O governador João Doria não está equivocado ao pretender fortalecer a cadeia automotiva paulista, pressionado principalmente pela anunciada e confirmada debandada da Ford de São Bernardo. O que o governador e seus assessores ainda não entenderam e creio que começaram a entender, porque o anúncio oficial das medidas vai se protelando, é que incentivos fiscais representariam um tiro adicional no pé mais que avariado da economia do Grande ABC, a quem pretensamente pretenderia atender em primeira mão.
Anunciada a medida governamental na semana passada com pompa por uma Imprensa meramente repassadora de informações e raramente reflexiva, duvido que a execução se dê com um mínimo de aproveitamento do Grande ABC em confronto com o setor no Estado de São Paulo. Se o jogo historicamente é desfavorável ao Grande ABC do jeito que está, ficará pior com benesses estaduais.
Quem vai investir aqui senão o necessário para manter o negócio automotivo. E quem investe está de olhos e alma na redução do contingente de trabalhadores. Associar investimentos e mais empregos é erro crasso da proposta.
Corrida de obstáculos
Trata-se, portanto, de uma corrida de obstáculos que veio lá de trás, sobretudo com o programa Inovar Auto, ingenuamente badalado pelos sindicalistas locais, mas que, ao forçar a barra da substituição de carros importados, com alíquotas elevadas, pretensamente para uma reserva de domínio do mercado produtivo nacional, teve como contrassenso a ampliação desmedida da fabricação de veículos no Brasil.
Eram tempos de abundância consumista, que chegou ao ápice com o governo Lula da Silva e a facilidade com que se desrespeitava a relação gastos/investimentos. Dinheiro farto do BNDES às grandes corporações internacionais não faltou. Aliás, sobrou.
O Brasil saiu de um mercado fechadíssimo no setor automotivo para um patamar de produção de cinco milhões de veículos, meta nunca alcançada do outro lado da balança, ou seja, da demanda.
Ao desabar o governo petista, durante os descalabros de Dilma Rousseff e das durezas do prélio dos rescaldos de artificialismos de Lula da Silva, o setor automotivo embicou e estatelou-se.
Não vou descer a detalhes numéricos, porque desnecessários. Com fábricas demais, a oferta maior que a procura só poderia dar no que deu. Ou seja: quem é menos competitivo (esse é o preço da antiguidade) acaba perdendo pedaços do mercado. A Ford de São Bernardo, com apenas um veículo de passeio no portfólio, o Fiesta, e a linha de caminhões, filha única na constelação de fábricas próprias de produção internacional, só poderia mesmo pedir as contas. Todos desconfiavam disso, mas muitos se fingiam de mortos.
Antiguidade pesa
Com unidades fabris mais antigas, o Grande ABC viu o setor automotivo encalacrado entre a necessidade de investimentos ou de deserção. A Volkswagen enxugou drasticamente o quadro de funcionários e correu em busca de atualização tecnológica que gerasse crescimento no mercado interno.
A General Motors também investiu, mas estava atrasada demais. A Scania é um caso à parte, pronta para abrir as comportas de suprimento da demanda de ônibus, caminhões e motores na América do Sul quando a situação macroeconômica é mais favorável, e pronta também para bater asas rumo a outros continentes, porque competitiva em todas as linhas.
Voltando ao anunciado decreto de incentivo com o uso do ICMS com base numa grade de investimentos produtivos e de empregos gerados, o governador João Doria deve ter sido aconselhado nos dias seguintes ao espalhafato que o mundo dos negócios automotivos não é bem assim. Se pretende mesmo socorrer o Grande ABC e particularmente o fiel aliado Orlando Morando, prefeito de São Bernardo, não será por meio dessas medidas.
Simples, muito simples, essa conclusão. Afinal, se o setor automotivo regional já perde por diferença elevada no campeonato de competitividade estadual e sofre goleada quando se expõe aos demais territórios, especificamente aqueles reiteradamente sob a proteção discriminatória do governo federal, que vantagem Maria levaria se o plano de Doria valer para todo mundo no Estado?
