Os leitores de diferentes jornais em papel e digitais, além de outras mídias, inclusive sociais, que acompanharam o noticiário que dá conta da debandada da fábrica da Ford de São Bernardo, certamente serão alertados pelos retardatários sobre os riscos que corre o Grande ABC diante da contínua nova configuração do negócio de fazer veículos no mundo.
Pois saibam esses leitores que na primeira edição da revista LivreMercado, criada por este jornalista, em março de 1990 (anotem a data), já chamava a atenção para o que viria. Selecionei alguns trechos daquela manchetíssima (“Esvaziamento industrial da região compromete poderio econômico”) de uma publicação ainda em formato de jornal nascida nos interiores da Associação Comercial e Industrial de Santo André. Não suporto engenheiros de obras feitas, como teremos de suportar nestes dias.
Vou deixar para depois uma análise complementar atualizada, por assim dizer, do quadro regional diante de transformações no mundo automotivo. Questões que não foram abordadas pela mídia porque a mídia em geral não conhece a economia da região. Só têm olhos para as montadoras. Seus responsáveis estariam mais bem aparelhados se voltassem no tempo, porque nesse caso o passado é o presente sem tirar nem pôr, como mostro nos principais trechos da análise que fiz há quase 30 anos.
Responsabilidade, apenas
Não me venham com a conversa mole de que tenho mediunidade porque não cola. Tenho sensibilidade, obrigação de jornalista desde os 14 anos de idade. E, mais que sensibilidade, jamais me prendi aos mandachuvas e mandachuvinhas nem a conchavos editoriais. É preciso escrever isso (o ideal seria utilizar maiúsculas) para que ninguém se esqueça. Os problemas econômicos do Grande ABC foram exaustivamente analisados durante as quase duas décadas de circulação da revista LivreMercado e desde 2001 nestas páginas digitais. A postergação geral foi um ato de irresponsabilidade coletiva.
Nos próximos dias vou tratar da exclusão sumária do Grande ABC do Campeonato Mundial de Competitividade Automotiva. Estamos perdendo cada vez mais espaço. Só contamos com uma fábrica de Primeiro Mundo para valer, no caso a Scania de São Bernardo, cuja estratégica pendular lhe permite aumentar as exportações quando há crise nesse hemisfério e, ante reação aqui, reduz a carga externa.
As demais fábricas estão no bico do corvo, embora não tenham faltado investimentos nos últimos anos porque, afinal, por mais complicado que seja, ainda temos alguns predicados para sustentar parte da indústria automotiva do País.
A Ford havia muito tempo exalava os últimos suspiros. Só não viu quem não quis ou quem tem muito interesse em tapar o sol da baixa produtividade com demagogia sindical sempre comovedora aos incautos.
Vamos, então, aos principais trechos do texto que escrevi em março de 1990. Qualquer (ou todas) semelhança com os fatos históricos decorrentes em quase 30 anos não passa de exercício responsável de jornalismo.
Primeiro trecho
O Grande ABC não está com a bola toda, como muitos imaginam, ou como considera uma parcela razoável de investidores nas áreas de comércio e de serviços. Se é verdade que nos últimos anos descobriu-se o filão dos grandes shoppings centers e das lojas de departamentos e as principais representações de serviços deslocaram baterias principalmente para o A e o B do ABC, não é menos real que o esvaziamento industrial, ditado pelo crescente êxodo de grandes e médias empresas, acentua-se discreta e perigosamente. Mais grave que as perdas econômicas estrategicamente enrustidas pelas representações empresariais e contundentemente sentidas pelos trabalhadores, é a política suicida de ignorar ou mascarar os fatos. (...). Mas é inconcebível que as autoridades dos mais diversos setores e calibres permaneçam praticamente imobilizadas. O ABC perde cada vez mais sua face industrial, situação que poderá empalidecer seus indicadores econômicos e sociais.
