Betim (MG) deixará de ser o pólo automobilístico brasileiro mais independente do Grande ABC dentro de seis meses. Esse é o prazo previsto para que General Motors e Fiat iniciem compras conjuntas de suprimentos e comecem a concretizar a fusão ainda em forma de acordo bilateral que surpreendeu a indústria automobilística na agitada segunda quinzena do mês passado. O cenário das megafusões de montadoras ficou literalmente de rodas para o alto em março e confirma tendência de sobreviverem não mais que cinco ou seis grandes corporações automotivas em todo o planeta. A movimentação iniciada por GM e Fiat foi sucedida por dois outros meganegócios: a compra da inglesa Land Rover pela norte-americana Ford e a aquisição do controle da sueca Scania pela alemã Volkswagen. O mercado também dá como certa a incorporação da divisão de carros da japonesa Mitsubishi pela germano-americana DaimlerChrysler (Mercedes-Benz).
A operação GM/Fiat, além de anteceder produção conjunta de motores, transmissões e fundições, prevista para dentro de um ano, vai esquentar a disputa entre indústrias de autopeças e estabelecerá conexão direta e permanente entre São Caetano e Betim. Separados por 850 quilômetros, os dois municípios abrigam comando, linhas de montagem, inteligência e logística das duas montadoras na América do Sul. Em menor escala, a incorporação da inglesa Land Rover pela Ford e o controle da Volkswagen sobre a Scania também mexem com logística e produção da indústria automobilística no Grande ABC.
A Land Rover manufatura mensalmente 100 unidades do jipe Defender na fábrica da Karmann Ghia, em São Bernardo. O veículo é praticamente montado pelo processo CKD -- peças são importadas da Inglaterra e algumas partes já desembarcam completas no Brasil. A Ford ainda não anunciou o que pretende fazer com a operação. Não está descartada a possibilidade de a linha de montagem da Land Rover ser fechada, mas se permanecer no Brasil o mais provável é que seja transferida para a fábrica da Ford em São Bernardo. No caso Scania/Volkswagen, as empresas devem criar a médio prazo sinergias para racionalizar suprimentos. A Volks conta com fábrica de caminhões em Resende (RJ), mas o controle da operação foi transferido no ano passado de São Bernardo para a matriz na Alemanha. Agora é possível que a posição seja revista. Volks e Scania são parceiras há 50 anos. A fabricante de caminhões pesados é importadora de veículos da montadora alemã na Suécia.
O que vai mesmo causar mudanças estruturais no cenário é a conexão Grande ABC-Minas. Estabelecido em julho de 1976, ano em que a Fiat inaugurou fábrica de automóveis no Brasil, o pólo de Betim é experiência independente bem-sucedida da indústria automobilística. A autonomia se deve ao fato de todos os demais pólos instalados no País -- Vale do Paraíba (SP), Grande Curitiba (PR), Gravataí (RS) e o futuro de Camaçari (BA) -- terem automobilísticas estrategicamente comandadas por matrizes localizadas no Grande ABC. São os casos das fábricas da General Motors, Volkswagen e Ford em São José dos Campos e Taubaté; da Golf/Audi em São José dos Pinhais; do Classe A da Mercedes-Benz em Juiz de Fora; da GM na Grande Porto Alegre; e a futura planta da Ford na Bahia.
Minas Gerais desenvolveu expressivo pólo de indústrias de suprimentos em torno da Fiat, num processo que ficou conhecido como mineirização. Autopeças de grande porte como Cofap (amortecedores e escapamentos), Valeo (radiadores) e Plascar (painéis plásticos) montaram fábricas no Estado. Dos atuais 180 fornecedores da montadora italiana, quase 100 estão em Minas, fato que estimulou inclusive a levar a fábrica do Classe A da Mercedes para o sul do Estado.
Por envolver o maior orgulho industrial da Itália pós-Segunda Guerra, a fusão GM/Fiat é tratada pelas duas montadoras como acordo comercial. A gigante norte-americana, líder mundial do setor automobilístico, abriu mão de 5,1% do controle acionário para ficar com 20% das operações de automóveis da ex-rival italiana, sétima no ranking. O negócio, que por enquanto descarta produção conjunta de veículos, resultará em joint-ventures na Europa e na América Latina. Serão criadas duas empresas no Brasil: uma para comprar suprimentos e outra para desenvolver e produzir motores, transmissões e fundições. Os bancos GM e Fiat, que permanecem independentes, irão lançar produtos financeiros que atendam simultaneamente às duas corporações. Marcas lendárias da Fiat, como Ferrari e Maserati, estão fora do negócio. Também não foram incluídas a Iveco, que produz de comerciais leves a caminhões pesados, e outras companhias que integram o Grupo Fiat -- caso da Magneti Marelli, gigante de autopeças e proprietária da Cofap.