Operação camicase
Esse é o ponto fortemente ilustrativo do quanto a devolução de ICMS conforme as pretensões de incentivo do governador do Estado, será inócua às fábricas instaladas no Grande ABC, incluindo-se nesse rol também as autopeças.
Com desconto do ICMS generalizado no Estado, repito, quem já leva vantagem porque chegou depois e conta com mão de obra mais barata, logística mais adequada, ambiente de negócios mais saudável, entre tantos vetores que compõem a grade de custos, seguirá em vantagem.
Iria mais longe ainda para reiterar o tiro no pé ao qual me refiro no título deste artigo. Diria que, com novo incentivo à redução de custos, as automobilísticas e autopeças que decidirem investir em modernização e até mesmo em ampliação de produção, o que não seria recomendável à maioria, terão a oportunidade especial de filtrarem ainda mais recursos às unidades interioranas, em detrimento da região.
Aqui o jogo está perdido há muito tempo. Perdemos o confronto com a maioria dos endereços de mais de 70 fábricas instaladas no País. Quer porque recebem benefícios fiscais, quer porque são mais produtivas, quer porque encaixaram a produção de acordo com o gosto de freguês. O Grande ABC tem custos superiores em relação às demais fábricas automotivas do País e por isso precisa recorrer a produtos de maior valor agregado, que contam com menos freguesia num País que insiste em não avançar.
Como resistir?
Somente em situação muito especialíssima seria possível superar todos esses obstáculos (e tem mais um, este incontornável, de cultura anticapitalista destilada por sindicalistas socialistas de meia tigela) e trazer para o Grande ABC nacos de produção automotiva.
A Ford tentou de tudo, antes da intervenção do governo do Estado, para repassar a algum parceiro do setor a planta de São Bernardo. Contratou assessorias especializadas e não encontrou uma sequer disposta a encarar o desafio. Duvido que em condições normais haja a simples troca de controlador da fábrica solteira que resiste à concorrência mais avantajada e orgânica.
O duro desse jogo é que o Grande ABC sofre de degeneração competitiva. Envelhecemos e não nos damos conta disso. Mais que isso: envelhecemos e os babões seguiram a dizer enganosamente que continuávamos a ser uma jovem bela e formosa. Passamos da fase balzaquiana. Chegamos mesmo à Terceira Idade, que só é Melhor Idade para quem acredita em Papai Noel.
As Administrações Públicas da região, desde os tempos de fartura explícita e espontânea com a chegada das montadoras a partir dos anos 1950, jamais se preocuparam um tiquinho sequer com o desenvolvimento econômico. Tudo veio ao sabor dos ventos.
Jogando a toalha
O único prefeito na história da região que se converteu em exceção a essa regra de desprezo foi Celso Daniel, com inúmeras atividades a partir da criação da Câmara Regional do Grande ABC e da Agência de Desenvolvimento Econômico, que viraram obituários.
Somente os ignorantes econômicos de pai e mãe ou os filhos da outra no sentido político-partidário desprezam essa verdade. Os relatos deste jornalista e da equipe que comandei à frente da revista LivreMercado provam e comprovam essa verdade histórica. Inclusive que Celso Daniel, bem antes de ser abatido a tiros, jogou a toalha quando se sentiu o bobo da corte.
O governador João Doria está de olho no Palácio do Planalto em 2020. Nada mais natural para quem é o titular do maior Estado do País. Mas já deve ter sido informado que guerra fiscal tem custos políticos que nem sempre valem a pena experimentar. Ainda mais que nesse caso, o amigo Orlando Morando poderia receber um presente de grego. O que pretensamente favoreceria a economia paulista será um chute nos fundilhos já gastos da apatia industrial da região.
Comprar a briga de um Grande ABC que não passa de um frangote em potencialidade competitiva no setor automotivo seria um erro de cálculo que nenhuma amizade comportaria.
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