Especialidade, especialidade, especialidade. Bati forte nessa tecla no capítulo que tratou de produtividade e qualidade do Planejamento Estratégico Editorial, antessala de minha atuação como diretor de Redação do Diário do Grande ABC naquele segundo semestre de 2004. O projeto foi preparado para que assumisse o cargo com uma diretriz que clarificaria os novos rumos do jornal. Entretanto, só pude aplicar as propostas depois de passar pelo cargo de ombudsman do jornal. O primeiro e único na história da publicação. Ineditismo que repeti mais tarde, em 2014.
O que os leitores vão encontrar em seguida é a edição de número 18 da newsletter OmbudsmanDiário. Era 29 de junho de 20104. Foram produzidas no total 32 edições, até que, finalmente, assumisse a direção do jornal.
Nesta edição, os leitores vão entender o significado de especialidade no jornalismo. E vão compreender a diferença entre aquela que deveria ser uma revolução conceitual no Diário do Grande ABC (e que apliquei durante duas décadas à frente da revista LivreMercado) e o que a publicação, entre tantas, oferece aos leitores.
Edição número 18
Seguimos com mais um capítulo referente ao Planejamento Estratégico Editorial que preparamos para o Diário do Grande e que, como se sabe, baliza nosso trabalho como Ombudsman.
Especialização
É uma jornada longa, complexa, trabalhosa, mas precisa ser iniciada o quanto antes. Estamos nos referindo à constituição de quadros profissionais de redação que serão especialistas nas mais diferentes matérias. O jornalismo mais contemporâneo exige que os profissionais conheçam tanto as técnicas de interlocução com os leitores como uma bateria de questões específicas relatadas pelas fontes de informação. Não podemos ser simples repositórios de declarações. Tratamos dessa questão, com profundidade, no livro "Meias Verdades". É epidêmico o grau de manipulação de informações. Principalmente nos jornais diários, formulados pela mesmice de reproduzir declarações acriticamente. Não se trata de obstar esse caminho necessariamente pela estrada da opinião, mas pela avenida da interpretação e, principalmente, por um feixe de dados de valor agregado. Aos leitores não se pode atribuir o rótulo de ignorantes. Costumamos dizer que nos compete como profissionais de comunicação muito mais que servir o almoço de informações -- temos de digeri-las, metabolizá-las, facilitando o entendimento do leitor.
Poderíamos desfraldar uma série de exemplos de situações em que se manifestam tergiversações descaradas do princípio de bem informar, mas o melhor mesmo é recorrer a "Meias Verdades". A essência do esgarçamento informativo qualificado está plantada na aridez de conhecimentos dos profissionais de comunicação. A saída é setorizá-los e fazê-los mergulhar fundo nos arquivos, nos livros, enfim, em toda a literatura possível de ser utilizada a qualquer instante.
Um exemplo do que a falta de especialista é capaz de provocar está na área de saúde. A ideia de que um determinado Município está extraordinariamente mais suscetível à demanda de serviços sociais geralmente não corresponde à realidade porque, afinal, é generalizado o descompasso entre a massa de desafortunados que precisam recorrer ao sistema público e a ilha de incluídos que resistiram à onda de desemprego e da perda das chamadas conquistas históricas, especialmente do setor metalúrgico da região.
As pequenas e médias empresas industriais -- como mostrou LivreMercado em recente entrevista com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra -- praticamente desativaram o ferramental de proteção social constitucionalmente de responsabilidade do Estado. Esse vácuo forçosamente passou a ser preenchido pelo setor público.
Ainda sobre esse aspecto, recentemente à frente do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos) pudemos comprovar que os investimentos na área de saúde pública no Grande ABC estão longe do imaginado, resultante do noticiário do jornal. A rica São Caetano é a que menos investe por habitante no setor -- ao contrário do que aplica na educação, cujos valores são os maiores do Grande ABC.
E não se deve correlacionar o baixo valor despendido por São Caetano apenas e exclusivamente ao perfil socioeconômico da população. Há informações que denunciam, sim, o baixo rendimento do Município nesse quesito.
Para quem mora em São Caetano e não está gravitacionalmente contaminado pelo ufanismo oficial, a área de saúde é um buraco imenso que precisa de reparos. Os dados do IEME comprovam essa verdade. Não só os dados do IEME, mas o próprio ranking do IDHM, que mede a qualidade de vida dos municípios -- São Caetano tem a menor das três médias (as outras são relativas às áreas de educação e renda) exatamente no critério de longevidade.
Esse é apenas um exemplo que pinçamos para justificar e enfatizar a importância de especialistas editoriais. Trata-se de realidade comum nos principais jornais do Primeiro Mundo, mas uma exceção à regra no mercado brasileiro quando se trata de questões relativas à cidadania.
Temos sim especialistas em coberturas esportivas, políticas, policiais, econômicas, mas, mesmo assim, com elevada fragilidade informativa. São mais setoristas que especialistas. Profissionais sobre os quais os especialistas do outro lado do balcão -- as fontes de informação -- geralmente deitam e rolam interesses específicos. A máxima de que jornalista tem apenas de reportar contribui imensamente para que os vieses se ramifiquem insidiosamente. As publicações não contam com mecanismos de segurança contra impostores porque em larga escala não estão preparadas para a contra-argumentação.
Entregar às páginas opinativas dos editoriais a incumbência de eventualmente neutralizar ou reposicionar os efeitos maléficos e distorcivos de fontes de informação viciadas é um comodismo que se instaurou nas redações. O que mais se verifica, também nesses casos, é a complementaridade de disparates porque os editorialistas, cada vez mais próximos do cotidiano das redações, apenas pasteurizam e retroalimentam as informações anteriormente formuladas.
Não bastasse isso, é importante ressaltar que, por mais importantes e procedentes que sejam os editoriais, pesquisas comprovam que se tratam de espaços lamentavelmente consultados em proporção bastante inferior ao do noticiário convencional. Ou seja: informações equivocadas que tenham ocupado o corpo da publicação dedicada ao noticiário geralmente se consolidam como verdadeiras e irrebatíveis. O aval do editorial é a força suprema dos veículos. Para o bem e para o mal.
A formação de especialistas é um processo longo e persistente que não se esgota em alguns pares de ano. É uma jornada intensa. Mas bastante compensadora. Os especialistas são uma cabeça-de-obra disputadíssima no mercado de trabalho porque, além da segurança da informação correta, oferecem a contrapartida de alta produtividade. Sim, alta produtividade.
Coloque numa disputa por produtividade um especialista que conheça a fundo a área de saúde, suas fontes, dados estatísticos, comparativos, essas coisas, e um faz-tudo ou quase tudo que, perambulando por assuntos diversos, se vê a cada jornada imerso num determinado assunto.
É o mesmo que comparar um mecânico especializado em motores de caminhão e um mecânico escalado um dia para consertar pneus, outro dia para atuar como ajudante de carregamento, num terceiro como mecânico de fato, num quarto como motorista, num quinto com engraxador. O melhor mecânico será aquele que dominar as técnicas de sua atividade e, suplementarmente, atuar em ações-afins que agreguem valor à função principal.
O melhor jornalista será aquele que dominar integralmente sua especialidade e jamais se descuidar dos assuntos correlatos. Ganha-se, repito, tempo e um significativo progresso profissional. A especialização não exclui a multiplicação de conhecimentos. Pelo contrário: a notabilidade no específico é um atributo de quem reconhece a importância do periférico afim.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)