O que está em jogo para Grande ABC e Minas Gerais na primeira etapa do acordo GM/Fiat é a sobrevivência de indústrias de autopeças e a manutenção de empregos na cadeia automotiva. Pesquisa realizada em 1996 pela Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) indicava que só no Grande ABC fornecedores de suprimentos automotivos empregavam quase 24 mil pessoas. General Motors e Fiat montaram cerca de 700 mil veículos no Brasil em 1999, mais da metade de toda a produção nacional, que chegou a 1,3 milhão de unidades. As duas montadoras atingiram participação de 51,6% no mercado -- 27,8% da Fiat e 23,8% da GM. A Volkswagen, líder brasileira desde que se instalou em São Bernardo, há 43 anos, fechou 1999 com 29%. A Ford, quarta do ranking brasileiro e durante bom tempo pretendente à compra da Fiat, ficou com 9,7% do mercado.
Só não serão imediatos os efeitos da negociação entre GM e Fiat porque o rompimento de acordos comerciais com fornecedores de suprimentos implicaria em multas contratuais. A expectativa das montadoras é de que a joint-venture encarregada da nova operação consiga renegociar contratos e em pouco tempo garantir economia de escala para a produção de veículos das duas marcas. Para continuar abastecendo Corsa, Palio, Astra, Brava, Vectra, Marea e Strada, entre outros, as autopeças terão de se moldar a novas exigências de produtividade, qualidade e redução de preços. Trocando em miúdos: é inevitável que haja enxugamento.
Por questão meramente protocolar, GM e Fiat negam-se a falar em desemprego. O fato óbvio, contudo, é que a perda de postos de trabalho paira já de imediato sobre a própria casa das duas corporações. As montadoras possuem departamentos de compras independentes que perdem o sentido de existir depois de criada a nova empresa. Para todos os casos, fica valendo um dos conceitos básicos da globalização: sobrevivem os melhores e mais capacitados. Fato relevante é que enquanto a GM compra mais de autopeças paulistas, entre as quais se incluem as do Grande ABC, a Fiat adota igual procedimento junto às mineiras.
Frederick Henderson, presidente da General Motors no Mercosul, é exemplo de que enxugar e racionalizar são procedimentos permanentes nas montadoras. Em 1º de junho ele assume nos Estados Unidos o comando das operações da montadora na América Latina, África e Oriente Médio. Trata-se de novo organograma que reorganiza, enxuga e globaliza a corporação. Enquanto não for nomeado seu sucessor no Mercosul, Henderson acumulará o cargo atual. O executivo, que se reportará diretamente ao novo presidente da GM Corporation, Richard Wagoner, que também assume em 1º de junho, levará na bagagem a destreza com que soube lidar com a turbulência cambial na economia brasileira, em 1999. A crise não impediu Henderson de levar adiante a instalação da nova fábrica da GM em Gravataí (RS), cuja inauguração está prevista para julho.
Barbas de molho -- A associação GM/Fiat ainda não ameaça a liderança histórica da Volkswagen, que já vendeu mais de 13 milhões de veículos no Brasil. Por enquanto não haverá alterações em produtos e mix da General Motors e da Fiat, mas a Volks deve colocar as barbas de molho: o mercado dá como certa uma reviravolta caso a montadora alemã -- instalada desde 1957 na Via Anchieta, em São Bernardo -- não comece a se mexer. Mesmo antes de criar a joint-venture para fabricar motores, transmissões e fundições, GM e Fiat admitem utilizar equipamentos que produzem atualmente em veículos das duas marcas. Frederick Henderson confirmou durante entrevista coletiva na qual anunciou o acordo que é possível chegar logo ao mercado híbridos das duas marcas. Caso, por exemplo, de Corsa com motor Fiat Fire 1.3 de 16 válvulas, novidade no Brasil e produzido em Betim para equipar a família Palio.
