Economia

Nossa única
Rua 24 horas

WILSON MOÇO - 05/06/2000

Nenhum empresário da noite que se instalou na Avenida Kennedy, em São Bernardo, consegue explicar o que levou um corredor conhecido por ser berço do Uemura e ponto de rachas entre automóveis na década de 80 a se transformar em uma das mais fervilhantes rotas da vida noturna do Grande ABC. Os três quilômetros da avenida -- por onde passam 3,5 mil veículos em média por hora -- e ruas próximas concentram mais de duas dezenas de restaurantes, pizzarias, bares, choperias e lanchonetes, sem contar sorveterias, padarias e até karaokê e bingo, que atendem a todos os gostos e carteiras. Mais do que eclética, a Kennedy é verdadeira rua 24 horas. De dia, lojas, bancos, shopping e revendedoras de automóveis imprimem ritmo frenético ao vaivém de negócios. À noite, o tilintar de copos, o cheiro de carnes, peixes e pizzas, além de lanches e petiscos sedutores, impregnam o ar e revelam uma outra avenida, a do entretenimento e da paquera. Também não faltam música e o burburinho das conversas, não raras vezes em outros idiomas. Quando as portas começam a baixar, as padarias já estão abrindo para os primeiros fregueses e, juntas com o Frans Café e com unidades da Drogaria São Paulo e da recém-chegada Droga Raia, completam o ciclo da rua que virou 24 horas sem que tivesse sido planejada pelo Poder Público.


Os números que fazem da Kennedy o ponto de encontro de executivos, casados, descasados, jovens e agregados são impossíveis de aferir com exatidão porque empreendimentos voltados ao lazer estão diretamente ligados à disponibilidade de dinheiro do cliente e das condições do tempo. Mesmo assim, casas como Pollo Doro, Liverpool, Mr. Einstein, Pharelo, Ora Pro Nobis, Casual e Vera Cruz, entre outras, contabilizam 1,5 mil pessoas por semana, em média. A frequência já foi maior, mas caiu quando alguns negócios, como Mr. Einstein e Pollo Doro, passaram a mudar o foco para clientela formada por casais e público mais adulto. "A garotada é mais atirada, faz mais bagunça, e isso nos trouxe problemas com a Prefeitura. Decidimos fechar à meia-noite todos os dias da semana, sem choro. Assim, conseguimos manter um público de qualidade" -- explica Paulo Rogério Borella, desde 1990 sócio de João Maria Medeiros Bezerra na Pollo Doro.


A Pollo Doro não fica exatamente na Keneddy, mas se estendeu até a avenida quando os sócios foram obrigados a ampliar a área de mesas para a calçada que faz esquina com a avenida, já que a frequência saltou de 300 para duas mil pessoas por mês. Pioneira da vida noturna na avenida, a galeteria era um bar quando Paulo e João assumiram. "Transformamos a casa totalmente, mas nos diferenciamos das demais da Kennedy porque trabalhamos de forma bastante informal, tanto que não há cardápio e os garçons não têm uniforme. É justamente para aproximar as pessoas da casa" -- explica Paulo, que diz saber o nome de cerca de 90% dos habitués.


A informalidade da Pollo Doro não está apenas no atendimento ou na decoração despojada, na verdade bem rústica e de aparente bagunça organizada. Quem vai pela primeira vez estranha a grande quantidade de gravatas que pendem do teto no espaço reservado à copa: "Uma das regras proíbe a entrada de pessoas com gravata. Se entrar, cortamos e penduramos. Aqui é para relaxar". Especializada em carnes assadas, a Pollo Doro tem na picanha fatiada o carro-chefe -- 800 quilos/mês -- e horário inusual aos sábados e domingos, quando abre às 11h e fecha às 19h.


