É possível que o leitor gataborralheiresco não identifique importância em nada que coloque em confronto situações semelhantes quando algo que simbolize a região é colocado em contraste com praças mais festejadas. Gataborralheiresco é quem subestima o fato de morar na periferia de uma grande Capital, ou, inversamente a isso, gataborralheirescos é quem entende que viver na periferia é um ato que precisa ser auto afirmado trinfalisticamente a todo instante para combater o sentimento de inferioridade. Entre subestimar ou superestimar existe o bom senso, conectado à realidade.
É disso que trataremos neste texto, sem desconsiderar o risco de interpretações caolhas que nos coloquem num dos polos do gataborralheirismo regional. Seria, sem dúvida, uma aberração, mas com direito a argumentação em contrário. O contraditório existe para enriquecer o debate tanto quanto para atestar que contrapontos nem sempre se distanciam de estupidez.
Gataborralheirismo é um verbete criado por este jornalista para sintetizar parcelas significativas de quem vive e quem mora na região. Escrevi o livro Complexo de Gata Borralheira em 2002 num ritmo frenético, de 15 dias. Ali expus claramente as principais chagas sociológicas e psíquicas desta Província dividida em bicho de sete cabeças.
Maturidade e afoiteza
Por acaso o leitor sabia que a revista LivreMercado, criada e dirigida por este jornalista durante duas décadas, antecipou-se à revista britânica The Economist, famosa por estas bandas principalmente ao produzir duas capas contrastantes sobre o governo federal petista. Na primeira o Brasil decolava em forma de Cristo Redentor em 2009; na segunda, em 2013, entrava em parafuso também em forma de Cristo Redentor?
Foi farta a publicação de matérias sobre a conexão entre as duas reportagens de capa de The Economist. Chamaria isso de textos e imagens complementares.
Agora, vamos retroceder no tempo. Vamos à revista LivreMercado. É uma pena que este site, por questão de perfil editorial, não adote imagens, mas o acervo completo daquela que foi a melhor publicação regional do País está sempre disponível à verificação e análise.
As duas Reportagens de Capa de LivreMercado que antecederam os textos complementares e as imagens igualmente contrastantes de The Economist foram publicadas bem antes, em agosto de 1997 e dezembro de 2000. Uma diferença de três anos e meio.
Os contextos daquelas duas reportagens de LivreMercado eram semelhantes aos dos cenários do Brasil interpretado por The Economist. No último quinquênio do século passado o Grande ABC transpirava grandes mudanças. Celso Daniel à frente de tudo, mas num trabalho árduo de compartilhar planejamento e ações, estimulava um regionalismo jamais fustigado. Tudo era motivo para encantamento.
Fugindo do ufanismo
LivreMercado era exceção num ponto: participava do entusiasmo geral, mas com os pés editoriais no chão. Sem se deixar levar pelos grupos de interesse e pelo desconhecimento. Condimentos que, desconsiderados, levaram a revista britânica a nocaute naquelas reportagens.
Em agosto de 1997 LivreMercado instalou como Reportagem de Capa a decolagem de uma aeronave de grande porte e o título “O vôo da Esperança”, com o subtítulo “Como a Câmara Regional pretende corrigir a rota e retirar o Grande ABC da zona de turbulência”. Escrevi uma reportagem de fôlego, característica daquela publicação. Foram seis páginas. O título da página interna (“O vôo da Esperança”.) mantinha o tom de entusiasmo cauteloso da capa.
Os primeiros trechos daquela matéria dão a ideia do quanto nos precavemos com o que parecia um caminho de redenção do Grande ABC. Leiam:
Para entender o que acontece com a região depois do foguetório da definição dos 31 pontos prioritários do Plano Estratégico da Câmara do Grande ABC, inédita integração das comunidades empresarial, social e sindical, além de administrações públicas municipais e estadual, talvez a melhor sugestão seja a linguagem figurada. Supondo que o Grande ABC seja um avião já cansado de guerra, só restavam duas saídas: ou se deixava vencer pela fadiga do material, em forma de deserções industriais, vazio institucional e ausência de alternativas econômicas que agreguem valor, ou mobilizava passageiros, tripulantes e mecânicos para a troca de fuselagem desgastada, recondicionamento dos motores e elaboração de um plano de vôo que o levasse a zonas de não-turbulência. A Câmara Regional representa a segunda hipótese. Mas isso não significa que os mais de 2,3 milhões de passageiros devam desapertar os cintos. A nova viagem está apenas começando e, a bem da verdade, o roteiro que aponta 31 embarques é apenas rascunho que tanto pode ser aperfeiçoado como virar sucata. Tudo vai depender do que vai acontecer de agora em diante em novas reuniões – escrevi há praticamente 22 anos, 12 anos antes da primeira capa triunfalista da revista The Economist.