A partir da produção conjunta de motores, transmissões e fundições, GM e Fiat estarão dando passo decisivo para a fusão completa, prevista para concretizar-se em 10 anos. Diferentemente do que acontecerá com a ida conjunta às compras, que é operação logística, na manufatura de produtos cada uma das companhias começará efetivamente a absorver cultura da ex-rival. É esse, justamente, o principal ganho que a gigante norte-americana quer obter com a associação. Experiente em carros médios e grandes, a GM ainda encontra dificuldades no segmento dos pequenos. A Fiat, ao contrário, não se dá bem com médios e grandes, mas é expert nos pequenos -- os chamados populares, que representam 70% das vendas no Brasil.
Quando surgirem no mercado veículos com motores produzidos conjuntamente por GM e Fiat, estará dada a largada para a fusão de plataformas. Culturas absorvidas, as duas montadoras deverão cuidar de aprimorar o mix e, ao mesmo tempo, reduzir custos para ganhar escala. Frederick Henderson é reticente, mas admite que tudo é possível no futuro. Futuro, aliás, é palavra-chave em todas as respostas do executivo que deixará o Brasil, mas continuará atuante na fusão com a Fiat. Já se fala nos bastidores da indústria automobilística da possibilidade de a GM produzir carros na plataforma mais ociosa da montadora italiana, localizada em Córdoba, na Argentina.
Guerra de titãs -- A fusão ainda parcial entre GM e Fiat e a compra da Land Rover pela Ford e da Scania pela Volks são emblemáticas. A GM cravou bandeira no território chamado Fiat porque, apesar de produzir praticamente um quarto dos veículos vendidos no mundo -- 14 milhões de unidades/ano --, não abre mão de sua liderança, permanentemente ameaçada desde que a roda da globalização disparou a girar. A Ford emitiu cheque de US$ 2,9 bilhões para adquirir a inglesa e deficitária Land Rover, administrada pela alemã BMW (Bayerische Motoren Werke), porque precisava recuperar o fôlego e, além disso, assinalar para o mercado um de seus diferenciais: foco nas margens de lucro por intermédio da aquisição de marcas de luxo. O negócio abriu portas para futura aquisição da BMW pela maior rival da GM.
Foi por muito pouco que DaimlerChrysler e Ford, que ocupam segundo e terceiro lugares no disputadíssimo ranking planetário, não chegaram antes da GM a um acordo com a Fiat, o que mudaria as posições das peças no tabuleiro desse jogo intrincado e fascinante. Com tacada certeira, a GM garantiu 13% do mercado mundial, praticamente o dobro da concorrente histórica Ford. A expectativa de mais incorporações continua, reforçada pela movimentação da DaimlerChrysler rumo à aquisição do controle (pouco mais de 30%) da divisão de carros da Mitsubishi. Neste exato instante as gigantes dos automóveis estão de olho na coreana Daewoo, que produz anualmente 1,1 milhão de veículos. A Ford quer comprá-la para chegar ao topo do ranking. A GM quer a Daewoo para aumentar seu cacife. A DaimlerChrysler corre por fora sem alardes.
Não causará espanto ao mercado se a Ford vencer a corrida pela Daewoo. A arqui-rival da GM vai se empenhar ao máximo porque agora precisa fazer aquisição que garanta aumento substancial no volume de produção. Veículos Land Rover não vendem tanto quanto os da Fiat. A produção anual da marca é de pouco mais de 500 mil unidades. O que compensa é a lucratividade, porque o produto agrega a mais avançada tecnologia e padrão de excelência. A Ford se dá bem nesse segmento sofisticado. É dona de marcas lendárias como Jaguar -- que a partir deste ano rivaliza com a Ferrari na Fórmula 1 --, Lincoln, Volvo e Aston Martin. A GM, cujo diferencial é a preocupação permanente com volume de vendas, participa como acionista das operações da Suzuki (10%), Isuzu (49%) e Fuji Heavy (20%).
Enquanto a fusão Ford/Land Rover foi feita sem traumas e uniu empresas que falam a mesma língua, o sucesso da GM na disputa pela Fiat encerra importantes lições. Mais do que habilidade em negociar, a líder mundial soube assimilar características culturais e interpretar expectativas nacionalistas. Ford e DaimlerChrysler tinham mais pressa que a gigante norte-americana para realizar a fusão com a Fiat. Por isso, correram atrás do negócio com velocidade e voracidade. Principalmente a Ford, que perdera o posto de segunda maior do mundo em faturamento em 1998. Nesse ano a alemã Mercedes-Benz juntou esforços com a norte-americana Chrysler num casamento avaliado em US$ 92 bilhões que engloba até empresas aeroespaciais.