Como outros empreendimentos da Kennedy, a Pollo Doro é point de executivos estrangeiros a serviço de multinacionais como Volkswagen, Mercedes-Benz, Scania e Ford, entre outras. Como se hospedam em hotéis próximos, fazem da Kennedy parada obrigatória quase todas noites. Amantes de uma boa caipirinha de pinga e de cerveja, não são raras as vezes em que só voltam para o hotel de táxi, providencialmente chamados pelos donos da noite na avenida. "Não só por causa do consumo exagerado de álcool, mas também por questão de segurança" -- diz Robinson Alves Pereira, da Mr. Einstein. "A maioria dos estrangeiros gosta de beber no balcão e não sai sem levar copo ou caneca decorada com a famosa imagem do Einstein com a língua para fora" -- afirma.


Apesar de estar no quarto ano de atividades, o proprietário da Mr. Einstein é um dos que mais tem histórias para contar: do sucesso experimentado nos dois primeiros anos, quando chegava a juntar pessoas na rua e atrapalhava o trânsito, até a lacração de 21 dias determinada pela Prefeitura em dezembro de 1997, passagem da qual guarda mágoa porque colocou a sobrevivência do empreendimento em risco e o obrigou a reduzir os funcionários de 46 para apenas 18. "Os jovens formavam o principal público, mas tivemos de fazer mudanças para atrair aqueles com mais de 25 anos. Foi trabalho árduo, a casa quase fechou, mas valeu a pena porque atingimos o objetivo. O movimento caiu para 1,5 mil pessoas por semana, mas tem mais qualidade" -- comenta Robinson, que administra a Mr. Einstein ao lado da esposa Viviane e com apoio do filho Gustavo, de apenas 14 anos. "Ele mexe com o computador, controlando estoque e outras atividades". 


A concorrência é tão acirrada na Avenida Kennedy que a Mr. Einstein tem como vizinha de parede a Millenari e, do outro lado da rua, a Choperia Liverpool, há oito anos no local e que só perde em tempo de serviço para a Pollo Doro. Erguida pelos sócios José Miranda, Carlos Selan e Rivail Carvalho, passou recentemente por reforma geral, ganhou nova fachada, tratamento acústico para se adequar à Lei do Silêncio e equipamentos mais modernos, como uma máquina que gela a cerveja em apenas três minutos. Mais do que sobreviver às sucessivas crises econômicas que assolaram o País, os três sócios se orgulham de oferecer serviço que garante público cativo. "Muitos casais se conheceram na Liverpool e ainda frequentam a casa, apesar de já terem filhos" -- relata José Miranda.


Os bons resultados obtidos na Kennedy levaram os três sócios a nova empreitada. Associados ao irmão de José Miranda, Carlos, há dois anos investiram cerca de R$ 500 mil na montagem do Vera Cruz, bar temático decorado com cenas de filmes produzidos pela extinta Companhia Cinematográfica Vera Cruz e que abriga shows com bandas de blues e jazz, além de pista de dança no piso superior. Voltado para público diferenciado, atrai frequentadores de São Paulo até em função da fácil localização na rotatória que acessa a Kennedy e a Via Anchieta. Muitos empreendimentos da Kennedy também contabilizam clientes que moram na Capital, em função disso.


A sobrevivência de empreendimentos voltados para o lazer noturno depende da criatividade e de constante reciclagem na oferta de atrações e de produtos, de forma a estar sempre à frente da concorrência. É pensando em ser cada vez mais pólo de atração que os sócios do Vera Cruz acabam de fechar acordo de parceria com o Bourbon Street, bar da Capital conhecido por trazer ídolos internacionais de blues, jazz, sol musica e funk, entre outros estilos. O acordo prevê que a maioria dos artistas que se apresentarem em São Paulo também virá ao Grande ABC. A estréia no início deste mês foi com o cantor norte-americano de blues e funk Kenny Brown.


Essa não é a única novidade. A partir deste mês o happy-hour do Vera Cruz será incrementado com grupos de teatro e serviço de massagem, entre outras inovações para animar as cerca de 90 pessoas que procuram fugir do rush do trânsito, a maioria executivos. Tem mais: junho é mês de festa junina e tem programado para dia 26 gravação de CD ao vivo com bandas e cantores que se apresentam no Vera Cruz. "Vamos fazer pesquisa entre frequentadores para definir quem participará do CD" -- explica Carlos Miranda. Seguindo exemplo do concorrente Pharelo, o Vera Cruz começa a exercitar sua porção beneficente neste mês, quando doará parte da bilheteria do dia 28 para um orfanato da cidade. 