Matando a cobra
A Reportagem de Capa conexa de LivreMercado sobre a economia da região (o leitor não deve se esquecer que a revista britânica tratou da economia brasileira) foi publicada em dezembro de 2000. A imagem ilustrativa da capa era uma tartaruga estilizada sobre o título “Devagar quase parando”, e um texto complementar, também de primeira página: “O Grande ABC caminha em ritmo de tartaruga sob o peso da globalização. Câmara Regional, Consórcio de Prefeitos, Fórum da Cidadania e Agência de Desenvolvimento Econômico foram uma rede institucional de resultados muito aquém da velocidade necessária. Orçamento das Secretarias de Desenvolvimento Econômico perdem feio para os recursos destinados a ações sociais. Estamos enxugando gelo” – ressaltava a capa de LivreMercado.
Vale a pena reproduzir, também, os primeiros trechos da análise que fiz nas páginas internas sob o título “Globalização dá de goleada na falta de ação regional”. Ao todo, foram 14 páginas de reportagem que dividi (ou multipliquei) com a jornalista Malu Marcoccia. Leiam:
Que tal deixar de conversa fiada, dessas que torram a paciência, e, parafraseando o hilário Odorico Paraguaçu, de “O Bem Amado”, partir para os finalmentes? Que finalmentes? Os de que, apesar de todo o foguetório dos últimos seis anos, desde a criação do Fórum da Cidadania, passando pelo ressuscitamento do Consórcio de Prefeitos, pelo lançamento da Câmara Regional há três anos e meio e também pela fundação da Agência de Desenvolvimento Econômico, o que temos no Grande ABC é um grande, grandiosíssimo vazio institucional, de sufocantes consequências econômicas e sociais – escrevi há mais de 18 anos.
Mostrando o pau
Para dar cores sólidas de que LivreMercado teve a maturidade que The Economista não adotou nas duas reportagens de capa, reproduzo os principais trechos da reportagem da Folha de S. Paulo, publicada em 20 de setembro de 2013, sobre a revista britânica, sob o título “O Brasil estragou tudo?, questiona revista The Economist”:
Se em 2009 a revista britânica "The Economist" sinalizava que a economia brasileira estava pronta para decolar, hoje o sentimento é de pessimismo. Naquele ano, a revista trazia na capa o Cristo Redentor na forma de um foguete, prestes a levantar voo, com o título "Brazil takes off" ("Brasil decola", em tradução livre). A nova edição, de outubro, e que deve ser publicada nesta quinta-feira (26), também mostra o Cristo, mas, desta vez, em trajetória de queda. A reportagem de capa, de 14 páginas, questiona "Has Brazil blown it?" ("O Brasil estragou tudo?", em tradução livre).Não é a primeira vez que a revista critica a economia brasileira. Em junho, chamou de medíocre o desempenho da país desde 2011 e pediu, em tom irônico, para o ministro Guido Mantega permanecer no cargo. Em reportagem anterior, havia pedido sua saída.
Mais reportagem da Folha
(...). A matéria contrasta dois momentos bastantes discrepantes da economia brasileira. Primeiro, quando sinalizava um futuro bastante promissor ao registrar crescimento de 7,5% em 2010, o melhor desempenho em um quarto de século. Para aumentar a magia, o Brasil foi premiado tanto com a Copa do Mundo (2014) quanto com as Olimpíadas (2016), diz a matéria. De 2010 para cá, porém, o que se viu foi um tranco. Em 2012, a economia cresceu 0,9%, bem abaixo do que foi visto em 2010. Além disso, em junho de 2013 milhares de pessoas foram às ruas para protestar do alto custo de vida, da má qualidade dos serviços públicos e da corrupção. Segundo a matéria, muitos já perderam a esperança de que o país decolou e que o crescimento passado foi apenas outro "voo de galinha" --expressão usada para designar surtos econômicos de curta duração. Ainda segundo a reportagem, o Brasil fez poucas reformas durante os anos de boom econômico. Diz que o setor público brasileiro impõe um fardo particularmente pesado no setor privado. A "Economist" ressalta que as empresas enfrentam o sistema tributário mais pesado do mundo, com impostos que chegam a 58% sobre a folha de pagamento e que o governo tem suas prioridades de gastos incoerentes.
Vale a pena ler também o que outra fonte jornalística, o blog Visão Panorâmica do jornalista Amilton Aquino publicou. Essa escolha leva em conta o conteúdo mais denso em relação à mídia convencional e mais comprometida com certo corporativismo, que protege mutuamente as lambanças que produzem. Leiam:
A última capa da revista britânica The Economist sobre o Brasil corrige uma falha da própria revista, quando, quatro anos antes, publicou uma outra reportagem especial excessivamente otimista sobre nosso país. Não traz nenhuma novidade, nada além do que boa parte dos economistas, empresários e jornalistas alertam há anos, mas traz a credibilidade de um olhar estrangeiro de uma das mais respeitadas revistas do mundo. Dessa vez a repercussão no Brasil foi bem aquém das expectativas. Diferente da capa de 2009 que mostrava o Cristo Redentor decolando, utilizada abundantemente pela militância do PT para reforçar o clima de “Brasil potência” às vésperas das eleições presidenciais, dessa vez quase nada se falou, nem mesmo a Carta Capital, a revista que é associada à revista britânica -- escreveu.