O paradoxo é que as megaconcorrentes da GM perderam a corrida justamente porque se interessaram somente em comprar o controle acionário da Fiat. Esbarraram no orgulho nacionalista de uma empresa centenária -- fundada em 1899 -- que comandou o desenvolvimento industrial da Itália depois da Segunda Guerra Mundial. Mais pragmática, a GM deu-se conta de que um negócio desse porte, com o ingrediente político que agrega, tem ganho de tempo como essência. Culturas arraigadas precisam de ajustes e assimilações. A Itália, como nação soberana, precisa de tempo para aprender a conviver com a nova realidade do seu orgulho industrial. O jogo da globalização é ao mesmo tempo fascinante e intrincado. Conceder louros da vitória exclusivamente à GM significa visão enviesada do mundo dos negócios. A norte-americana foi mais hábil e rápida que as megaconcorrentes, mas a Fiat é tão ou mais vencedora porque soube ceder para crescer. Por estar na confortável posição de líder mundial da indústria automobilística, a GM bem que poderia ter deixado para mais adiante uma nova aquisição.
A companhia italiana, que vem amargando resultados negativos nos últimos três anos e precisa ganhar escala para se sair bem no jogo global, não tinha outra saída. Precisava da injeção de recursos e de tecnologia de um grupo maior, de forte presença global em mercados onde os carros italianos simplesmente nunca esquentaram motores. Especialistas avaliam que só irão sobreviver companhias que produzem anualmente mais de cinco milhões de veículos. A produção anual da Fiat Auto é de 2,5 milhões de unidades.
As joint-ventures que GM e Fiat irão criar na Europa e América Latina projetam negócios com faturamento anual em torno de US$ 5 bilhões e geração de 40 mil empregos. Com a sinergia nas compras e na produção de motores, transmissões e fundições, as duas corporações esperam obter economia de US$ 3,6 bilhões nos três primeiros anos e, a partir daí, de US$ 2 bilhões por ano. A General Motors conta com cinco fábricas de motores na Europa e uma no Brasil. A Fiat tem plantas de motores na Europa e acaba de inaugurar nova unidade no Brasil, em Betim, onde investe US$ 500 milhões. Executivos das duas montadoras dizem que a joint-venture não resultará em fechamento de fábricas, mas analistas de mercado observam o quadro com cautela.
Em sentido oposto, a compra da Land Rover pela Ford teve como uma das motivações o déficit financeiro que ameaça a sobrevivência da BMW. A montadora alemã utilizou os US$ 2,9 bilhões pagos pela norte-americana para cobrir dívida superior a US$ 3 bilhões da subsidiária inglesa Rover Cars -- por sua vez transferida para a Alchemy Partners, empresa de capital de risco. A Rover Cars foi desmembrada do Rovers Group, ao qual também pertencia a Land Rover. A Ford terá trabalho para reerguer a empresa, a começar pela fábrica que abriga uma das linhas de montagem mais antigas do planeta.
Alívio sueco -- Tão surpreendente quanto a fusão GM/Fiat foi a negociação envolvendo cerca de US$ 6 bilhões que acabou por transferir o controle da Scania para a Volkswagen. A montadora de caminhões pesados havia acabado de ver frustrada a incorporação pela concorrente Volvo, também sueca, formalizada desde agosto do ano passado mas rejeitada pela comissão executiva da União Européia (UE). A sentença da UE representou o fim do sonho da Suécia de ser protagonista de peso na indústria automobilística do Terceiro Milênio. Juntas, Volvo e Scania formariam a maior fabricante européia de veículos pesados e a segunda maior do planeta. A fusão foi proibida porque, de acordo com a UE, a nova empresa chegaria a deter até 90% de participação em vários mercados europeus.
A Volkswagen, que produz caminhões exclusivamente no Brasil e precisava aliar veículos pesados ao seu mix, adquiriu do grupo sueco Investor 37,4 milhões de ações A da Scania, que garantem 34% dos votos e 18,7% do capital. O Investor se comprometeu a permanecer no negócio nos próximos dois anos, com 15,3% dos votos e 9,1% do capital. A marca Scania será mantida nos produtos. No dia seguinte ao fechamento do negócio, os dois grupos deram mostra de satisfação. "Adquirimos uma marca mundial líder na fabricação de caminhões pesados. Foi uma decisão estratégica" -- disse na Alemanha Ferdinand Piëch, presidente do Conselho de Administração da Volks. "É uma vantagem decisiva para a Scania ter um novo proprietário industrial estável como a Volkswagen" -- concordou na Suécia Leif Östling, presidente da Scania.
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