Apesar de ter iniciado atividades há apenas oito meses, as ações sociais do Pharelo já ganharam inclusive as telas do SBT, que em maio mostrou reportagem com o engraxate José Aparecido Godinho da Silva, chamado pelos frequentadores de Farelinho. O menino de 13 anos foi adotado pelo Pharelo há seis meses e recebe cesta básica e um salário mínimo por mês, além de refeições. "O serviço é cortesia para clientes, ao mesmo tempo em que tiramos o José da rua" -- diz Maurício Moraes, que tem na sociedade Marcos Moraes, Antenor Garcia, Jurandir Prestes Júnior, Éverson Itamar e Douglas Chiarotti, jogador de vôlei formado na região e da Seleção Brasileira.


Os sócios encontraram maneira de marcar mensalmente a data de abertura do bar, em 21 de setembro de 1999. Desde novembro, quando distribuiu seis cadeiras de rodas, o Pharelo aproveita o dia 21 para entregar cestas básicas e leite em pó para famílias carentes ou instituições de caridade de São Bernardo. O empreendimento, montado ao estilo de empórios dos anos 50, consumiu R$ 400 mil em investimentos e contabiliza frequência média de quatro mil pessoas por semana, que consomem cerca de 900 quilos/mês de picanha. Já é o líder regional e segundo no Estado em venda de chope Brahma, com 18 mil litros/mês. "Isso mostra que acertamos ao optar pela Kennedy" -- diz Maurício, que anuncia para este mês a entrada de caldos e vinho quente no cardápio, além da colocação de cortinas para inibir o frio. 


Os mais recentes ocupantes da avenida são o Casual Bar & Restaurante, inaugurado há dois meses no lugar de uma loja de roupas, e a Pizzaria Dom Quixote, que abriu as portas no final de março em espaço onde antes funcionava um bar. O gerente do Casual, Eduardo Assunção, diz que já saem das serpentinas 15 mil litros de chope por mês para matar a sede dos cerca de cinco mil frequentadores semanais. A quantidade coloca a casa atrás apenas do Chaplin de Santo André na comercialização de chope Antárctica na região.


O mais típico empreendimento da Kennedy é o Restaurante Ora Pro Nobis -- do latin, orai por nós, e também nome de planta típica das cidades históricas de Minas Gerais que, reza a lenda, é afrodisíaca. "Talvez porque seja rica em ferro. Se ferro é vitamina importante para quem não está bem de saúde, imagina para quem está" - brinca a mineira Sara Amorim, que há dois anos se juntou a Vera Mota para abrir o negócio. O cardápio de 40 itens inclui frango e costelinha de porco com ora pro nobis. Leitão a pururuca, muqueca de peixe e carne seca com abóbora são outros pratos do menu. No inverno a lista é recheada com cremes, caldos e fondues, além de pratos típicos da cozinha alemã.


O Ora Pro Nobis também se diferencia ao abrir por volta das 6h30 para café-da-manhã, servido até para recepcionar festa de casamento, além de reuniões de empresas. Com quase três anos de atividades, falta muito pouco para o Ora Pro Nobis se transformar numa casa 24 horas, já que às sextas-feiras e sábados só fecha por volta das 4h da madrugada.


O poder de sedução da Kennedy não fica restrito à noite. A possibilidade de bons negócios tem atraído lojas de automóveis de luxo como a Nazih Import, revendedora Audi que abre as portas neste mês para concorrer com os não menos desejados Mitsubishi, da Coki Import. Outra marca que em breve disputará as atenções na Kennedy é a Avel Veículos, bandeira Volkswagen que monta show-room na avenida. Mais do que comércio e vida noturna, a Kennedy está planejada para se transformar no centro das decisões da Administração de São Bernardo. Projeto da Prefeitura prevê a transferência do Paço Municipal e da Câmara para área próxima ao novo ginásio de esportes e Fórum da Justiça, além da construção de um parque e de um teatro que comporiam o novo centro da cidade.


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