Segundo trecho
(...). Reduz-se a força industrial da região e tolos são aqueles que acreditam que os setores comercial e de serviços assumirão automaticamente os espaços que se abrem e, desse modo, evitarão o pior. Sem produção, já está provado no grande palco do capitalismo, os Estados Unidos, não há resistência do comércio e dos serviços. O que mais assusta é a falta de unidade entre as representações políticas, empresariais e sociais no Grande ABC. Se organizar de forma conjunta os sete Municípios do Grande ABC parece ser tarefa impossível para os políticos, sobretudo quanto às questões da produção industrial, porque há bloqueios naturais do ponto de vista doutrinário a desestimular tal proposta, pelo menos as bases empresariais da região poderiam unir-se para uniformizar gestões junto às prefeituras, de modo a que surgisse algo como um plano industrial.
Terceiro trecho
(...). Afinal, o esvaziamento industrial e econômico do Grande ABC atinge a todos, indistintamente. Há particularidades em cada cidade, mas globalmente existe forte semelhança: ninguém ainda se deu conta de que o sucateamento que se junta ao esvaziamento levará a região a ser apenas lembrança de passado poderoso. Se a ciclotímica crise econômica brasileira serve de atenuante ao empresariado regional que insistentemente se mostra arredio a formulações coletivas, o mesmo não se pode dizer das autoridades públicas, como prefeitos e vereadores. Eles só raciocinam em termos eleitorais, com raras exceções.
Quarto trecho
(...). Não se pode dizer, nesse caso, que os políticos da região seguem à risca o figurino da classe. Os políticos do interior do Estado e também de vários municípios de Minas Gerais e Paraná já tiveram a sensibilidade tocada pela importância de ativar a economia pelo lado da produção. Eles oferecem rios de vantagem para quem lá se estabelece. Além de isenções tributárias, doam imensas áreas já terraplenadas. O governador, estocado pelo avanço de mineiros e paranaenses, parece reagir. Mas reação não se faz isoladamente. É preciso tornar o incentivo à produção marca efetiva da administração. No ABC, principalmente onde o PT elegeu prefeito, é notório o estremecimento com os empresários. Os índices de aumento de IPTU têm forte conotação corretiva, de anos e anos de política tributária nocivas de administradores relapsos, bem como um ranço ideológico que tem alguma semelhança com a Ilha do Caribe frequentada por Fidel Castro e seus companheiros.
Quinto trecho
(...). Sem a boa vontade dos políticos, os empresários procuram encontrar saídas individuais para superar os obstáculos. Raramente questões que afligem o setor industrial na região são debatidas em grupos de empreendedores — e quando os sãos não têm a devida repercussão ou continuidade. Por isso, prevalece o individualismo pragmático. Muitas empresas já preferiram redirecionar investimentos a regiões dóceis, ou mais que isso, a regiões que acolhem os novos investidores como heróis de guerra. O presidente da Cofap, Abraham Kasinski, recebeu o título de cidadão de Lavras há três anos, pouco antes de inaugurar naquela cidade do Sul de Minas uma nova unidade da empresa que nasceu e se consolidou no ABC.
Sexto trecho
(...) Entre ser recebido por banda de música em aprazíveis cidades interioranas e o bacamarte do radicalismo sindical, misturado com o descaso das autoridades públicas, é claro que o empresário não precisa pensar duas vezes até decidir-se pela transferência. Mais ainda se se considerar a quebra de qualidade da mão-de-obra regional, que atinge sobretudo as pequenas e médias empresas, por causa de uma combinação de fatores que vai da perda salarial contínua à limitada oferta das escolas técnicas oficiais. Sem contar que também a mão-de-obra qualificada não resiste à ideia de uma transferência para o Interior.