Mais análise crítica
Nos grandes portais que publicaram alguma alusão a reportagem, os comentários mais corriqueiros dos petistas procuravam mostrar uma contradição entre a opinião da revista sobre a presidente Dilma (segundo a qual “o brasileiro não teria bons motivos para reelege-la”) e dos próprios brasileiros, que aprovam a gestão da presidente. Também aqui nenhuma novidade, afinal o PT soube mais uma vez provocar e capitalizar politicamente algumas brigas com alguns setores da sociedade “em prol do povo”. Como ser contra uma reforma política? Como ser contra a vinda de mais médicos para o Brasil? Como ser contra a queda dos juros? Como ser contra a queda da conta de luz? Como ser contra a queda dos impostos que incidem na cesta básica? Como ser contra o aumento do salário mínimo acima do crescimento do PIB e da inflação. Claro que ao debater cada um dos pontos citados vamos encontrar diversas nuances em cada uma dessas polêmicas que, no final, ficarão restritas à parte mais bem informada da sociedade. A grande massa, infelizmente, só vai perceber a “luta do PT contra setores poderosos da elite”, o país vai jogar mais problemas para o tapete e o PT vai sair fortalecido politicamente. Foi assim na Argentina de Perón, foi assim na Venezuela de Chaves, e está sendo assim no Brasil do PT e em todos os governos populistas. A oposição não percebe, mas sempre cai como um patinho na isca do PT e nós seguimos aumentando o Estado que conduz a ineficiência e a escassez -- escreveu.
(...) Uma frase da reportagem resume bem esta “estratégia” do governo: “o Brasil tem esgotado todas as formas fáceis de crescer”. A revista cita as vantagens competitivas naturais dos países em desenvolvimento, como, por exemplo, a migração da população do campo para a cidade, a incorporação ao mercado de trabalho da mão de obra feminina e, principalmente, o esgotamento do nosso bônus demográfico. Eu acrescentaria a esta lista o exagerado aumento do crédito que tem levado as famílias brasileiras ao limite do endividamento e o aumento do salário mínimo acima da inflação, do PIB e da produtividade. (...). Não é preciso ser bom de matemática para perceber que a política de aumento do mínimo vai ter que ser abolida em algum momento. Mas, quem terá coragem de fazê-lo? A Dilma até deu um sinal neste sentido no primeiro ano de governo, mas logo voltou atrás por causa das resistências do próprio partido. Pelo andar da carruagem, esta tarefa ingrata vai ficar para um outro governo. Se for da oposição, o PT vai faturar politicamente mais uma vez, pois pousará de “defensor dos trabalhadores”. Este sim um “investimento” de longo prazo do PT -- escreveu.
(...) Portanto, a revista conclui o óbvio: o Brasil precisa retornar a agenda de reformas para ter um crescimento realmente sustentável e não comprometer o futuro. Ao invés disso, nosso governo continua relutante, agindo na base do improviso, sempre muito tarde, quando os problemas não podem mais ser jogados para debaixo do tapete. Um exemplo disso a revista cita o programa de privatizações de aeroportos, portos, ferrovias e rodovias, os quais só foram colocados em prática depois que a realidade convenceu o governo de que não tinha recursos para fazê-los. Mas até neste aspecto positivo do governo Dilma, novos erros foram cometidos. Tentando fugir do rótulo de “privatista” que tanto acusou o governo FHC, o governo do PT impõe uma série de barreiras aos investidores, o que os tem afastado dos leilões realizados até aqui, sendo que alguns já foram adiados justamente por falta de interessados. Ou seja, até com o programa de privatização o governo do PT tem conseguido deixar o mercado ainda mais pessimista com o Brasil-- escreveu.
Enfim, a revista conclui óbvio: o Brasil perdeu uma excelente oportunidade de fazer as reformas necessárias nos anos do boomeconômico da década passada que beneficiou os países emergentes, algo que muitos economistas, inclusive nosso modesto blog, vêm repetindo há anos. Apesar de todos os problemas apontados, a revista ainda consegue ser otimista com nosso país, afinal a realidade estará sempre pronta para nos ensinar. Como no exemplo do Pré-sal, apesar do caminho mais dispendioso escolhido pelo PT, o Brasil a longo prazo deverá se tornar um exportador de petróleo. Certamente vamos gastar mais recursos do que deveríamos para conquistar os mesmos resultados, mas a tendência universal é o desenvolvimento e o Brasil, apesar de lutar contra esta força inexorável da natureza, felizmente não está imune a ela. A realidade e a história estão sempre nos mostrando o melhor caminho. Uma pena que nem todos os políticos tenham a mesma capacidade (e honestidade) para aprender com estes excelentes professores – escreveu Amilton Aquino.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)