Taboão estava com mais da metade da mão-de-obra ociosa.
Como explicar, então, o fato de trabalhadores com fama de aderência sindical expostos a tantas adversidades conseguirem ajustar índices de produtividade, tornarem mais ágil e competitiva a linha de montagem e mais racional o sistema de gerenciamento da fábrica? Para Roberto Kuahara, gerente de Qualidade Assegurada da Ford brasileira e coordenador do programa QS 9000, só existe uma resposta: "Instinto de sobrevivência". Engenheiro formado pela Universidade Mackenzie e egresso da Autolatina, Kuahara lembra que os metalúrgicos de São Bernardo corresponderam rapidamente às necessidades de modernização e reação no mercado porque estava em jogo a continuidade de seus próprios empregos. "Há consciência geral de que precisamos nos movimentar com mais rapidez e agilidade que os concorrentes" -- afirma.
Para conquistar adesão e cumplicidade dos quase quatro mil funcionários que permaneceram na planta do Taboão, a Ford foi determinada ao colocar em prática um plano que, ao mesmo tempo, valoriza o profissional e sua ação social. Mensalmente o jornal interno da companhia divulga notícias com feitos de funcionários ou de equipes que resultam em economia de materiais, melhoram o ambiente de trabalho e beneficiam entidades sociais. As mesmas mensagens podem ser vistas nos diversos murais espalhados nas áreas de produção. A ordem na companhia é ouvir tudo o que têm a dizer os funcionários. Mesmo sugestões que não são colocadas em prática têm valor reconhecido. O conceito é elementar: funcionário valorizado veste a camisa. Foi criado na fábrica de São Bernardo o inovador SUR (Sistema Único de Representação), que une representantes da comissão de fábrica, CIPA e Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Roberto Kuahara considera que, depois de tantas transformações, os funcionários estão impregnados do que se pode chamar de Espírito Ford.
Região valorizada -- A conquista do QS 9000 extrapola o portão da fábrica porque também beneficia a imagem do Grande ABC. Confirma que a região aprimora excelência na produção de veículos, por conta da cultura industrial acumulada durante décadas. É verdade que nos últimos anos o Grande ABC perdeu terreno para Minas Gerais, onde está a Fiat e para onde foi o Classe A da Mercedes, e Paraná, onde se instalaram recentemente moderníssimas plantas da Volkswagen/Audi, Renault e Chrysler. Também perdeu importante investimento da própria Ford para a Bahia, onde a corporação inicia no próximo ano a fabricação de veículos da família Amazon no Pólo Petroquímico de Camaçari. No início de 2000, contudo, as montadoras voltaram a investir nas fábricas da região. A própria Ford está transferindo para São Bernardo a fábrica de caminhões do Ipiranga, em São Paulo, e a produção da versão station wagon do Escort, manufaturado durante anos na Argentina.
No Brasil desde 1919 -- e no Grande ABC desde 1967, em instalações adquiridas da extinta Willys Overland --, a Ford ocupa em São Bernardo área de 1,25 milhão de metros quadrados, equivalente a quase um décimo de todo o território de São Caetano. Sua história no período anterior à associação com a Volkswagen foi marcada por sucessos como o lançamento do Galaxie 500, primeiro carro nacional de grande porte, e o Corcel, que ultrapassou a marca de 1,4 milhão de unidades vendidas -- pouco menos da metade do lendário Fusca, fenômeno da indústria automobilística. Roberto Kuahara diz que o passado de sucesso é ingrediente fundamental da sinergia que levou a companhia ao QS 9000. "É uma prova de poder, grandeza e expansão permanente" -- analisa.
O elogio que mais orgulha a fábrica de São Bernardo foi feito pelo auditor-líder Gary Kostela, engenheiro norte-americano que percorreu toda a planta no fim do ano passado para confirmar o QS 9000. "É a melhor estrutura da companhia no mundo. A fábrica tem um time excepcional" -- disse Kostela, referindo-se à tecnologia agregada que crescer a produtividade da mão-de-obra. Criado pelos três maiores fabricantes de veículos do planeta -- General Motors, Chrysler (hoje associada à Mercedes-Benz) e a própria Ford --, o certificado QS 9000 é específico para o setor automobilístico e representa avanço significativo se comparado às normas e exigências do ISO 9000.