Sétimo trecho
Predominantemente formada de pequenas e médias indústrias, situação aliás pouco lembrada diante do asfixiante domínio econômico dos grandes montadores de veículos, a região sofre também com os percalços históricos desse segmento. Não existe no País qualquer projeto de estímulo às pequenas e médias empresas. Diferentemente da Itália. (...). No ABC, então, agrava-se o desconforto, porque as grandes indústrias são referencial obrigatório das reivindicações trabalhistas. Nos últimos 12 anos, o setor de pequenas e médias empresas, principalmente das unidades dirigidas de forma convencional, passou o sufoco do enfrentamento com a Central Única dos Trabalhadores – CUT -que, todos sabem, não é exatamente compreensiva com os empresários. Máquinas e equipamentos da maioria das empresas estão obsoletos, sem condições de dar respostas aos anseios de produtividade do Governo Federal.
Oitavo trecho
Aliás, nem as montadoras de veículos escapam desse aniquilamento. Chamados de carroça pelo próprio presidente Collor, os veículos aqui produzidos não perdem para a concorrência internacional apenas quanto à qualidade. Perdem de goleada para os japoneses, americanos e europeus na classificação de produtividade. Gastam-se nas montadoras brasileiras 48 horas para se fazer um carro, contra 17 no Japão e 25 nos Estados Unidos.
Nono trecho
Se dentro das fábricas e nos gabinetes oficiais e empresariais o quadro é de Terceiro Mundo, qualquer análise que se faça da economia regional tem de levar em conta também as crateras sociais criadas pela bomba do centralismo federal. A reforma constitucional de 1988 permitiu aos municípios forte incremento de arrecadação de tributos, mas as duas décadas e meia em que o governo federal mandou e desmandou no dinheiro público feriram de morte a topografia regional, bem como de todas as regiões metropolitanas do País. O cinturão de indigência social que cerca os bairros mais antigos da região é um retrato sem retoque dos erros cometidos.
Décimo trecho
(...) O registro de que aportam por aqui 90 mil novos migrantes por ano é assustador. Nasce por aqui uma nova Rio Claro a cada 12 meses, sem que, em contraposição, os investimentos em tudo o que se relaciona a morar bem, acompanhem o mesmo ritmo. Não é à toa que o número de pedintes, de biscateiros, de prostitutas e de menores delinquentes avança nas estatísticas policiais que, por sinal, não são confiáveis, porque há poucos homens fardados para tantas ocorrências. Enquanto a miséria e a promiscuidade tomam conta da região, os teóricos do atraso ainda discutem a validade de se alterar a Lei de Proteção dos Mananciais, uma aberração que logo completará 20 anos e que não tem representado outra coisa senão a permissão deliberada para que se construam barracos e mais barracos nas proximidades das águas santificadas pelos oportunistas. Não seria mais racional que se estimulasse o erguimento de indústrias não poluentes, aproveitando-se, pois, toda a infraestrutura de serviços públicos próxima?
Décimo-primeiro trecho
(...). Uma boa alternativa para investimentos, sobretudo de pequenos empreendedores, é a instalação de condomínios industriais. Alguns núcleos de fábricas projetadas para usufruir de vantagens coletivas como sistema de transporte, segurança, agências bancárias, refeitórios, recepcionistas, comunicações, restaurantes, pessoal de manutenção, entre outros pontos perfeitamente adequados ao regime de condomínio, dariam novo impulso à região. O conceito de condomínio industrial poderia agregar também a criação de habitações populares ao redor dos núcleos.
Décimo-segundo trecho
(...) A malha viária e a infraestrutura de saneamento básico da região já estão em estado de saturação, mas não se pode usar isso como argumento ou bloqueio de investimentos produtivos. Afinal, é justamente a força econômica do carro-chefe da economia regional, a indústria, que permitirá a alocação de recursos financeiros para as cirurgias urbanísticas que se fazem prementes. Discriminar a indústria, enxotando-a ou ignorando-a, é cavar um buraco imenso que meteria a economia regional numa enrascada incontrolável.
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