O QS é resultado dos processos de Objetivos pela Excelência, da General Motors, do Manual de Garantia da Qualidade do Fornecedor, da Chrysler, e da Norma de Sistema de Qualidade, da Ford. "O ISO consta de 20 requisitos universais. O QS agrega a esses itens vários outros que atendem às necessidades e características exclusivas da indústria automobilística. O objetivo é atingir nível de excelência que atenda plenamente a interesses de consumidores por produtos de qualidade e de fornecedores por redução de custos" -- conceitua Kuahara.
Engana-se quem até agora imaginava que a fábrica mais moderna da Ford no mundo fosse a lendária matriz, localizada em Detroit, região dos Estados Unidos que é o berço do automóvel. Antes de a planta de São Bernardo conquistar a certificação QS 9000, o título de melhor, mais ágil e competitiva fábrica da montadora pertencia à unidade mexicana de Hermocillo, direcionada quase que exclusivamente a abastecer o mercado norte-americano. Localizada na divisa entre México e Estados Unidos, a fábrica de Hermocillo não é certificada pelo QS e se manteve no topo da corporação durante cinco anos. A montadora possui somente duas outras fábricas certificadas com o QS 9000: Valência, na Espanha, e Genk, na Bélgica.
Detroit avalia -- Foi o próprio escritório central de Detroit que auditou e conferiu à filial de São Bernardo a certificação de qualidade. Essa é uma das regras do QS 9000. Para ser certificada com o ISO -- e a Ford do Grande ABC possui ISO 9002, de qualidade, e ISO 14001, de meio ambiente --, a norma é que a companhia seja auditada por certificador externo. No caso do QS todo o processo, por ser exclusivo do segmento de veículos, é realizado pela própria montadora. Isso até reforça a importância da conquista de São Bernardo, já que todas as unidades Ford contam com diretorias e gerências dedicadas à qualidade e competem duramente entre si. "Todas as fábricas da Ford nas Américas e no resto do mundo desenvolvem programas para obter o QS 9000. Para nós é motivo de orgulho estar no topo" -- afirma Roberto Kuahara.
Para se adequar aos atuais padrões de qualidade mundial da Ford, a planta do Grande ABC adotou 150 procedimentos globais que garantem padronização de gestão e manufatura. Todas as áreas da fábrica foram atingidas. "O time de São Bernardo trabalha alinhado sob um mesmo princípio. Da tecnologia aplicada à manufatura e ao controle da qualidade" -- analisa Kuahara. Na prática, isso significa que tudo obedece a normas e passa por controles -- do recebimento de materiais entregues diariamente por centenas de fornecedores à produtividade nas células de produção. "Também somos a única planta da Ford no mundo que possui o FPS (Ford Production System), norma de qualidade que exige modernização total de procedimentos e sistemas" -- acentua Kuahara. Sistema interno, o FPS da Ford é muito parecido com conjunto de normas aplicado no Japão pela Toyota, cuja linha de montagem é a mais moderna do planeta.
A fábrica de São Bernardo tem capacidade para produzir 1,1 mil veículos/dia, com índice de produtividade que a montadora considera satisfatório e que atende exigências globais: 38 veículos/homem ao ano. Atualmente saem da linha de montagem do Grande ABC o subcompacto Ka, o compacto Fiesta e a picape Courier, derivada de automóvel. No ano passado a Ford vendeu 200 mil veículos no mercado brasileiro, atingindo participação de 9,7%. A montadora não divulga números oficialmente, mas sabe-se que o faturamento da operação brasileira em 1998 ficou em torno de US$ 3,5 bilhões. A Volkswagen, maior grupo empresarial do País em faturamento, registrou também em 1998 US$ 6,6 bilhões.
Cinco mil trabalhadores atuam hoje em São Bernardo. Quase quatro mil contratados pela Ford e os demais terceirizados. Outros mil funcionários permanecem até a metade do ano em regime de lay-off por conta das 3,6 mil demissões de 1998, mas a montadora ainda não definiu como resolverá a questão. A partir do segundo semestre chegam mais 1,2 mil funcionários, transferidos da fábrica do Ipiranga juntamente com as linhas de caminhões. Roberto Kuahara afirma que o próximo passo é a conquista da certificação Q1, prolongamento do QS 9000, voltada exclusivamente à satisfação do cliente. "As montadoras estão empatadas em tecnologia. O que vai diferenciá-las daqui para a frente é o conteúdo humano. Saber reconhecer e interpretar o desejo do cliente será o toque de Midas da indústria automobilística" -- conclui o engenheiro.
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